terça-feira, 29 de novembro de 2016

Com uma deusa encarnada no braço

   Não deixa que a sirvam. Ninguém nunca consegue encher seu copo. Foram três ou quatro vezes que
saímos juntas, mas já na segunda eu percebi que só quem cuida da sua sede é ela. É delicada ao recusar qualquer auxílio, coloca sua mão pequena sobre o copo, sorri e diz, na sua voz pequena:
- Não, agora não.
  Mas basta colocarem a garrafa na mesa e ela discretamente se serve. Não aceita um gole que não seja dela para ela mesma. Se vai comer, não duvida, aponta alguma coisa no cardápio e quando chega à mesa, ela dispensa a ajuda do garçom. O prato dela é só ela quem faz, se pudesse acho que também o recolhia e o lavava.

  Conheço-a há tão pouco tempo, mas fui recolhendo neste pequenos gestos o que é dela. Não fala muito, eu também não, mas não é desconfortável partilhar os silêncios com ela;  é bem mais nova do que eu, tem tatuagens e o cabelo esta semana é azul. É uma companhia inusitada, mas incrivelmente aguardada. Eu precisava conhecê-la, embora nem suspeitasse que ela existisse. Recusar que a sirvam, não esperar uma companhia para ir ao banheiro ou ir para casa, sair sem nem avisar, só se levantar e ir, depois de um aceno simples, sem afetação; são peças que eu fui juntando aos poucos para ver melhor quem tanto observa.
 
   Seus olhos pretos me olham profundamente enquanto falo, parece aluna concentrada. Ela sempre me pergunta tanto e isso me faz pensar mais; tenho aprendido muito enquanto ela me escuta. Falamos de músicas, filmes, livros e autores dos quais gostamos ou estamos lendo, feminismo também é assunto recorrente. As histórias pessoais entremeiam nossas percepções e gostos. Fui sabendo dela por uma música que a mãe gostava, por um filme que a irmã e ela assistiram juntas. Não precisei perguntar, ela ofereceu o que tinha e quando quis dar, sem pressa, sem eu querer tudo.

  Tem o símbolo do infinito num dos punhos e  palavra liberdade em inglês e francês nos dois pés. No esquerdo além da palavra em francês, tem uma gaiola aberta, sem o pássaro. Tem um número em algarismos romanos no ombro direito, que eu sempre me esqueço qual é e mais outras pequenas tatuagens pelo corpo. Não falamos sobre isso, não perguntei, ela não disse. O que está a mostra me parece ser o bastante. Acho inoportuno perguntar o significado de coisas que já têm sentido completo para quem as têm; não preciso de explicação, acho bonito e só.

  A família é bem pequena. Só soube da presença  de uma irmã, até agora. Talvez, por isso, sua independência e recusa de companhias ou mãos que não sejam as suas próprias; acostumamos as ausências tanto quanto à abundância de presenças.  A mãe foi morta pelo pai,  quando ela tinha sete anos, a avó apanhava do marido e ela assistiu por anos, muito perto, o suplício dela, quando ficou sem a mãe assassinada e o pai que fugiu. A  irmã que é mais velha do que ela mais de uma década,  só sai de casa se o companheiro estiver com ela. Três violências penduradas na sua árvore genealógica, não sei se escapa, não sei se sucumbirá. Quando penso nas suas negativas em ser amparada, acho que também evita um caminho de abusos.

  Na última semana fez uma tatuagem que cobria todo o braço, a primeira grande e aparente. Vi a novidade quando ela me encontrou para entregar um livro que eu emprestei para ela. A camiseta com uma pequena manga  cobria parte do desenho, mas eu conseguia ver um corpo de uma mulher em luta com um felino gigante. Não perguntei, mas ela subiu a manga e me mostrou. Disse que cobriu uma tatuagem anterior. Nas iniciais de um nome que eu não cheguei a saber de quem eram, ela tatuou uma mulher guerreira, cobriu o nome, a história e a imagem ruim, ostentou a deusa como uma braçadeira, ergueu a força da outra, como se sua também fosse.

  Ela, a menina com uma deusa tatuada no braço,  se recusa, delicadamente, que a sirvam. Tem dois pés fincados na liberdade e sua solidão, o chão que pisa, as roupas que veste e a tinta do cabelo não são governadas por ninguém, além dela mesma. Ela, que fala pouco e baixo, tem mãos pequenas e olhos muito precisos, não deixa que sirvam sua bebida, porque é dona da sua sede e como a figura da tatuagem é uma mulher em luta constante. O felino gigante dela é a sua própria memória. Se cairá perto das raízes da família de mulheres com tristes destinos não sei, mas o seu esforço em saltar distante, está lá encarnado na deusa que ela cravou na própria carne. Sorte a minha em tê-la conhecido, diariamente.




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