terça-feira, 25 de outubro de 2016

Nadando no escuro

  A música ela reconhece, toca bem baixo, ao fundo, não é muito clara, não ouve a letra, mas supõe, porque
o corpo reconhece o ritmo. O som ultrapassa a noite, a escuridão, os desertos de alma, a multidão de corpos, os grandes espaços de ausências ou amplas ocupações. A música não se limita a um tempo determinado, ela foge, rompe as linhas e vaga sorrateira e fluida. Alguns acordes prendem na gente, água nenhuma é capaz de lavar completamente, permanecem notas esquecidas, coladas ao corpo, até o dia em que a música num restaurante japonês resgata-as. Enquanto ela ajeita a cadeira, uma estrofe chega inteira para ela, repete baixo, enquanto se senta. Há quanto tempo ela não colocava essa música para tocar? Há quanto tempo as notas nela estavam silenciadas?
-  Mas, então, hoje é o dia?
Ela tem os lábios congelados, mas canta a música inteira. Vai chegar em casa e ouvir até o sono chegar. Nem sabe se dorme hoje.  

  Enquanto puxa uma cadeira para colocar a bolsa e guarda o celular, a música já é outra, mas a sensação ainda é a da anterior. Sorri para a música que ainda vai ouvir inteira e também para ele, desconfortável, a sua frente.
- Quer trocar de lugar? Acho que aí você vai ficar apertado. Aqui tem mais espaço.
- Não. Quero que você fique aí. A vista é mais bonita.
Acha até delicado, mas se incomoda quando alguém assume um desconforto para que ela fique em uma situação melhor. Não é que não mereça, mas parece que sempre querem-na em dívida. As mãos nervosas na mesa, a intimidade perdida, que tenta ser recuperada em cada memória antiga retirada do fundo azul, debaixo da areia branca, para facilitar o caminho do conforto. Enquanto ele fala de alguém que conheceram, de um lugar com um nome engraçado que não existe há muito, ela pensa que o recurso é o mesmo da música: as memórias presas pelo corpo, são resgatadas quando as chamamos pelos seus nomes.

   Um homem de camisa vermelha traz os cardápios, ela tem sede e sabe o que quer beber, ele demora um  pouco e pede outra coisa, alguém vai tomar álcool. A camisa vermelha volta com o homem, que coloca os copos e as bebidas em cada um deles. Finalmente, deixou de olhar para as mãos inquietas dele, para a barriga encolhida atrás da mesa apertada e o seu corte de cabelo, que, pela primeira vez, assume um início de calvície. E, que talvez nem aconteça, porque ele já tem mais de quarenta e ela acha que ninguém perde muito cabelo depois de já ter quarenta anos, mas pode estar enganada, não é boa com idades ou cabelos. O restaurante é pequeno e ela agora está presa no susto de saber-se cercada por peixes.

  A música é boa, a bebida chega gelada, o homem da camisa vermelha tem  voz macia e gestos suaves que a tranquilizam. Não há crianças, ao menos hoje, então ninguém corre pelo corredor apertado, há espelhos e luzes baixas, perto de um balcão com linhas retas e ainda há os casais das mesas vizinhas e a paixão deles que não é dela. Mas de tudo que pode ouvir, quando chegou e ver, quando sentou. As paredes são o que desafiam o seu estado de calma. São peixes vivos, em aquários que cercam as mesas. Ou olha para o seu par apertado e, quem sabe um dia, calvo do outro lado da mesa ou para os peixes-parede que a cercam. Preferia estar na cadeira dele e não ver os peixes.
  Porque quando o restaurante fecha, quando a música acaba, quando o auxiliar da cozinha lava o último prato, quando todos vão embora, os peixes ficam onde estão? São muitos. Não poderiam recolher e colocá-los de novo no mar construído com luzes azuis e verdes, corais, algas, conchas, túneis, areia no fundo e tudo aquilo que um mar de verdade talvez tenha.

  Talvez não consiga comer, se sente mais apertada do que ele na cadeira que aceitou em sacrifício por ela. A comida chega e ela quase não mexe em nada, não bebe mais e já nem lembra mais da música. As memórias dele parecem forçadas e repetidas. E acabam levando-a até o dia em que deixaram de serem íntimos. Foi numa tarde, noutro lugar da mesma cidade, quando ela descobriu que ele não sabia quem ela era, no dia mesmo que ele disse uma mentira bonita e ela mesmo não acreditando ficou constrangida em não aceitar; pelas cadeiras apertadas que ele sempre escolhia para si, para que ela ficasse com a melhor vista. Era uma troca esquisita assim.
- Não disse que sempre esperam algo num sacrifício?

  Ela viu os peixes nadarem no escuro, dançarem nas suas costas, darem voltas limitadas num mundo inventado e bonito, pensou nas madrugadas miseráveis deles, fechados num restaurante metido e, ainda, sobreviverem no mar de mentiras. Pediu para trocar de lugar, porque não gostou da vista e se angustiava em vê-lo tão desconfortável. Ele se levantou e pode comer e tomar toda a sua bebida. Ela ficou de frente para o balcão, lembrou da música que ouviria em casa, depois chamou o homem de camisa vermelha e pediu mais uma bebida.

  Disse que a levou lá porque sabe que ela gosta muito de peixes. Nunca mais ela quer voltar lá porque gosta muito de peixes. Uma coisa que não é esta, mas exatamente o contrário. As pessoas, estão sempre nadando no mesmo escuro do aquário, iluminado por luzes artificiais. Escolhem a pior cadeira, não por gentileza, mas porque querem prender o outro na admiração do gesto. Escolhem as melhores vistas para o outro, de acordo com os próprios olhos; ninguém enxerga com os olhos que não são seus. Ele nunca entendeu nada. Ela se lembrava da letra inteira de uma música antiga, mas tinha se esquecido daquela tarde, ele se repetiu como a música e ela se lembrou exatamente quando descobriu que não gostava de comida japonesa. Não quis o saquê, só aceitou a coca-cola e pagou ao homem de camisa vermelha. Ele a trouxe pela vista, ela se afastou pela vista. Continuam ambos nesse aquário fraudulento, só que as luzes verdes e azuis já não a enganam; vai nadar até encontrar uma saída, algum lugar que não seja essa beleza limitada pregada nas paredes de um restaurante e, se não encontrar, vai morrer tentando. Nenhum vidro é capaz de domar a vontade de um peixe que não quer ficar.    



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