domingo, 27 de novembro de 2016

Me deram o que eu já tinha

   Passei sombra marrom, quase nunca passo sombra nos olhos, mas ontem quis ir diferente.  E o marrom eu escolhi, devia saber que não era boa cor. Marquei o côncavo sutilmente com a sombra e depois fiz uma linha fina com o delineador, tudo com muito cuidado, sutileza. Com a mão leve, mas precisa de um artista, assinando sua obra - não pode errar, ultrapassar linhas ou tremer. Terminei os dois pequenos quadros e coloquei os óculos escuros para exibir o trabalho na hora certa. Às vezes me preparo muito, não para o que virá, mas para o que eu gostaria que chegasse a ser. Vou à padaria como se fosse a uma festa, escolho um vestido qualquer e vou a um casamento; não correspondo à indicação do traje, porque o evento é quase sempre dentro e lá não cometo o erro.

  Tirei os óculos logo que pude e não houve quem  admirasse a pintura, além de mim. Passei a tarde buscando os meus olhos nas vitrines, eu os achei bonitos e isso passou a bastar. Falamos banalidades e às vezes nem isso; vinha um silêncio desacostumado e, desconfortável, eu inventava uma palavra, um assunto, um suspiro que colocasse pontos nas frases que não dizíamos. Não teve cinema e o abraço foi protocolar. Vesti o meu melhor para ir à padaria e nem voltei com os pães; a melancólica constatação de que a expectativa era demasiado festiva.

  Vi suas sobrancelhas castanhas, tão claras, ralas, enxerguei o topo da sua cabeça a todo o tempo, mas não fizemos referência as nossas distâncias. Simulamos aproximação, intimidade; inventamos, por algumas horas, uma continuação que não é mais possível. O fio é outro; aquele antigo já acabou.  Na despedida, a diferença da altura deu a sentença, absolvidos. Não é de ninguém a culpa da morte. Não há crime, só um corpo que entrou em falência e duas testemunhas que se negam a admitir a fragilidade das vidas. Doeu-me ser centímetros mais alta, anos mais jovem, mas principalmente, ver tantos metros de fio emendado. Entretanto, também foi libertador.

  Anteontem, deram-me um poema que era meu. Esta semana, no começo, colocaram uma música para tocar para mim, mas ela já era minha há muito, dizem que o meu nome é muito meu, disseram que eu pareço ser alguém que eu já sei que sou. E todos são presentes muito mais valiosos do que algo que eu já não tivesse. Porque chegam às minhas mãos um pouco mais da minha história, sem que me lembre de pedir. Vão me dando a mim mesma, vou conhecendo, aos poucos, os que me conhecem e nem sabem. Ontem, o encontro me devolveu o que eu sempre tive e não me esforçava para lembrar. Não ter visto os meus olhos, não ter ouvido o que eu não conseguia dizer, não ter dividido a pipoca, me libertou de ser um remendo, qualquer coisa que não é nada em si, mas a continuação de algo que já existe.

  Um cão late por anos para um cadeado no portão, coloca o focinho por entre as grades, suas patas alcançam as correntes, que só fazem barulho, mas continuam aprisionando sua liberdade animal. Rosna, ameaça, o cão luta diariamente para deixar de ser cativo do seu dono e ir conhecer o que tem depois das hastes de ferro pintadas de branco. Não é o quintal, com a grama sempre aparada, que incomoda nem o afeto do homem, os seus cuidados e os afagos das mãos dos filhos dele ou a segurança do teto, quando chove. Mas ver pernas diferentes todos os dias, lá fora, assistir o portão abrir e fechar, as pombas passearem nas calçadas; tudo isto é uma vida que o cão fareja.
Mas então, o dono abre o cadeado, desenrola as correntes do portão e o abre, até o final. O cão olha, desconfia, se cala. O homem dá o comando:
- Vai! Saia!
  Ele antes espera a coleira, que não vem e o homem continua a gritar.
- Vai! Vamos, corra!
Confuso, sem ter um cadeado para lutar, ele continua com duas patas no quintal e outras duas na calçada.

  Eu também estive parada em frente ao portão aberto, sem saber o que fazer. Desejando não ser uma emenda, uma continuação, mas também não sabendo o que era eu. Até a poesia, a música e o cão que eu sou, latirem dentro de mim.

  As lágrimas marrons desceram pelo tecido branco. Borrei o delineador e sujei o vestido que eu escolhi para a festa que eu não fui. No portão aberto para o qual sempre latiu, o cão se cala, afasta-se um pouco, treme e sabe que precisa ir, não saiu correndo, mas foi devagar, temendo ainda, descobrir aquilo  para o qual ele sempre latiu.
Tirei os óculos quando cheguei em casa, eu conheço o valor do meu traço e não obedeço as indicações de traje - esta sou eu, cão. Não sou um remendo, sou alguma coisa que começa e termina sem cadeados.



Nenhum comentário: