terça-feira, 15 de novembro de 2016

Pousou porque eu estava vazia

  Estava vazia, tão completamente livre que se buscassem, talvez nem memória achariam. Nem me lembrava
que era minha ou que eu era dela ou que tinha alguma responsabilidade com um espaço que eu já nem visitava mais. Mas então, chegou a ave e o que era esquecimento passou a ser a lembrança primeira de todos os dias. Um pássaro fez seu ninho na minha varanda, instalou-se nela sem nenhum motivo especial aparente e eu quis voltar a ter a minha varanda.

 Das dezesseis possibilidades para um ninho, ele escolheu a minha; que nada tem demais. Não bate mais sol do que as outras, pelo contrário; não tem aqueles bebedouros em forma de flor, tampouco orquídeas coloridas na parede. Tinha a varanda do 203, com azulejos portugueses no tampo da mesinha com duas cadeiras, que ninguém usa, mas é tão bonita; a do 302, que foi projetada por um arquiteto e tem um painel de madeira com iluminação especial ou a do 602, com aquecimento para o aquário e a casinha de um cachorro que nunca dormiu lá; tinha a do 804, perto da cobertura, com enfeites peruanos na parede e uma rede, onde dorme aos domingos, depois do almoço, a mulher que fala baixo. Mas o pássaro quis vir comigo, morar justamente na varanda mais desnuda, mais ausente de referências ou visitas. Talvez tenha escolhido, porque lhe pareceu abandonada; poderia ter seus filhotes e nunca ser incomodado.

  Mas ver um ninho, de repente, numa manhã dessas. Ter a vida na varanda que há meses eu só me lembrava de limpar nos dias de faxina e que nem o sol parece depositar seus raios com muita alegria. Ter uma mãe e seus filhos na nudez da minha varanda, pareceu me chamar a um compromisso urgente: o de habitar as minhas ausências. Se ocuparam foi porque pareceu abandonada e se pareceu um abandono, talvez a minha desistência eventual tenha demorado demais, esperando na varanda. Desde então, passei a chegar sem muito movimento, para não assustar; deixar a música em um volume mais baixo, não ligar a TV -  se fosse pássaro não gostava de TV - não sou e não gosto. Fazer comidas que exalassem um cheiro mais suave, para não espantar a ave, com excessos de alho ou caldo de carne. Fui cuidadosa ao varrer o chão, conversava com a ave, mas falava bem baixo e quase não me aproximava do seu ninho, mantivemos uma distância respeitosa.

  Aos poucos, fui fazendo pequenas melhorias nas condições do espaço. Comecei a pensar em uma estadia mais longa ou, quem sabe, até morariam na varanda a mãe e os filhotes? Coloquei dois vasos, perto da porta, um com alecrim e outro com um jasmineiro em miniatura, arrastei um banquinho amarelo que ficava na sala e comecei a sentar lá, para ler um pouco quando chegasse do trabalho. E passei a deixar uma das lâmpadas acesas, não quis que o ninho tivesse que enfrentar o breu completo.

  E o pássaro chegou como uma nuvem. Sobrevoou lento, morno e se instalou demorado sobre os dias vazios, ocupados demais. Chegou cortando fino, tirando lascas delicadas de tédio, assaltando o abandono, exibindo a minha falta de energia, denunciando a apatia da varanda. De repente, o ninho era uma alegria de nada, por nada. Não contei a ninguém, porque era um segredo meu, uma felicidade misteriosa que não era para ser pública.
Eu lia um pouco todas as noites e suspirava, antes de ir dormir:
-Fique quanto tempo quiser.

  Mas pássaro e alegria têm seu tempo de se instalarem e também de partirem. Ambos são livres, desacostumados de um só teto por muito tempo, são exploradores inatos, criaturas que precisam de fluidez e mudança.  
  E, num dia antes de ir para o trabalho, eu disse que ficasse bem à vontade e nem acabava a frase ela já pegava o molho de chaves em cima da mesa, ajeitava a dobra da calça e rodava a maçaneta. Foi. Mas deixou muito o cheiro dela aqui, além de um ninho desabitado. Parei, por um tempo, de frequentar a varanda,  recolhi o banco amarelo, só regava as plantas e fechava a porta de novo. Tranquei a vida em mim, de novo, porque um pássaro achou que abandonar não me doeria ou porque tinha que ir mesmo.
  Pousou, se instalou e quando eu gostava, ele sumiu. Tive uma febre azul de três dias, medo e depois, fui aceitando, entendendo o ciclo daquilo que não sou eu e a liberdade daqueles que só chegam para um encontro e levantam voo para ocupar outros abandonos.

  Um dia, abri a porta. Pintei a varanda, comprei uma cadeira de palha, coloquei duas almofadas com estampa de flores lilás e verde e arrastei, de novo, o banco amarelo para apoiar meus livros. Ainda não veio um besouro sequer, mas tenho sentado lá todos os dias, de manhã, para tomar um café e à noitinha,  um chá gelado ou vinho. Sento na única cadeira, olho para o horizonte e procuro um pássaro que queira me habitar de novo. Agora, a varanda brilha, é limpa e colorida. A varanda do meu apartamento é a mais receptiva da cidade inteira. E se nunca mais um ninho aparecer de novo, eu tomo mais café, chá, vinho e leio muitos livros mais.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Prezada Professora polímata do que é bom nas letras
Amanda Machado

Eu preciso dizer que esta crônica está linda!

Amanda Machado disse...

Caro interlocutor, visita mais constante na minha varanda
Que alegria ler isto já de manhã!

Grata, gratíssima!