domingo, 4 de dezembro de 2016

Era só um pão com muçarela dentro

   Para onde vão as coisas que não podem durar, que precisam partir, que nos abandonam ainda com a mão estendida, pedindo mais um pouco? Que partem como chegaram, num de repente, mas que nos deixam sem choro, consolados por terem um dia existido.
  A quem pertence o efêmero, em que tempo mora? Chega a morar mesmo nalgum lugar ou é passagem? Já estavam lá noutros tempos e só nos apercebemos porque alçaram um voo de despedida ou nascem e morrem nesse instante mesmo da percepção? O efêmero tem filhos? Teve pais? Ou é acontecimento órfão, sem herdeiros sem a possibilidade de uma continuação? Morre o efêmero? E se morre, renasce? Quem lamenta a partida, vela o efêmero ou acredita numa volta?

  Uma meia perdida do par, a tampa de um pote de plástico que nunca mais apareceu, o cavalo do jogo de xadrez que precisou ser substituído por um vidro de esmalte, três ou quatro peças do quebra cabeças que ficou com a figura incompleta, o espremedor de alho que emprestou, mas já não sabe para quem. O dia que não foi, o abraço que ficou para depois, a mensagem que não chegou a escrever antes da meia-noite e depois achou que era tarde demais, a conversa que não teve, o  fio da meada que não desembaraçou, a marca que achou que o tempo apagaria, todos vão para o mesmo lugar do efêmero? Esperam por ele, aguardam-no quando ele chega de viagem?   

  Por que não sabemos antes que o efêmero é esse mascate que negocia mercadorias de porta em porta e sempre parte antes de chegarmos com o copo de água que ele pediu? Por que a imprevisibilidade, o mistério, a incerteza e interrupção brusca, sem um final escrito, uma última página melhor elaborada? Por que o efêmero não nos dá tempo da última palavra, olhar, afago de mãos? Por que essa inabilidade em só abanar uma das mãos e nos deixar na porta com uma lágrima no rosto? Custava? Por que corre, se esconde, nos mente uma promessa de continuidade, se já sabe que começa e termina em segundos?

  Um abraço quente do avô, que agora assisto no shopping e invejo - não é meu o abraço. Duraram anos, eu sabia que acabaria, mas quando partiu eu estava na cozinha, buscando o copo com água. As mãos macias, com a pele envelhecida da avó, que depois a minha mãe terá e eu também, que eu passava minutos brincando. O salto no monte de palha do milho, depois da colheita, o cheiro do grão, a ameaça de algum animal escondido entre a palha e a transgressão do medo adulto. O pão com muçarela que o pai trazia do seu lanche do trabalho, que não comia, mas guardava para mim, porque eu podia gostar.
- Pai, eu mordia o pão e o gosto era amor.
Agora, o efêmero me deixa esta fome do gesto. Mil pães com muçarela jamais acalmarão meu apetite.

  Aquela noite, tudo o que dissemos e ouvimos, o calado e não ouvido, as mãos, os braços, os pelos, os poros, uma vida inteira sonhada para o dia seguinte e a realidade ao nascer do sol. Vai bater noutra porta o vendedor de sonhos e bijuterias?
  Depois que parte, o efêmero segue para onde? Bate nas portas vizinhas e faz promessas com a mesma cara lavada ou muda o terno, o penteado, tira ou coloca bigode? Se eu alertar a vizinhança,  terei chances de prevenir o engodo? Devo fazê-lo ou o efêmero é o balão de gás que sempre escapa da mão da criança, mas a faz completamente feliz pelos minutos do barbante em sua mão? A alegria do efêmero antes da partida é mais valiosa que a melancolia do seu abandono? Que juiz se comprometerá com a causa?

  Como sobreviver ao efêmero? Como ir dormir uma noite inteira, depois de saber que passou? Que não veremos mais, que a música poderá tocar milhões de vezes, mas aquele único acorde nunca mais se repetirá? Depois da insônia, se ficarmos na cama pela manhã inteira, sem vontade nem de um café pequeno, depois de ligarmos para o trabalho e falarmos com toda competência médica sobre uma possível virose, nos salvará do luto do efêmero? A cama, a canja, o chá ou só o costume nos resgatará do susto da chegada e partida?

  Para onde vai o efêmero? Por que nunca fica mais um pouco? Por que o desassossego das idas sem avisos, sem passagem comprada com antecedência? Para onde vão os segundos  que mudam uma vida, destroçam sonhos e constroem novos? Onde se refugia o que não pode durar? Quem diz o tempo que deve durar? Em que relógio consulta, antes de pedir água?

  Era só um pão com muçarela dentro, dirão. Mas eu sei que nunca foi. Eu sempre comi amor, o gosto era esse, acreditem ou não. O padeiro não sabia, o dono da fábrica metalúrgica em que meu pai trabalhava não sabia e talvez meu pai desconfiasse, mas a certeza sempre foi só minha.
- Era amor, pai. Era.
Existir também é efêmero. O amor no pão, não.



Nenhum comentário: