domingo, 6 de novembro de 2016

Depois do cinza, é chuva. Depois da chuva, eu ainda não sei o que é.

   O par de tênis pendurado no fio de energia balança um pouco mais, há pelo menos um mês um par de tênis vermelho está no mesmo lugar e não sei a quem devo chamar para tirá-lo. Na verdade, talvez nem queira que ele saia dali. Pares de tênis nos fios é uma imagem alentadora, da infância,  acho. De repente, não cresci, se vejo pares de sapatos no céu. Antes, via-os com maior frequência e me perguntava ou a quem estivesse ao meu lado, uma hipótese para alguém querer jogá-los nos fios. Com quem começou a ideia? Por quê? Pensava nos seus donos, se eles próprios haviam decidido descartá-los ali ou se foram roubados, porque alguns parecem quase novos, com pouco uso. Sempre pensava em meninos que se vingavam de algum colega, tirando-lhe o tênis e jogando-os nos fios e ele, o menino descalço, correndo atrás, suplicando que não jogassem. Não sei se alguma vez eu vi a cena ou se acostumei a pensar na mesma hipótese para fios e tênis diferentes.

  Busco o celular e fotografo a cena, tiro logo umas quatro fotos, talvez não veja muitos pares mais nos fios; já que com os anos tenho visto cada vez menos. Saio da janela e agora olho a mesma cena na tela; sinto falta do movimento e resolvo filmar, só para ter comigo, o par de tênis vermelho balançando no fio de energia e poder rever quando o tirarem de lá. Mas agora balança mais, o vídeo curto fica bonito e um pouco triste, talvez mais tarde faça uma edição e coloque uma música mais alegre. Fecho a janela, preciso descer, agora.

  O tênis fica para trás, o trânsito é caótico, às seis da tarde numa sexta-feira. Estamos parados há alguns minutos, acho que foi um acidente, já são quase sete e eu vou chegar atrasada, se continuarmos aqui. Dou o sinal, peço para descer. Não é longe, mas tem um morro e as buzinas são insuportáveis fora do ônibus. Vários passageiros descem comigo, devem ter seus compromissos no mesmo horário que eu. Na subida, venta muito,  tem  uma pequena massa de cinza no céu, que começa branda, pequena e clara, mas quanto mais venta, mais ela se espalha e toma o azul escuro do céu. À distância, as luzes dos faróis e as da cidade, que fica para trás, ficam bonitas, silenciosas, resistentes, se não fossem as buzinas, eu gostava mais da imagem.

  Agora, no vento, com os sacos vazios de biscoito, papéis de bala e poeira, vem um cheiro, é fresco, é úmido, é antigo,  qualquer um reconheceria. Água não tem cheiro, a ciência diz, mas chuva tem e as narinas de alguém acostumado à natureza, mesmo que só tenha vivido no urbano, são certeiras. Não há ainda um raio ou trovão, mas vão chegar, porque o vento já trouxe o cheiro. O ônibus ficou para trás, não tenho guarda-chuva na bolsa e nenhum carro se move. Não sei quanto tempo tenho antes da chuva, só sei mesmo dela. O primeiro raio, corta o cinza do céu e é logo seguido por um trovão que parece querer calar as buzinas dos carros, brada alto, poderoso, senhor dele mesmo.

  Quem não identificou os sinais antes, agora já sabe que vai chover sim e não demora. Venta muito e um pedaço de cobertura de alumínio voa pela avenida. Não é mais só uma chuva, é ventania, antes de um temporal. São sete horas, se eu continuar caminhando em quinze ou vinte minutos eu chego, o atraso não me parece grande. Mais da metade dos que caminhavam comigo, desde a descida do ônibus, param na marquise de um hospital. Eu sigo e mais três ou quatro também insistem no caminho cada vez mais escuro e silencioso, mudez que só é quebrada por um trovão eventual. Vai chover, sabemos nós cinco. Vai chover e todos os carros parados na avenida já sabem disto. Vai chover e os cães procuram abrigo, os pássaros não voam mais e o cinza, o cheiro e as rajadas de vento, cada vez mais intensas profetizam uma tempestade. Vai chover e cinco pessoas se escondem numa marquise larga, grande e clara de um hospital. Vai chover e os outros quatro caminhantes param no último prédio antes da entrada.

  E eu que sempre soube que iria chover, acabo arriscando porque não tinha certeza do tempo em que primeira gota cairia em mim. As luzes, as buzinas e os passos dos desconhecidos já são passado; agora é escuro, ventania e solidão. Vai chover e eu arrisco os últimos dez minutos, apostando que não me molho muito.Todos sabemos da chuva momentos antes dela chegar, há um aviso, uma série de indícios que nos fazem escolher  abrigo e adiamento, ela sempre avisa com sutileza, que os animais pressentem ou em dramas escuros, barulhentos e gelados. De ação mesmo só há possibilidade de fuga ou enfrentamento, porque impedir que uma chuva caia não é possível, ao menos, ainda.

  Os primeiros pingos caem antes de eu entrar no prédio, olho para céu e vejo um par de tênis num dos fios de energia que cercam o estacionamento. Dois pares de tênis, balançando no alto, em um só dia. O cabelo está um pouco molhado, as roupas quase completamente secas. Quando sento, um temporal começa lá fora, maior do que as minhas narinas poderiam prever. Procuro as fotos e o vídeo no celular, que eu fiz há uma hora atrás, e apago tudo. Não era a infância que faltava, tampouco os tênis atirados nos fios, faltava eu olhar para céu e distraída ver os pés que ainda dançam sobre a minha cabeça. Depois do cinza, é chuva, de toda forma e jeito. Ou enfrenta ou adia a saída. Depois da chuva, é o fim da chuva e o que poderá chegar seco ao seu fim. A chegada da chuva é previsível, basta atentar-se aos sinais; no depois dela é que mora todo o mistério, o mesmo do "Como aqueles tênis foram parar nos fios?". Se olho para céu mais de uma vez, não preciso de foto nem vídeo.

  Nos fios sempre balançarão tênis de meninos que foram roubados e humilhados ou pés vazios de gente que explicam um pouco do que é estar só no tempo, no vento, no inalcançável e ainda dançar. É uma imagem bonita e não me parece triste, mesmo que eu não tenha editado e escolhido uma música antes de apagar o filme. E eu só cheguei com quinze minutos de atraso, quase seca, quase infância.



4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Prezada Professora
Das Artes e das Coisas Boas da Vida
Amanda Machado

"Todos os movimentos se completam em seis etapas, e a sétima traz o retorno." I Ching 24.

Estão todos os movimentos aí no texto, desde o tênis vermelho até o conforto da sala. É a transição entre as forças Yin/Yang, a manifestação de um movimento triunfal.

"Este é o curso do céu. "É favorável ter aonde ir." No hexagrama RETORNO se vê o caminho do céu e da terra." Considerações sobre o capítulo 24 no Terceiro Livro.

Um abraço!

Amanda Machado disse...

Caro Paulo Abreu
semeador dos conhecimentos e enigmas

Seria o hexagrama RETORNO (Fu), uma espécie de renascimento? Uma transição?

"Por isso o sete é o número da luz nova e surge quando ao seis, o número da grande escuridão, se adiciona a unidade. Assim, o estado de repouso dá lugar ao movimento".

Um abraço, ótima semana!

Paulo Abreu disse...

Prezada professora de espírito socrático Amanda Machado

Intrigante e instigante a sua resposta com uma pergunta. Um renascimento? Uma transição? Acredito que estamos em permanente estágio de transição, com anabolismos e catabolismos ocorrendo à velocidade da luz em nossa existência, e não nos damos conta disto. Não sabemos sequer como funciona a nossa personalidade, estruturada na memória - o que é a memória?

Aprendemos mentiras sinceras para que nossa ordem pessoal faça sentido. Há duas semanas fui convidado a proferir uma palestra em determinada universidade. Perguntei aos alunos como eles sabiam monitorar tão bem seus smartphones, se sequer sabiam o seu princípio de funcionamento, e além disto necessitavam de fazer cola em provas da área de química e física cujos conceitos já estão em desuso há mais de cem anos, literalmente anulados pela Física Quântica. Riram da inutilidade das coisas que sabem, mas alegaram que faziam isto para se livrarem daquilo.

Perguntei a uma aluna muito bonita, sentada à frente, qual o significado dela respirar. Deu a clássica e errada resposta - para viver e gerar energia. Falei que estava no caminho, mas tomando uma trilha errada.

Ela foi triunfalmente ao quadro, sob gritos e aplausos da turma, e fez o esquema desde a entrada do oxigênio, a captura pela hemoglobina, a entrada nas células, a liberação de ATP, os NADH's, os FADH's, etc, mas ela não sabia por que respirava, nem como os ATP's liberavam energia.

Por que nascemos e morremos em tempo integral diuturnamente, trevas/luzes, dia/noite, simpático/parassimpático, sístole/diástole - a cada fração de tempo, que não se dá em nosso tempo, renascemos e partimos, vivendo uma eterna transição, "enquanto dure, posto que é chama"!

E tudo isto é energia, tema para outro debate com a senhora, em outro dia.

Um abraço

Do seu discente razoavelmente comportado

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Caro mestre Paulo,
por que perdi essa aula? Fui em outras tantas que não fizeram nunca sentido...
Possivelmente não triunfaria no esquema da respiração, mas ficaria bem atenta a tudo.
Sim, volte (sempre) e me fale de energia!
Abraços,ótimo final de semana