segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Com nuvens sob os pés

  Desconfiar do erro, mesmo assim adiar o desvio, insistir mais um pouco por não ter outro plano, ir adiante mais pelo corpo acostumado do que pela vontade. Inventar um motivo, forçar o sorriso, se apertar no banco de trás, por gentileza, por invisibilidade voluntária e assumida . Não entender o silêncio, não escutar a música, se prender ao barulho que não é você; olhar e depois nem se lembrar do que viu, entrar na fila sem saber o que procura, facilitar o troco, a resposta, arredondar a conta. Assumir o volante, os riscos, o compromisso, sem escolher a direção; não ir embora mais cedo, não ir embora, não ir.

  Os dois pés deviam flutuar, nas nuvens que ela mesma enrolou, mas encolhidos em um par de sapatos dourados, ao meio-dia do sábado, eles estão feridos, sangram e em carne viva seguram a mulher que foi ao supermercado de salto. Um raio de sol bate na fivela dourada do cinto dela e o reflexo bate no meu olho,  vem meio torta, cambaleando, cinco ou seis sacolas em cada mão, o sol não bate mais no cinto, mas eu continuo olhando para ela. Primeiro, por cansaço, olhando sem ver, repousando os olhos na confusão dela, mas, depois, fui raptada pelo emaranhado de sacolas, a calça jeans muito apertada, o cinto metalizado e, especialmente, pelos pés, na atadura improvisada, o algodão saltando dos sapatos, os dedos escorregando para fora, na abertura que não liberta, mas esmaga-os. No rosto, rugas de tempo, desolação e dor, ela se senta, ajeita as sacolas no banco ao lado e espera pelo ônibus. Desassossegada, coloca mais um pouco de algodão ao redor dos dedos, tudo o que deve desejar agora é tirar os sapatos. Se tivesse dinheiro para um chinelo de borracha, será que trocaria? Ou sangraria até em casa?

  Uma mulher e um menino, de cinco ou seis anos, se aproximam dela, trazem sacolas do mesmo supermercado, sentam-se ao lado dela e a mulher jovem repreende a mais velha pela escolha do calçado. São mãe e filha. A mulher se defende, diz que sempre usou, mas que hoje os pés estão inchados por causa do calor, a filha diz que se preocupa, que a mãe não tem mais condições de usar saltos tão altos, que para a idade dela há outros sapatos mais confortáveis.
- E tênis, mãe?
- Nunca usei, nunca vou usar. Não combina com o meu tipo. Imagina!
  E enquanto continuam a conversa, esquecem do menino, que explora as sacolas, procura por algo específico. Sabe o que quer, só não tem certeza em qual das sacolas está. Na confusão dos pés da avó, as sacolas se misturaram e ele perdeu alguma coisa que vigiava desde a passagem pelo caixa.

   A mãe se incomoda, bate levemente na mão dele e, só depois pergunta o que ele quer. Ele resmunga alguma coisa a mãe manda-o sentar, retira um iogurte da sacola e dá para ele.
- Só um, porque daqui a pouco vai almoçar.
  Ele diz que quer o pacote de biscoitos, a mãe diz que a bebida é melhor. Ele rejeita, quer o biscoito. A avó intervém:
- Dá para ele, tanto faz, iogurte ou biscoito, se for para perder o apetite dá no mesmo.
Mas a mãe do garoto não quer ceder, insiste. Ele também se mantém inflexível:
- Mãe, eu já tenho idade para ser eu, não tenho?

  A mãe fica confusa, não responde, a avó busca nas sacolas dela o pacote de biscoito, abre, tira três e dá para ele. Ninguém responde a pergunta. O menino se senta satisfeito, ele é todo ele; satisfaz seu desejo, cada biscoito é devorado por uma boca contente, vitoriosa. Não sei se ele tem idade para ser ele, mas já é e sabe. As duas mulheres continuam no problema do sapato. A mulher mais velha tenta mudar de assunto, oferece um dos biscoitos para a filha e come outro. Os três sentados na rodoviária, cercados por sacolas, comendo biscoitos, parecem saber o caminho exato pelo qual devem seguir. Meu ônibus sairá em uma hora, meus sapatos não me machucam, minha mãe não me aborrece e eu não perdi um pacote de biscoitos, mas eu não sei qual caminho é o meu.

 Quase uma da tarde e o ônibus deles chega, um chumaço de algodão cai do sapato da mulher, um dos pés fica completamente desprotegido, ela olha para o chão, para o ônibus quase fechando a porta, para suas mãos ocupadas de desejos ou necessidades, não pede a ajuda da filha, não incomoda o neto. Então, aperta os lábios, carregando sacolas e equilibrando-se na própria dor sobe no ônibus. Um menino que já tem idade para ser ele, uma velha que também tem, uma mulher filha e mãe da certeza. 

  Seguir, mesmo na dor, somente o que faz a alma vibrar, não aceitar trocas, desvios, confortos baratos, só pela facilidade. Não fazer concessões, se a fome for de outra coisa;  inventar sua própria nuvem e caminhar sobre elas, quando a ferida alcançar os pés. Sentar num banco de rodoviária e assistir a três desconhecidos, saboreando as suas certezas, quando não tiver para onde ir. Inspirar, ir até um guichê e pedir a informação possível, afinal eu também tenho idade para ser eu, se esqueci, um menino e sua avó me lembraram ontem.


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