quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Espraiar

  Andam as duas no mesmo ritmo. Sobem, descem, atravessam pontes, afastam  os mesmos obstáculos, às vezes juntas, noutras horas, cada uma com sua força ou jeito próprio. Reconhecem os mesmos paus, pedras ou flores, mas têm sentimentos diferentes por cada um deles; contornam os mesmos caminhos sem nem se olharem. Sabem uma da outra e se acostumaram a ver as duas sombras no chão. Escutam a respiração ao lado, sentem quando o cansaço da outra começa a se aproximar e se resguardam no mesmo instante. Comunicam-se por suspiros; mesmo que não ofereçam a mão uma a outra, reconhecem as batidas do coração vizinho. Nunca houve um passo sem que a outra estivesse. São filhas de um parto só, de genitores distintos.

  Uma anda mais próxima às margens do rio, olha quase sempre para os próprios pés e eles parecem já ligados à água; às vezes cambaleante, parece não temer uma possível queda  ou, talvez, até se prepare muito para um mergulho. A proximidade com a água e os pés sempre molhados, são os sinais que fazem da outra uma vigilante constante. Ela suspeita dessa simbiose da qual ela não participa e, por isso, não compreende. A mulher que cruza os caminhos com os olhos cheios de água, que se misturam  com a correnteza que entrelaça os seus pés, parece ter no corpo o próprio rio; só a outra não reconhece ainda.

  A outra mulher, anda mais próxima da estrada, quase sempre tem o olhar a frente, no desconhecido que ela espera que a espere no final. Mesmo que tenha se acostumado a não ser só, a ser essa ligação misteriosa com uma outra, às vezes se cansa da vigília, da desconfiança, do medo da outra não continuar e tem raiva do peso que a proximidade representa. Se não fosse a outra, ela implacável, já teria ganho mais estrada e cortado as lonjuras, que nunca acabam. Não dá a mão, mas não consegue fugir dos suspiros, respiração e batidas cardíacas da outra sombra. É inflamada, quase nunca tem água nos olhos, ao contrário, parece lançar labaredas de calor e energia vermelha por eles.

  Andam num mesmo caminho, mas carregam destinos que não passam sob os pés das duas ao mesmo tempo. Às vezes, a proximidade da primeira com o rio e o iminente perigo faz com que a outra desacelere suas intenções para oferecer sua sombra mais pacífica para que a outra se sinta sempre acompanhada. Mas há vezes, também, em que a impulsividade da segunda é equilibrada pelos suspiros suaves da mulher com os olhos d'água.

  Uma não mergulha definitivamente no que é feita, porque não sabe ser, sem a outra, nos olhos chegam a brotar mais água, quando pensa que se seguir a correnteza, corre o risco de perder o calor da outra. Seguir dentro não é o mesmo que acompanhar de fora. Não ter a possibilidade da terra, se precisar ou quiser.
  Essa existência compartilhada também afeta o destino da outra, que freia os instintos, abandona a aflição de ser inteira e devotada ao horizonte. Não se afasta, não abandona a fragilidade à margem que ela cerca, porque também precisa saber da sua água.

  Num dia ruim, ambas parecem se descolar uma da outra; uma avança  e a outra ameaça cair, mas este é um dia que não dura muito.  Quando a que olha para os pés, se demora muito na beirada, a outra, na estrada dá um suspiro tão atormentado que ela se comove, limpa a água dos olhos e continua o caminho. E se a outra ameaça a avançar demais sem nenhum sentido, as águas da outra fazem um barulho mais longo ao caírem no rio e ela entende que se for não verá a outra numa volta.

  Andam próximas, nunca se dão as mãos, mas uma não pula definitivamente pela sombra acostumada e a outra não atropela etapas, pessoas e tempos, porque aprendeu a acompanhar o ciclo das águas da outra sombra: um dia de águas tranquilas, dois de rio cheio e caudaloso. Vivem, ambas, amparadas pelo desconhecido da sua dupla. Nunca se olharam, não conhecem as vozes uma da outra, mas as batidas do coração seguem o mesmo ritmo, este dos caminhos imponderáveis entre as lágrimas de uma e a centelha insistente da outra. Andam duas mulheres num mesmo caminho, espraiando pelas paisagens aquilo de que são feitas. Fragilidade e força, duas sombras inscritas no chão de terra.



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