Uma anda mais próxima às margens do rio, olha quase sempre para os próprios pés e eles parecem já ligados à água; às vezes cambaleante, parece não temer uma possível queda ou, talvez, até se prepare muito para um mergulho. A proximidade com a água e os pés sempre molhados, são os sinais que fazem da outra uma vigilante constante. Ela suspeita dessa simbiose da qual ela não participa e, por isso, não compreende. A mulher que cruza os caminhos com os olhos cheios de água, que se misturam com a correnteza que entrelaça os seus pés, parece ter no corpo o próprio rio; só a outra não reconhece ainda.
A outra mulher, anda mais próxima da estrada, quase sempre tem o olhar a frente, no desconhecido que ela espera que a espere no final. Mesmo que tenha se acostumado a não ser só, a ser essa ligação misteriosa com uma outra, às vezes se cansa da vigília, da desconfiança, do medo da outra não continuar e tem raiva do peso que a proximidade representa. Se não fosse a outra, ela implacável, já teria ganho mais estrada e cortado as lonjuras, que nunca acabam. Não dá a mão, mas não consegue fugir dos suspiros, respiração e batidas cardíacas da outra sombra. É inflamada, quase nunca tem água nos olhos, ao contrário, parece lançar labaredas de calor e energia vermelha por eles.
Andam num mesmo caminho, mas carregam destinos que não passam sob os pés das duas ao mesmo tempo. Às vezes, a proximidade da primeira com o rio e o iminente perigo faz com que a outra desacelere suas intenções para oferecer sua sombra mais pacífica para que a outra se sinta sempre acompanhada. Mas há vezes, também, em que a impulsividade da segunda é equilibrada pelos suspiros suaves da mulher com os olhos d'água.
Uma não mergulha definitivamente no que é feita, porque não sabe ser, sem a outra, nos olhos chegam a brotar mais água, quando pensa que se seguir a correnteza, corre o risco de perder o calor da outra. Seguir dentro não é o mesmo que acompanhar de fora. Não ter a possibilidade da terra, se precisar ou quiser.
Essa existência compartilhada também afeta o destino da outra, que freia os instintos, abandona a aflição de ser inteira e devotada ao horizonte. Não se afasta, não abandona a fragilidade à margem que ela cerca, porque também precisa saber da sua água.
Num dia ruim, ambas parecem se descolar uma da outra; uma avança e a outra ameaça cair, mas este é um dia que não dura muito. Quando a que olha para os pés, se demora muito na beirada, a outra, na estrada dá um suspiro tão atormentado que ela se comove, limpa a água dos olhos e continua o caminho. E se a outra ameaça a avançar demais sem nenhum sentido, as águas da outra fazem um barulho mais longo ao caírem no rio e ela entende que se for não verá a outra numa volta.
Andam próximas, nunca se dão as mãos, mas uma não pula definitivamente pela sombra acostumada e a outra não atropela etapas, pessoas e tempos, porque aprendeu a acompanhar o ciclo das águas da outra sombra: um dia de águas tranquilas, dois de rio cheio e caudaloso. Vivem, ambas, amparadas pelo desconhecido da sua dupla. Nunca se olharam, não conhecem as vozes uma da outra, mas as batidas do coração seguem o mesmo ritmo, este dos caminhos imponderáveis entre as lágrimas de uma e a centelha insistente da outra. Andam duas mulheres num mesmo caminho, espraiando pelas paisagens aquilo de que são feitas. Fragilidade e força, duas sombras inscritas no chão de terra.
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