quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Procura anunciada

  Procuro, entre todos os anúncios do jornal, aquilo que ainda não existe, mas que a qualquer instante poderá nascer para mim, vindo de um mistério de criação que eu não vou tentar entender. Leio cada página em busca de um nome, uma hora com os seus minutos quebrados escritos, a história de alguém que mora do outro lado do mundo, mas que também é minha. Procuro um retrato, uma imagem, um rosto com uma lágrima que ainda não escorreu, um lábio que sorria sem mentiras. Entre notícias boas e ruins, anúncios de óticas e remédios emagrecedores, eu busco um código, uma mensagem secreta, cifrada, na legenda de qualquer foto no canto de uma página. Procuro relações que não acabem em desprezo, pena ou vergonha, que sejam tão profundas quanto libertadoras, que nadar no meio delas nunca desperte medo ou preocupação, que sejam sólidas sem serem estáticas, que sejam fortes sem serem rudes, que sejam delicadas, mas que não se quebrem numa queda boba.

  Procuro, nas ruas passadas e nas que estão a minha frente, um homem gentil que me ofereça uma música, um fragmento de texto, uma parte do seu banco, do seu ombro vazio, um pedaço do seu pão ou um pequeno gole do seu chá.
  Procuro uma mulher de gola alta, que atravesse idosos na avenida, que faça sinal e impeça os carros de serem mais importantes do que ela e a quem acompanha. E que a mulher, por ser mulher, tenha a força da ternura entre os seus dedos magros e uma suavidade muito bonita enquanto atravessa os frágeis de pernas e cabelos grisalhos, coloridos por tinta acaju.
  Procuro uma criança de olhos molhados, perdida da mãe, que da chuva não tenha medo e chute poças d'água, até encontrar um cão a quem queira muito proteger e, que por isso, controle a inquietação dos pés, seduzidos pela explosão dos pequenos lagos urbanos.

  Vivo, entre tantas outras, essa busca por uma porta em que eu possa sair sem entrar ou entrar e logo sair, se não gostar. Que não me prenda, não me isole, não me faça apartada da vida que, às vezes dói e noutras suaviza; que agoniza de desespero e se fortalece de sonhos. Procuro uma janela bem larga, por onde os caramujos passeiem sem serem rejeitados e os afetos circulem entre ventos noturnos, neblinas de inverno e chuvas de verão, que não tenha cadeados, vidros escuros e que eu possa ver de dentro para fora e de fora para dentro, sem nenhuma perspectiva estreita; que seja larga, grande, emancipadora e generosa.
  Procuro um brinco de prata com um coração na ponta, que eu perdi aos nove anos e que desde então o par incompleto, peça única e solitária,  ficou no fundo de uma caixa, esperando a parte perdida.

  Procuro, num atlas antigo, uma bicicleta dourada, que meu irmão ganhou da prima que ganhou da madrinha e que porque cresceu,  ela achou que não coubesse mais  e desde então, troca de bicicletas todo ano.
  Procuro uma rua com o nome de uma operária, porque de padres e presidentes já são muitas, um endereço de uma mercearia que vendia doce de laranja e grãos de café a granel, que o dono deixava que eu tomasse conta do balcão enquanto ele tirava um cochilo lá nos fundos.
  Procuro as cartas marcadas de um jogo em que eu não saia nunca vitoriosa, mas que não me abale com a derrota e que eu veja nos olhos de cada concorrente toda a humanidade massacrada a cada dia pelas notícias, pela política, pela guerra de egos e heranças.
  Procuro o íntimo, o pessoal, o sentimento mais universal de todos e, ao mesmo tempo, que ninguém compartilha, explica, nem enxerga quando não está submerso nele; de fora, só o respeito mesmo, porque para o entendimento é dentro.

  Procuro um espaço vazio, em alguém que me espere, que queira acolher meus excessos, sem cobrança de bagagem extra. Procuro a sabedoria do lado contrário ao das bibliotecas, das universidades, dos museus,  dos homens e suas teorias, recolho aprendizado no meio das moedas dos pedintes, nas bancas de mercadorias sem notas, nos gritos dos vendedores de gás, de empadas e de sorvetes. Busco um lugar em que a minha ignorância seja perdoada, aceita e relativizada, num caminho que sempre seja possível que ela se transforme em outra coisa mais frutífera.
  Procuro um navio aportado na margem que cruze os oceanos, que não escravize a tripulação, que dê muitas horas de contemplação das águas, baleias, constelações e almas.

  Procuro um pássaro azul que cante esperança, a seriedade de uma hiena, o olhar curioso de uma lhama, uma saída para a sede do deserto.
  Procuro um instante de frio que não me espante da rua, que não me leve para casa, um calor que tenha o cheiro do mar, quando é sentido pela primeira vez. Procuro a isca que não engane o peixe, que o alimente sem matá-lo, que não tente aprisioná-lo num aquário iluminado de restaurante caro. Procuro uma calça jeans que sempre feche, um cabeleireiro lá no centro que não precise marcar hora, uma vendedora que me deixe andar sozinha pela loja e que mesmo assim eu saia sem comprar nada. Procuro uma coisa muito rara, sem preço de tão cara, mas que eu tenha dinheiro para sair com ela numa sacola e o rosto iluminado de ter a minha coisa, sem estourar o cartão.

  Procuro uma justificativa para essa busca, uma resposta para a inquietação, uma brisa que afaste todas as expectativas, uma rede que embale a minha insônia. Procuro pela música que nunca tocou, de uma banda que não estreou; pela sorte de um amor que nasce novo todos os dias, pela vassoura que eu esqueci no quintal há vinte cinco anos, quando eu limpava as folhas caídas, achei uma casa de cupim, me distraí e nunca mais voltei à função, procuro pela avó que ainda grita da porta, pedindo para eu terminar o que comecei.   Procuro uma cabine telefônica que faça chamadas internacionais para eu falar o francês que quase nunca uso.
  Procuro quem leia o meu anúncio e se apresente, mande-me um email com o assunto "Eu sou o que a sua busca nunca alcança, a utopia que não a deixa esquecer do mundo nem ser esquecida". Procuro a procura de alguém anunciada no jornal que eu só li, porque um homem me deu uma das partes. Procuro algo que nunca vi, li, assisti ou vivi, mas que tenho certeza que um dia me buscará no caminho.




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