quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Esse nó que não nos salva

  Três voltas e meia; eu contei. A corda deu três voltas no carrinho todo e antes de uma quarta,  ele deu um nó bem apertado do lado direito. Na última volta a corda passou por cima, mas não por baixo; por isso três voltas e meia.
   Não vai cair. O nó, eu acompanhei, é apertado, certo, preciso. Ele com a corda é um homem golpeando um touro, sem um segundo de dúvida, porque num vacilo insignificante, o touro não morre e ainda derruba o homem.  O carrinho todo é de uma organização admirável, metros de pilhas de papel, lata, plástico, organizados por tamanho, compactados pelas mãos hiperativas dele, que desmancham caixas, amassam latinhas e ainda alimentam algum cão eventual que o acompanha. Alguns pôsteres decoram seu ambiente de trabalho: uma imagem de Cristo, um escudo do Vasco, uma foto da Camila Pitanga e uma cachoeira. Desde a primeira vez que identifiquei as imagens, elas nunca mudaram, mas não tem mais de um ano que me atentei a cada uma delas.

  Já o vi uma infinidade de vezes, anda com frequência pelo bairro e o carrinho é quase sempre esse edifício surpreendente. É um homem pequeno, franzino e parece ter algum problema de visão, porque tudo o que ele seleciona em cada lixeira, ele traz bem perto dos olhos. De longe, num primeiro instante, parece que levará à boca, mas é a pouca visão que o aproxima tanto de cada coisa. O cão mesmo, quando algum o acompanha, para ele alimentá-lo, se abaixa, tateia a face canina e quando uma das mãos encontra a boca, com a outra ele oferece o petisco. É de bem poucas palavras, porque já vi quem tentasse alguma conversa, mas ele  se esquiva, com uma palavra ou outra bem baixa, quase inaudível, afastando curiosos faladores do seu território. Somente nos minutos em que se afasta do carrinho, quando come ou descansa, ele se torna mais sociável, mas se volta ao trabalho, o resto do mundo não é ele.

  O carrinho é a sua pertença, é um estado, num mesmo tempo, concreto e imaginário, é seu mundo, é o que dá sentido a sua existência e solidão. Em alguma medida, é uma necessidade muito humana, encontrar em algo, a possibilidade de distanciamento voluntário e provisório. As crianças usam barracas, casinhas de tecido, lençóis amarrados, entram atrás de cortinas, embaixo de mesas. Algumas fazem círculos ao redor de si mesmas, imaginam ou rabiscam no chão. Se as vozes dos outros parecem altas, confusas, cansam os ouvidos,  se querem abraçar o silêncio e não corresponderem as solicitações das quais estão rodeados; se buscam um momento de pertencerem-se mais em solitude e silêncio, constroem um mundo impenetrável. O carrinho é o círculo deste homem; nada o alcançará enquanto ele estiver atrelado a ele.

  Embora eu o tenha visto tantas outras vezes, mesmo que ele já faça parte dos meus dias de segunda, quarta e sexta, eu nunca havia me dedicado a olhá-lo tão demoradamente. O nó, as mãos habilidosas, a arquitetura do seu arranjo de materiais descartados, empilhados em construções tão bonitas mas, principalmente, a sua vulnerabilidade sem o carrinho e a resistência da sua armadura branca, decorada por imagens recortadas de revistas. Ele é verdadeiramente bonito, eu acho. Acho. Não tenho certeza. Porque beleza mesmo é assim, se estou certa de um encanto em minutos, vou estar errada. Beleza é dúvida prolongada, é um queixo que não sei se gosto, é um quadro cujas pinceladas parecem harmônicas num dia e no outro, desalinhadas; uma música que não sei se gosto muito ou detesto.

  Depois dos três nós e meio, ele seguiu pela avenida, grande, lotada de carros, às seis da tarde, com chuva fina e algumas luzes de natal, já apontando.  Eu o via longe, quase talvez bonito, caracol com sua arquitetura nas costas, bonito sim, quase, talvez, quando numa buzina, num som alto de pneus raspando o chão, a pilha inteira desapareceu da minha frente. Levei susto, tive medo, uma aglomeração começou e também fui ver. Corri um pouco, atravessei pelo canteiro, quase fui derrubada por uma bicicleta, me apoiei em um dos carros parados e o vi de longe. A pilha de descartados estava no chão intacta, presa completamente ao carrinho, eu disse que não caía.

  Meio homem debaixo do carrinho, meio caracol esmagado pela própria casa. Uma mãe tampou os olhos do filho no ônibus para que ele não visse a fragilidade de um corpo, queria que as mãos dela também alcançassem meu rosto. Não fui poupada, ninguém chegou a tempo.  

  Caiu o homem, o carrinho, mas o nó continua. O sangue, que surpreendentemente é também vermelho, mancha o asfalto. Pessoas se aglomeram, cinco cães tentam alcançar o amigo-homem,  um carro de polícia chega, o de bombeiros também e a ambulância ainda não. Nunca esse homem despertou tantos olhares. Invadem seu círculo e tiram-no de lá, com a mesma habilidade que ele empilhava os restos do mundo. Eu não aguento e choro há duas horas seguidas.
  Eu vi o nó e ele não me sai da cabeça. A precisão, a certeza, a eternidade apartada das mãos escuras do homem. Estou atada pelo nó e a ambulância nunca chega. Por que a certeza com a corda e a vida tão imprecisa? Queria que o círculo nunca permitisse essa intromissão, a violência dos dias, a vulnerabilidade da pobreza, a invisibilidade de quem eu gostaria de ter mais tempo de duvidar da beleza. Choveu a noite inteira, amanhã a avenida estará marcada para sempre de vermelho. Levantaram o carrinho. O cristo, o time, a atriz e o paraíso são os legados visíveis. Mas é na invisibilidade dele que eu me mantenho entrelaçada. Não quero a precisão do nó, tampouco a certeza da beleza, só não quero esquecer de ver, mesmo quando o círculo for necessário; que eu nunca demore.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 26 de novembro de 2016

Prezada Professora das letras miúdas e da alma grande

Aqui chove, esfria, madrugada avança em quase sábado, a insônia me enamora e vai raiando o dia do descanso do criador de tudo, que o poeta Vinícius habilmente nomeou como o dia da Criação, que somos nós. Mas não era sobre isto que ia falar. Fugiram de mim estas palavras, e feito uma cópia mal formulada e não autorizada de Pirandello, criaram formas e se acharam no direito de serem protagonistas desta carta.

"Caiu o homem, o carrinho, mas o nó continua ..."
Tudo isto é fado, diria Amália Rodrigues em sua melodia contaminante. Aí, a partir de Amália, não foi difícil levar a protagonista da Amanda aos nós de Camões, o salva-guarda da língua pátria:

A Morte, que da vida o nó desata,
os nós, que dá o Amor, cortar quisera
na Ausência, que é contra ele espada fera,
e co Tempo, que tudo desbarata.

Duas contrárias, que üa a outra mata,
a Morte contra o Amor ajunta e altera:
üa é Razão contra a Fortuna austera,
outra, contra a Razão, Fortuna ingrata.

Mas mostre a sua imperial potência
a Morte, em apartar dum corpo a alma.
Duas num corpo o Amor ajunte e una;

por que assi leve triunfante a palma
Amor da Morte, apesar da Ausência,
do Tempo, da Razão e da Fortuna.

E segue a moça narrando:
"Por que a certeza com a corda e a vida tão imprecisa?..."

Eu também penso assim - Tão imprecisa, tão dolorida, tão triste - viver é uma incógnita, mas a gente se diverte de vez em quando, nos hiatos entre uma dor e outra. Lembrei agora de uma menina loira linda, destas pelas quais eu certamente teria me apaixonado na juventude (e, claro, não necessariamente correspondido, como todas as paixões da juventude), Sarah Wesphal (catarinense, autora do blog Papel Baunilha http://papelbaunilha.blogspot.com.br/), cuja crônica "Quase", há uns 15 anos, eu acho, circulou na Internet como sendo do Veríssimo, e foi tal a verossimilhança que acabou sendo publicada na França, e ele mesmo negou a autoria e apareceu a moça citada aí. Eu lembrei disto tudo pelo início da crônica "Quase":

“Ainda pior que a convicção do não e a incerteza do talvez é a desilusão de um quase. É o quase que me incomoda, que me entristece, que me mata trazendo tudo que poderia ter sido e não foi.” (Sarah Wesphal)

E logo na frente, outro fado (tudo isto é fado):

"Mas é na invisibilidade dele que eu me mantenho entrelaçada... "

Eu já escrevi aqui um tanto de vezes que este Eu como protagonista é instigante. Aí, como tudo isto é fado, claro, óbvio, encerro com Florbela Lobo Espanca:, colocando suas palavras na boca da narradora, da moça da janela que sofre com os nós do mundo:

Eu (Florbela Espanca)

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida! ...

Sou aquela que passa e ninguém vê ...
Sou a que chamam triste sem o ser ...
Sou a que chora sem saber porquê ...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!

Florbela Espanca, in "Livro de Mágoas"

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 27 de novembro de 2016
Caro leitor de muitos textos, almas e vida

Nem sei como começar esta missiva-eco. Tivemos Vinícius, Pirandello, a maravilhosa Amália, Camões, a moça loira por quem se apaixonaria, e talvez, fosse correspondido, mas nem chegasse a saber (isto também é bem amor de adolescência) e do caso me lembrei bem, de Veríssimo ser publicado sem ter escrito o tal texto (que bom que me disse o nome da autora e já deixou o endereço do blog, você não brinca mesmo em serviço. Rs. Gracias!)e outras tantas referências-luz, que enriqueceram este nó.
E claro, suas tantas reflexões tão humanas: "Eu também penso assim - Tão imprecisa, tão dolorida, tão triste - viver é uma incógnita, mas a gente se diverte de vez em quando, nos hiatos entre uma dor e outra". E tudo, tudo amarrando mais o nó, potencializando a força que o mantém.
Mas devo dizer, Paulo, que este poema de Florbela me deixou absolutamente emocionada. A minha relação com ele é tão remota e, ao mesmo tempo fresca, porque a renovo diariamente que nem consigo explicar. Obrigada, obrigada!

Que a sua semana seja tão plena quanto eu me senti desde que você trouxe aqui, o que já era meu.