quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Eu nunca sonhei de pijama

  Não adianta se chegou às três, da quinta-feira, se o avião partia às três da quarta; não adianta oferecer a sua fome a quem não sabe o caminho da comida; não adianta conhecer os nomes se você nunca souber das histórias; não adianta ter cinco partes e estar sozinha para dividir, a quem dar as outras quatro? Guardar? Tê-las inteiras?
   De que servem as doze badaladas se não tiver tempo para chegar até a décima? As últimas duas serão de quem? De que é feita uma espera, senão de um tempo que não é mais seu, mas de quem ou o quê a esquina guarda. Dos quatro ou cinco elementos na tabela periódica, que você nunca esqueceu, usou quantos símbolos depois da prova? E as ligações de carbono, ligaram quem ao o quê? As quatro estações começam e terminam bruscamente, na data do calendário, ou se estendem por dias que não se vê passar? O penúltimo mês do ano é também a única chance antes da última?

  Toma um banho morno, a temperatura certa é esta, dizem os especialistas, desliga a TV, o computador, coloca o celular no modo silencioso, confere as portas, apaga as luzes da casa inteira e liga uma luz laranja bem fraquinha perto da cama. Está de camisola de algodão, fresca, limpa e se deita, esperando pelo que quer há tempos. Mais dois goles no chá e o sono virá. Tudo o que quer é dormir seis horas ininterruptas e descansar da vida, dos pensamentos que nunca param, só mudam de lugar: debaixo da cama, no ralo da pia da cozinha, na bolsinha de fora da mochila surrada - era marrom, agora parece um vermelho desbotado - na vira do lençol. Mas tudo tem pensamento. Se puder apagar cada coisa, depois da última luz, vai vir o sono. Acabou o chá, desliga a lâmpada laranja, espera dois minutos, três, trinta, os pensamentos continuam fluorescentes. Vai levantar para ler, escrever, fazer um pudim ou chamar o gato para fazer-lhe companhia, talvez saiam até a varanda e tomem um banho de lua. Os gatos gostam, se reviram e aproveitam a luz da lua. Reparou isso num dia desses e invejou o gato.

  A camisola nunca foi uma boa ideia, mas não consegue se desfazer do ritual. A mãe colocava pijamas de flanela nos três filhos, quando ela era pequena, a avó achava um luxo desnecessário.
- Vocês nunca precisaram de roupa especial para dormir. Que bobagem é essa com seus filhos?
Dormiam de calça e paletó de estampa infantil, no inverno, e short de tecido e camiseta sem gola no verão, passou a dormir de camisola na adolescência. As roupas de cama também eram bonitas, bem cuidadas, a mãe sempre preocupou-se com o sono dos filhos, talvez porque dormisse muito mal.
   Hereditariedade.
  Apagavam as luzes e os pensamentos dela saltavam dos lugares em que eram guardados durante o jantar. As noites eram longas e no escuro sentia-se sufocada, o pijama bonito não a levava ao lugar dos sonhos. Queria ver a lua e a janela estava fechada, queria ler mais um capítulo do livro e a irmã se incomodava com a luz acesa, queria ser grande logo e não precisar dormir.

  Não adianta terminar antes, se a porta ficará fechada até o último acabar; não adianta todas as vezes em que levou o guarda-chuva se a precipitação vier no único dia em que decidiu não colocá-lo na bolsa; não adianta testar todas as chaves, se tiver alguém do outro lado que não a queira dentro. Das duas histórias que te contaram, você acreditou em qual? Senão na terceira que criou a partir das duas. Quantas voltas a água dá antes de chegar ao seu copo cheio de sede e espera? Que desperdício é esse de se preparar tanto para o que às vezes nunca virá?

  As melhores noites dormidas foram no sofá, com a luz acesa, a porta que não conferiu e a mesma roupa que chegou. Tirou a calça, algumas horas depois, e ficou só com a camiseta, com cheiro de rua, mancha de molho de tomate e estampa de caveira; nem o gato conseguiu acordá-la.
Eu nunca dormi de pijama, minha mãe dormia bem, eu acho.
  A insônia é muito exigente, gosta de roupa de cama limpa, temperatura fresca, luzes apagadas ou bem baixas, silêncio e solidão, que pode até ser acompanhada, mas sem partilha de palavras. A insônia gosta de arrumação, de preparo e roupa certa. O sono não precisa de rituais.

  Não adianta a melhor das vontades, se não é feita para o sono noturno. Não adianta chegar um dia depois da partida e achar que deu o seu melhor e que só isso bastaria. Não adianta ter apetite se o que lhe dão não parece o suficiente; vai buscar noutras panelas, o que nesta não parece saciar. Se não conhece as histórias, como vai saber reconhecer quando a chamarem? Se repartir, nunca faltará a quem ou o quê doar. Nunca esperar pelas doze badaladas, às vezes, não há tempo nem para uma segunda. Se resolvo esperar, não cobro este tempo quando avistar o objeto da minha espera. Chegou e pronto. A química, as estações do ano e tudo mais que parece não ter sentido, estão tão atreladas quanto os carbonos, não precisa ver para saber. O penúltimo mês do ano é só mais um, entre os passados e os que virão.

  Não adianta eu esticar a mão e você não entender que é para vir. Não adianta me preparar para um sono que não é meu. Não adianta o banho morno, o chá, a luz laranja, a camisola de algodão, a ausência de som, se o banho de lua, lá fora, é que é feito para mim. Tira a camisola, aninha-se com o gato na varanda e mia para a lua. Eu nunca sonhei de pijama.



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