sábado, 19 de novembro de 2016

Quando doem os meus pés

  Eu desfaço o nó do cadarço, alargo o quanto posso os calcanhares e tiro com cuidado o que me aperta, incomoda e prende. Depois, coloco os pés em cima de algo macio: almofada, assento de cadeira, sofá ou cama, até a dor ser bem fina, longe, quase nenhuma. Então, devolvo-os ao solo, descalça mesmo e recomeço a caminhada, primeiro, busco os lugares menos duros, os passos mais lentos, as distâncias menos solitárias. Então, os pés se acostumam, se ajeitam e eu calço os sapatos, como se nunca eles tivessem me causado dor alguma.

   Quando levantar da cama, de manhã, me faz querer chorar, porque o sonho parece ser o único lugar que me cabe, eu não fico na cama. Mas levanto com muita gentileza com a minha própria dor. Afasto a coberta, tiro a cabeça do travesseiro, dou um nó no cabelo e sentada, primeiro, coloco um dos pés no tapete, perto da cama, depois desço o outro, suspiro fundo e abandono a cama. Abro as cortinas,  vejo o tempo lá fora, ligo a cafeteira e abro a porta da rua para o gato. Ele pula do móvel, quando escuta a chave, corre, esbarra com o rabo na minha perna e só depois de alguns metros, olha para mim e se despede. A fuga do gato cura a minha dor matinal.

  Quando tomar banho dói, eu ligo uma música, mudo a chave do chuveiro para o morno e começo a me molhar pelos pés, vou devagar, sem pressa de enfrentar a dor, até molhar o cabelo. Faço tudo com muita perícia, cantarolando a lista de músicas que coloquei no aleatório e respiro o cheiro de lavanda do sabonete. Em minutos, a dor cai no chão, junto com alguns pedaços de flores desidratadas, até escorrerem pelo ralo: a dor e as flores mortas.
   Quando esperar é a única possibilidade e não saber só traz angústia, eu procuro uma imagem, um livro, uma janela que me conforte e me distraia do tempo que me prende. Vejo, da minha casa, do outro lado da rua, a imagem bonita de uma mulher e sua calma, ela de vestido azul, quase transparente, servindo o café para o companheiro, invade a minha sala e me dá um pouco da sua mansidão vestida de azul.

  Quando dói o coração, eu respiro fundo, nunca acho que vou morrer, pelo contrário, agradeço a possibilidade da experiência, sento na cadeira mais macia e espero um pensamento que me resgate do fundo da dor. E ele chega sempre, vem numa lembrança do rosto consolador de alguém a quem amo e também me ama, na memória de um dia de sol e banho de mangueira na casa da avó, no cheiro de açúcar mascavo que o homem na minha cozinha coloca em meio mamão. E depois de dois ou três pensamentos destes, o coração se lembra de não doer, eu me levanto da cadeira e tenho apetite pela outra metade do mamão.

  Quando uma  risada muito forte me assalta e dói a barriga, deixo livre a dor, abro espaço para ela circular por todo o meu corpo, como quem dissesse, "não para, não para, não para". Ela chega até as maçãs do meu rosto e os dois pontos próximos ao siso doem profunda e delicadamente e eu aproveito todo o barulho, o frescor, o escândalo de uma risada dessas e só deixo o corpo solto na onda de uma dor que não dói. 
  Quando a felicidade me alcança e eu sinto a dor do medo de não acontecer de novo, na fila do banco, na cadeira do cabeleireiro, no meio da prova de biologia, de manhãzinha quando eu acabava de acordar, na hora de uma resposta errada, no mesmo instante em que o copo que eu segurava cai no chão e quebra, eu recolho os cacos, sorrindo, corajosa e crédula do regresso da felicidade; que talvez nem demore a acontecer. 

  Quando a luz é  alta, a música é conhecida e o cheiro é aquele tão bom, que eu não quero perder nunca mais, eu danço iluminada bem próxima de onde ou de alguém que o exala e espero que o meu corpo se cubra do aroma todo. Quando chegar em casa, não vou lavar o cabelo e ainda ficar com o cheiro que roubei, por mais algumas horas; lembrando e gostando de cada lembrança.
  Quando doem os meus olhos por uma beleza surpreendente, eu olho devagar. Primeiro, para os detalhes e vou ampliando a perspectiva a medida que as retinas não se assustem mais. E olho tão profundamente que a beleza passa a ser minha também, sem sustos, o olho enxerga e carrega tudo até à memória. Lá, a beleza se cristaliza e nunca mais vai embora.

  Quando doem os meus pés, eu lembro do caminho que já ficou para trás e penso no que ainda me chama. Desamarro os sapatos, tiro-os com cuidado, respiro um pouco e volto a calçá-los, quando a dor dos pés não me afastar do que mais gosto no mundo: continuar a andar.



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