tag:blogger.com,1999:blog-4682287354891995682024-03-25T17:07:27.027-03:00Pareço loucaAmanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.comBlogger993125tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-83569022561318823992024-03-17T22:54:00.002-03:002024-03-18T14:09:07.031-03:00Canção para ninguém voltar<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgwPPJXnE7v2IruJuK0gb-yj9u19Y1c7-nX99dXby8EWAoEQp3VHsnSPzKP-E-hF14mmr3ZTYHge2NWXV3UpgOtFqLGOJQrVxmAuCuAqvax3WhuLRQyzhU72f3RDzcUaG2uEJYNsNJJGA_tQwzxRbMeA9CuHn-8wmpJL6hP_tHAqn3KbI51ZiuKYYaTCAi-/s699/2de50011ea92b22171505c9d79d99802.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="699" data-original-width="564" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgwPPJXnE7v2IruJuK0gb-yj9u19Y1c7-nX99dXby8EWAoEQp3VHsnSPzKP-E-hF14mmr3ZTYHge2NWXV3UpgOtFqLGOJQrVxmAuCuAqvax3WhuLRQyzhU72f3RDzcUaG2uEJYNsNJJGA_tQwzxRbMeA9CuHn-8wmpJL6hP_tHAqn3KbI51ZiuKYYaTCAi-/w323-h400/2de50011ea92b22171505c9d79d99802.jpg" width="323" /></a></div><div style="text-align: left;"><span> </span> Juntamos todas as cartas de baralho que ainda tínhamos em casa; reis, valetes, damas e coringas, de espadas, copas, paus e ouros, um monte delas e nenhuma que pudesse nos fazer melhores jogadores hoje. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Colocamos os baralhos em cima da mesa, como se preparássemos uma isca, algo que pudesse, de novo, nos atrair para uma última partida. Colecionamos cartas, por anos, esperando que elas sozinhas pudessem garantir partidas que nunca acabassem. <span> </span>Aprendemos o tempo um do outro, prevíamos as jogadas prediletas, líamos a indecisão no cenho franzido, no lábio sutilmente mordido ou nas pernas inquietas debaixo da mesa, sabíamos ganhar e também perder; mas nada disso garantiu que permanecêssemos no jogo. Os montes de cartas estão à mesa, mas ninguém lançará sequer uma espada mais.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>— Escopa! <br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Acabou o jogo.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Cantamos, isolados, numa manhã, várias músicas do Clube da Esquina, duas ou três cantei toda a letra, o restante assobiei o que não sabia de cor. Você cantou o Corsário do João e eu não chorei; a solidão permaneceu geleira intacta.<i> Nem Nascente</i> nem S<i>anto Amaro</i>, nenhuma canção que nos mantivesse em par. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Nenhuma cifra, nenhuma nota, nada que nos fizesse cantar juntos de novo. Nosso repertório terminou e não garantimos nenhum coro, dueto ou aplauso. Finalizei com <i>As canções que você fez para mim</i> e nem eco fez. A música começou e morreu solitária em nós. Nem dança, nem ensaio, nenhum passo que sincronizasse o que já fomos. Não faltamos aos ensaios, descansamos a voz quando foi preciso, bebemos água e comemos maçã para mantermos hidratadas as pregas vocais; mas não bastou, desafinamos.</div><div style="text-align: left;">Tampouco embalamos um fim; não fomos capazes de manter o tom no concerto final. </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Esquecemos tudo o que não era bom, engolimos o choro, a raiva, a decepção. Negamos o ciúme, afastamos as diferenças, ignoramos os sinais vermelhos. Desmarcamos a análise, evitamos desabafar com os amigos em comum, ignoramos ligações, sinais e os avisos de que não ia bem. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Insistimos no retrato com presentes, declarações românticas públicas, comemorações oficiais e quase nenhuma celebração impulsiva. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Esquecemos, depois, tudo o que era bom, despejamos o choro, a raiva, a decepção pela ilusão desmantelada. Nos queimamos em ciúme, assumimos diferenças irreconciliáveis e paramos no sinal vermelho, cada um numa rua. Desistimos dos acordos e dos planos, entregamos as chaves ao locatário e abandonamos os sonhos numa caixa de papelão sem etiqueta. Esquecemos que a falta não apaga o desejo e que o desejo existe também na falta. Só não esquecemos de apagar a luz. Andaremos tateando as paredes por algum tempo ainda.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Lembramos da marca da ração do cachorro, dos dias dele com cada um, dos vasos de plantas que dividiremos e dos livros que precisamos separar. Mas lembramos também do aniversário do nosso afilhado, do dia da cirurgia da minha mãe e da formatura da sua irmã. Dos presentes que ainda vamos comprar, mesmo que não façamos juntos e dos que devemos devolver, porque usamos pouco e foram caros. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Lembramos que o final de domingo é sempre desolador para ambos, que o calor é insuportável para mim e arriscado para você, que o meu exame de vista está vencido e que o contato da sua podóloga está salvo no meu celular. Lembramos que dois ainda é bom e que um não era mais.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Condenamos nossas liberdades em favor de uma tradição e, depois, nossos desejos em favor de uma deliberação com mágoa. Julgamos nossas infrações como delitos e nos culpamos pelo que não conseguimos mais jogar, cantar, esquecer ou lembrar. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Condenamos os nossos sentimentos e absolvemos nossas certezas. Impusemos o voto de silêncio ao que sentíamos e declaramos inocentes as falsas testemunhas. Desperdiçamos a liberdade provisória e permanecemos em prisão preventiva. Não há relaxamento de sentença a quem se julga culpado. Somos os dois no mesmo tribunal, somos juízes, defesa, acusação e suspeitos. Não há justiça isenta para nós hoje.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Secamos a louça e as lágrimas; passamos os lençóis e a história limpo; incineramos boletos antigos e sonhos em comum, esvaziamos armários e planos, envenenamos os ratos e a confiança um no outro. Encaixotamos memórias e deixaremos que os fungos consumam lentamente as provas de que, um dia, existimos de outra maneira. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Abandonamos o tapete da porta de entrada, um porta-retratos com um casal do cinema italiano e um coração de conchas que ganhamos numa viagem de férias; para um dia, sentirmos saudades dos três itens absolutamente inusitados.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Aguamos a jiboia, enquanto mantemos o nosso deserto inóspito. Ninguém entra sem anunciar e ninguém sai sem se desculpar; o último que ficar morrerá de sede.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Faltaremos à audiência de conciliação, mandaremos nossos advogados cada qual com um acordo mais razoável possível, mas nenhum que possa devolver o que perdemos na saída. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Assinaremos a dissolução, mesmo sabendo que desde o último jogo de cartas já havíamos abandonado a mesa. Fica combinado: o cão comigo a cada quinze dias e o Clube da Esquina em um dueto imaginário. </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/4s_BIHz9OHM" width="320" youtube-src-id="4s_BIHz9OHM"></iframe></div><br /><p></p>Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-17956613847940195032024-03-15T17:29:00.006-03:002024-03-15T23:36:23.097-03:00Uma ilha tranquila dentro da tempestade<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgDe9xSPeTYF2N6CuVinvWpcHXAgm3hNXA5alwDuF_WbToOY_i6UYLsyjIZERXulVYRyOg4fPGRqJJjdBc5S0qlsP9XhIXRUie__90kRQ20_WmalX3IOsgTKhHgs2mVBn6IijUCPOeRAQWLXgUmdNUAS-9Yy4YlSOaPA1heY_NLI2Qdnfi3Eje0tZJw69vi/s400/64b15f4deb6ca78ad31616320ef69de8.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="400" data-original-width="395" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgDe9xSPeTYF2N6CuVinvWpcHXAgm3hNXA5alwDuF_WbToOY_i6UYLsyjIZERXulVYRyOg4fPGRqJJjdBc5S0qlsP9XhIXRUie__90kRQ20_WmalX3IOsgTKhHgs2mVBn6IijUCPOeRAQWLXgUmdNUAS-9Yy4YlSOaPA1heY_NLI2Qdnfi3Eje0tZJw69vi/w316-h320/64b15f4deb6ca78ad31616320ef69de8.jpg" width="316" /></a></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Parece sexta-feira, fim de mês, parece término de ciclo. Parece segunda-feira, um novo mês, o despertar de outra fase. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Parece um vento que entra pela janela da sala e desestabiliza tudo. Faz com que a
montanha de louça estremeça na pia, a pilha de livros fique um pouco mais torta, abala ideias, aumenta a chama que incinera sentimentos. <span> </span> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Parece agulha que arranha os discos, espeta convicções e faz pontos no rasgo tímido do peito, quase ignorado — não foi nada não! <br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Parece emprego novo que perturba o
sono da tarde, com as listas, as agendas, os montes de perguntas que eu
não me importaria em responder em parcelas. O cartão é débito, o pagamento é inadiável. Minha inadimplência aparece, meu nome mais uma vez indigno de crédito.</div><p></p><div style="text-align: left;"><span> </span>Mas parece também uma onda crescente de prosperidade que despeja na mesa de jantar toda a certeza do mundo. Ninguém mais magoará. A casa está limpa, o quarto aceso e a música voltou a tocar. O espelho não aflige, as mensagens que não chegam não importam mais. A hora do carteiro é irrelevante, o idioma não precisa mais de esforço; se o estrangeiro quiser conversação, ele que aprenda minha língua agora.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Parece só moinho de vento, pode soltar a espada e relaxar na segurança. Tudo tão fiel quanto desenho de criança, olhos amarelos, cabelos de dinossauro, pernas de elefante. Parece a raiz de um problema arrancada. Não volta a crescer jamais.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Parece tarde no sofá com um livro, com a sorte, com nenhuma palavra atravessada na garganta. Parece coaxar de rã no jardim, sem sapo nem príncipe. </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Parece tormenta, tempestade no mar imprevista. Parece coletes de menos para muitas costas. Um comandante afônico, uma tripulação incapaz de ouvir ordens e o mar cada vez mais revolto. Parece que o bote virou e o resgaste custará a chegar. Parece braços dormentes de frio e uma quase desistência de nadar. Parece uma ilha muito longe e um mar muito, muito comprido. Parece que ninguém se salvará e talvez não queiram.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Parece que o mar é o último lugar em vida e que afogar talvez seja menos doloroso do que queimar. Parece que a oração é para a salvação eterna e não para o desfecho na ilha. Num momento, o mar tranquiliza e nadar é menos torturante do que se deixar levar. A água salgada infinita do mar incorpora as muitas lágrimas. Parece que alguém grita: — Homem ao mar. Mas há muitas mulheres também. E o grito é a ilha tranquila dentro da tempestade. Ninguém vai morrer sem esperança.<br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span></div><div style="text-align: left;"><span><span> </span>Parece </span>um amor bonito, sem preocupação estética, mas de suspensório e vestido de poás. Bonito de querer ter mais, de se sentir cheio, com entrada, prato principal, bebida, sobremesa e café. Uma comida caseira, que embora diferente, tem algo completamente familiar; lembra algo bom da infância, o tempero da avó, talvez. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Parece amor que dura, como do cachorro pelo dono, como o da menina pela professora, como o da criança pela rosa. Parece amor que desperta para ser livre, não faz chorar, não provoca dor ou insegurança. Parece fruto maduro, pronto para a mão ligeira alcançar. Parece uma ternura que acolhe, surpreende e não deixa cair no chão.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Parece prova de matemática em maio. Manhã gelada, meu aniversário quase chegando, segundo bimestre e não saber nada. Parece a folha de papel com ideogramas completamente desconhecidos, mas exigindo resolução. Parece que vai ser, no mínimo, recuperação. E por isso o choro, o medo e o soluço interminável — liga para minha mãe. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Parece que nunca vai bem em exatas, parece que existe uma dimensão impenetrável neste mundo. Nem a curiosidade abre essa porta. Parece um túnel escuro e dá meia volta logo na entrada. O abismo de onde ninguém voltou.<br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Parece que alguém lá fora chama e nunca foi tão silencioso tudo. Parece que há abraço, mão, um ombro quente que consola o vazio. E também é inútil chamar, ninguém vem, ninguém virá. A campainha tocou, palmas lá fora, os cachorros da rua estão em uma prosa infinita. Mesmo assim, a rua calada.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Tudo é silêncio, crepúsculo e ninguém. Cadeiras vazias, gentes ocupadas. Tem o postal do palacete que não existe mais, um pé direito alto, com uma porta que parece baixa na fotografia. Mas que era imensa.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Tem um casal de amantes que ainda não se conhece e o outro que se distancia. Torço para as vontades de todos, mas alguém certamente sairá contrariado; talvez os dois casais.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Parece que o mesmo lugar onde termina é também o começo. A porta de saída, é quase sempre a mesma de entrada, só que com placas diferentes em cada lado. Numa prece pode ter raiva, num roupante pode ter afeto genuíno; numa prova de matemática, finalmente, a língua conhecida. Não precisa mais ter medo nem solidão, diz a música no carro. Todo dia e nenhum. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Parece que hoje é o início de um calendário de dias que desaparecem, até não doer e depois voltam, sem nenhuma burocracia prévia para existir de novo. É continuar a nadar e tentar não morrer.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/uVV26aL7vH4" width="320" youtube-src-id="uVV26aL7vH4"></iframe></div><br />Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-15132014741830864492024-03-10T23:54:00.022-03:002024-03-11T15:03:25.886-03:00Embora ainda não saibamos o ritual para despedida<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi0mqhPmjOlD_VJLUkhHiwcPF2LG8rxQwR2vJ8IhiHkA0Rxu0gXq3qX7JoUqPuSjzwHPz2HQf1s9POJZjzk5vMeWXuJyFkUAmxmXOxr2lodMPdu9QGslsdcVdqpOtdTQc1VlR8w5kyMXS4fsZ9Dj5iw2Tcmek8gShhcu0NPMQkaBDP4lVdU-S4oaEc4tqIE/s757/394f72d6690a73bed9cde0bb625607be.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="757" data-original-width="564" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi0mqhPmjOlD_VJLUkhHiwcPF2LG8rxQwR2vJ8IhiHkA0Rxu0gXq3qX7JoUqPuSjzwHPz2HQf1s9POJZjzk5vMeWXuJyFkUAmxmXOxr2lodMPdu9QGslsdcVdqpOtdTQc1VlR8w5kyMXS4fsZ9Dj5iw2Tcmek8gShhcu0NPMQkaBDP4lVdU-S4oaEc4tqIE/w298-h400/394f72d6690a73bed9cde0bb625607be.jpg" width="298" /></a></div><span> </span>Há antes o ritual que precede o gesto. Mesmo aquilo que parece acostumado e mecânico, só acontece depois de alguma cerimônia. Por exemplo, antes de levar o lixo para fora, troca o sapato; há um par específico para tal empreitada. Vai até a área de serviço, descalça os sapatos de casa, abre o armário, pega o sapato de borracha grosseira, leva-o até a porta de entrada do apartamento, volta até os fundos, se abaixa, controla a respiração para não inalar, mais do que o inevitável, odor do lixo, confere os dois nós na boca de cada saco e só então, retoma o fôlego e de uma vez só, segura o lixo, abre a porta, somente encostada, entre a área de serviço e a cozinha, atravessa o corredor e depois a sala, calça o sapato à espera, na entrada, e com uma das mãos dá duas voltas na chave, enquanto segura o lixo na outra, desce os dois lances de escada, chega até o hall, atravessa o jardim, até que finalmente chega ao depósito e coloca cada saco de lixo no recipiente específico.<p></p><div style="text-align: left;"><span> </span>Na volta, sobe as escadas com mais agilidade, já com as mãos vazias de novo, abre a porta, tira o sapato
e, descalça, segue novamente até à área de serviço, onde guarda um par e
calça o outro. </div><div style="text-align: left;"> <span> </span>Antes de fazer o almoço e jantar, escolhe um álbum de jazz, e então, depois de iniciada a trilha sonora, lava cada panela, concha, tábua e colher somente com um pouco de água corrente e seca com o pano de prato, ainda que tudo estivesse limpo nos armários; mas é o ritual. Como antes de sair, conferir se as janelas estão mesmo fechadas, se os tapetes estão devidamente esticados e as rugas na colcha da cama, provocadas ao sentar para calçar um terceiro par de sapatos, foram desfeitas com os dedos quentes. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Para receber visitas, é o bolo de cenoura que ela bate no liquidificador, o conjunto de xícaras que fica na cristaleira da sala e a alfazema que borrifa em lugares estratégicos: almofadas, toalhas de rosto e cortinas. </div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Só conheço as cenas pelo som habitual e recorrente há mais de quinze anos. Nunca testemunhei completamente suas cerimônias e gestos — talvez alguns recortes, quando eu a ajudava com as sacolas ou ela me convidava para um café — mas os reconheço profundamente pela audição. Sei a ordem, o ritmo e, inclusive, me norteava por eles. Quando a primeira música começava, era também minha hora de parar o trabalho e pedir ou fazer o meu almoço. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Moramos no mesmo prédio e isso nos ligou de uma maneira irremediável, ela é a minha vizinha de cima. E um edifício residencial é uma espécie de organismo, cujos apartamentos funcionam individualmente, mas que, interligados, produzem uma mesma frequência. É como se o apartamento da vizinha fosse uma nota e o meu uma outra que a corresponde em plena harmonia.Temos nossas singularidades, mas acabamos por funcionar sincronizadas.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Há duas semanas, minha rotina se desestabilizou com o silêncio no apartamento dela. Eu e o gato nos atrasamos repetidas vezes, nosso almoço, meus e-mails e leituras, as sonecas e passeios dele, minhas corridas e o banho de sol dele. Nos tornamos mais sozinhos e ainda mais desorganizados.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>À princípio não dividi com o gato a preocupação com a saúde dela, há um surto, mas a idade dela não é avançada, há a fragilidade do corpo, mas as condições de atendimento médico dela não são as piores. Há o meu medo, mas há também a esperança de recuperação.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Mas ao final das duas semanas, além de atrasados, nos tornamos menos confiantes; o porteiro, a síndica, o vizinho e o marido eram mais pragmáticos.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Perdida, experimentei trocar os sapatos antes de levar o lixo e depois de voltar. Angustiada, adicionei álbuns e mais álbuns de jazz na minha lista de reprodução do tocador. Xícaras, bolos de cenoura, pratos lavados depois de limpos, tudo o que aproximasse a minha nota da dela. Tudo que me afastasse do silêncio dela. O gato também sucumbiu à tristeza e perdeu boa parte do apetite, mas me ajudou com a troca dos sapatos. E nada.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Nem som, nem cheiro, nem nota que se complete à minha. Nem chaves, nem sacos de lixo ou sapatos grosseiros de borracha. A minha vida se modificou sem escolha, a do gato também é outra e ele só não reclama porque sabe que estou perdida.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Hoje é tormenta; as janelas estão fechadas e o pano de chão dobrado na fresta da porta. Estou refém desse silêncio imenso que inundou meu
apartamento desde que eu não pude mais ouvi-la. Não sei se é egoismo da
solidão ou saudade de uma ternura que habitava meu cubículo dentro do
peito. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Quando a partida é inevitável e a intimidade é pouca, paira a dúvida pela razão
fundamental das lágrimas. É amor ou falta? Saudade de uma pessoa ou do que ela ordenava no meu mundo? E se amor é isso: o ritual da organização; a respiração síncrona, a resposta da nota?<br /></div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span> Chorei a manhã inteira pelo ritmo que se calou. Troquei os sapatos, fechei os sacos de lixo, mas fiquei completamente desamparada pelo soluço dele na cozinha, onde, antes, eu só ouvia o barulho dela. Agora ele tem uma partitura inteira para compor solitário, porque ainda não sabe de mim e do gato. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Foram muitos os rituais que aprendi com ela, mas o da despedida faltou. Permaneceremos calados e perdidos, até que eu descubra ou invente um.<br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/yco8uE4wT7M" width="320" youtube-src-id="yco8uE4wT7M"></iframe></div><br />Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-43054937652806450922024-02-18T22:10:00.003-03:002024-02-19T00:29:49.743-03:00As sete cabeças vulneráveis e o coração inviolável da hidra<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjFl4u1xVRyLBVcdyXsCw8MbJv_E7JVfX77ika58LrY1U7Yq_tB_p8E-qebasgi5ZtuonqV-n4hWFtUMr2oMFt9nIVHraO8QSgbdXt_ai3TnUeRbSzoSCqxGXi7mHo5om3FqYHrAkEv42Cd1PeXCAYbYNZfpiVDVODIQZWJ1er32uPvXqDFRzPOWOqA_Ksr/s660/6fc312dc2a54836e5b8b20ea90d46b00.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="660" data-original-width="564" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjFl4u1xVRyLBVcdyXsCw8MbJv_E7JVfX77ika58LrY1U7Yq_tB_p8E-qebasgi5ZtuonqV-n4hWFtUMr2oMFt9nIVHraO8QSgbdXt_ai3TnUeRbSzoSCqxGXi7mHo5om3FqYHrAkEv42Cd1PeXCAYbYNZfpiVDVODIQZWJ1er32uPvXqDFRzPOWOqA_Ksr/w341-h400/6fc312dc2a54836e5b8b20ea90d46b00.jpg" width="341" /></a></div><p></p><div style="text-align: left;"><span> </span>Sete cabeças a Hidra de Lerna ostentava em seu corpo de mulher; pavor de qualquer homem.<br /><span> </span>Uma mulher com sete monstruosas cabeças, que se regeneravam a cada ataque. Cortar a cabeça da hidra não era o suficiente; atentar contra as cabeças da mulher era desperdício bélico. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Cada tentativa um renascimento. Imagina o horror: planejar, se armar, se colocar à distância calculada — nem mais nem menos —, acertar a cabeça, degolar, e antes de comemorar o feito, a cabeça partida voltava íntegra ao pescoço.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Sete cabeças que não se curvavam ao inimigo. Sete consciências que não podiam ser submetidas. Sete mentes sobreviventes às violências. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Uma hidra-mulher que assustava os homens. Uma monstra de sete cabeças absolutas. Nada e ninguém a temer. Uma gigante que não podia ter qualquer cabeça ceifada.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Sete cabeças de sonhos, planos, vontades, virtudes e defeitos. Sete cabeças prodigiosas e igualmente estúpidas. <br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>A mulher-hidra de cabeças indestrutíveis caminhava sempre só sob os ataques dos heróis gregos, que cobiçavam decapitar definitivamente a mulher-monstro.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Cada cabeça uma teimosia, a insistência em não acabar. A Hidra de Lerna, caminhando sob chuvas de flechas, punhais e espadas; a Hidra de Lerna sem um minuto de paz.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Cada cabeça uma demonstração de resistência ao perigo; a cada renascimento, um homem vingativo despontava.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Sete cabeças que serviam ao medo, à curiosidade, ao desafio masculino; sete cabeças mais extraordinárias que as vidas felinas, porque essas sim se acabavam. <br /></div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Sete coroas caem ao chão, sete coroas voltam ao seu lugar. A cabeça da hidra sempre vulnerável, porque acertavam o alvo, mas também resiliente, porque logo se erguia antes de um novo ataque. Sete coroas que não se perdiam no sangue, na aflição, no barulho ensurdecedor das investidas hostis.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Terá sido amada a hidra ou a mulher? Terá amado a mulher ou a hidra? Quem em Lerna teve algum sentimento pela hidra, que não o medo? Quem desejou proteger a poderosa Hidra de Lerna das armas dos filhos de Zeus? Em quais travesseiros terá a hidra sonhado? Em sete cabeceiras de cama ou em uma cabeceira em que coubessem os sete sonhos? <br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Sete grampos caídos dos penteados, sete secadores para os cabelos compridos da mulher-monstro. Terá tido algum dia de relaxamento completo? Sem luta, sem ataque, sem rir dos heróis arruinados? </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Sete cabeças com ideias síncronas ou sete conflitos cotidianos? Se uma cabeça decretasse uma sentença, como as outras se comportavam? As cabeças eram um time ou agiam isoladas? </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Sete chapéus que não aproveitavam as férias ou o verão. Sete demônios que deveriam ser combatidos pelos anjos musculosos e a Hidra de Lerna para sempre atarefada. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Sete couros cabeludos escalpelados; sete cabelos refeitos em segundos. Sete maneiras de assistir ao morrer e nascer de novo. Sete fins e recomeços. </div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Sete longas tranças sem príncipe ou resgate. Sete cabeças ambicionadas. Sete alvos diários e a tentação constante de matar sete ideias.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Para conter as cabeças da hidra só o fogo, depois do ataque. A receita do extermínio quem pensou foi também uma mulher. Nenhum herói se sagraria vitorioso se não fosse uma oitava cabeça feminina. A besta de sete cabeças nunca mais assustou. A hidra-mulher-dragão afogou em paz depois do fogo.<br /></div><div style="text-align: left;"> <span> </span>O que nunca ocorreu aos guerreiros é que o coração da hidra era único. E mesmo depois de assassinadas cada cabeça, o coração permaneceu intacto. </div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Para cada sete cabeças vulneráveis, um coração inviolável de hidra. Em Lerna, Frutal, Viena, Alegrete, Hanói, Maragogi e Boston ainda há homens que tentam decepar cabeças que não podem ser arrancadas e ainda há mulheres-monstro cujo coração é incompreendido. </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/zmshYysteHk" width="320" youtube-src-id="zmshYysteHk"></iframe></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div>Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-60621285150375428782024-02-14T21:00:00.002-03:002024-02-15T13:06:20.143-03:00Adão e Eva ao contrário<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg2QWovOEEYGp0FZpU9eFuiK74VXfnTiYkL8NCKX_z_LKfBFwdTMsNO7j2Tg98bozmBjDJ_AqolhExypaOAwePQ3aCnoT2qj-ALEflMWXgfGhfhb_mDd-e_yxkBMfXdj0JeGfkKCkcJPrqUVy38xtcC3-BxiJviwqdtWnPoiMpT6R7Um40pLx88IiqZIrE7/s752/cd670f8b80bbbe3226cbd862db30cc2e.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="752" data-original-width="564" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg2QWovOEEYGp0FZpU9eFuiK74VXfnTiYkL8NCKX_z_LKfBFwdTMsNO7j2Tg98bozmBjDJ_AqolhExypaOAwePQ3aCnoT2qj-ALEflMWXgfGhfhb_mDd-e_yxkBMfXdj0JeGfkKCkcJPrqUVy38xtcC3-BxiJviwqdtWnPoiMpT6R7Um40pLx88IiqZIrE7/w300-h400/cd670f8b80bbbe3226cbd862db30cc2e.jpg" width="300" /></a></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Ela não comerá a maçã, porque não é facilmente persuadível; você não dará costela alguma para que ela seja feita, porque a sua carne não é fundante da humanidade. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Dentro deste mesmo mundo, paraísos e desmoronamentos sucessivos. O belo e o feio numa mesma árvore sem nome. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>A roupa já é mais por costume do que pudor, ninguém se envergonhará com o nu depois de uma mordida ou de um banquete completo. <br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Nenhuma serpente os perturbará, mas todo o resto sim; os ciúmes, as investidas eróticas alheias, o tédio, aquilo que ficou para trás, as dívidas que contraíram quando construíram a casa.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Ninguém comerá aquela maçã e os vizinhos saberão das discussões, das caras amarradas, da sogra que chegou sem avisar e ocupou todos os espaços do varal, onde vocês penduravam suas toalhas, depois do banho. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Nem todos os dias Vinícius de Morais tocará nas caixas de som do apartamento, pelo qual pagam longas prestações. O pão dormido, o bolo solado, o arroz empapado, o café ralo, a falta de açúcar e entendimento. O diálogo não há, não tem mais emoção na dispensa e chove muito para ir até ao mercado agora. <br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Às vezes, no banho, lastimarão o abandono do barco em favor da casa. Às vezes, na cama, lamentarão os sonhos individuais perdidos em nome daqueles partilhados. </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Ninguém nascerá de uma costela fundadora, ninguém será o osso inicial. As cortinas, os tapetes, os amigos em comum, as plantas que morrem diariamente afogadas ou secas, as viagens que não puderam concretizar, o armário embutido que por dois milímetros atrapalha a porta e as capas de almofadas sufocarão. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>A labirintite da sua mãe, a sinusite do meu pai, o número do Pis/Pasep, o chá de revelação, o tamanho da fralda que veio no convite que se perdeu, nada disso foi a serpente quem provocou. Eva não tem culpa. Adão não foi enganado. Porque tudo isso já fazia parte do paraíso prometido.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>O Éden é também essa fumaça que vem da rua, esse espelho embaçado no banheiro, o lixo que ninguém leva para fora, o parto de fórceps de um dos dois, a escola montessoriana que um estudou enquanto o outro sentia náuseas com o aroma do mingau de banana de todos os dias da creche a qual frequentou. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>O Éden não foi destruído pela desinformação ou curiosidade feminina; o jardim não desmoronou pelo descuido de Adão. <br /></div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>O pecado original é a poeira cinza que entra pela janela da cobertura, é o barulho que invade os fundos do apartamento térreo, é a tosse de madrugada pela fumaça dos carros que inalou, enquanto caminhava. O pecado desencadeador é o brilho perdido, a admiração que não se encontra, o inseto que rodeia a lâmpada e ninguém se levanta para ajudá-lo a encontrar a saída ou uma outra luz. O único pecado é entregar a pedra nas mãos de Sísifo sem assisti-lo na subida.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>A serpente não falará o mesmo idioma que vocês compartilham, não tentará persuadir Eva, tampouco sussurrará qualquer coisa para que Adão não desconfie. O pecado crucial foi quando a voz de Eva se tornou inaudível para Adão e ele irreconhecível para ela.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Porque não existe Éden sem dor, não condenarão existência alguma quando findarem. É triste, mas também consolador que o mundo não se acabe depois de vocês. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Os vizinhos saberão de outros, os ciúmes cercarão terceiros e as suas ruínas não serão fotografadas, pesquisadas ou preservadas. O Taj Mahal já existe, a muralha da China não se moverá depois de vocês se apartarem. O mundo continua o mesmo e a história da serpente se repetirá pelas próximas gerações; embora a culpa de Eva pudesse ser dissolvida nessa. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>O apartamento será financiado, de novo, para outro casal. Outro poeta deixará de frequentar a casa aos poucos e os insetos farão círculos de rasantes ao redor das lâmpadas que outros também não apagarão.<br /></div><p><span> </span>Um homem e uma mulher podem mais do que fazer um filho. Uma mulher e um homem podem mais do que carregar o peso de um paraíso em desencanto. Adão e Eva podem salvar sua própria humanidade depois de uma demolição. O Éden não termina quando o último quadro é retirado da parede, mas quando ninguém mais se aproxima da moldura.<br /></p><p><br /></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/RryQ8V3rWGo" width="320" youtube-src-id="RryQ8V3rWGo"></iframe></div><br />Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-16050077301528242222024-02-04T22:30:00.091-03:002024-02-04T23:21:37.976-03:00Esse infinito que talha o céu e mora no fundo do copo<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: left;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEitSpHLsVjBD7On1AbAiuinFn_sMw7BnEBQYAcWPnW-Jao7kKcuWYumdPRb43od-71z9BvUANtL_rtAimFcaz9MJcZkOZNYgPJZQMZZ3rXrOWVkTcmx9C5no8cKozIdZbrmpnUGoUO2NBJFL4UUPCj6bNRyncE8t1KlE_TeTOLYDDpCexK5eXEzM_arL33g/s691/fac53b2b4d5d38f225fd161adcf505d5.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="691" data-original-width="564" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEitSpHLsVjBD7On1AbAiuinFn_sMw7BnEBQYAcWPnW-Jao7kKcuWYumdPRb43od-71z9BvUANtL_rtAimFcaz9MJcZkOZNYgPJZQMZZ3rXrOWVkTcmx9C5no8cKozIdZbrmpnUGoUO2NBJFL4UUPCj6bNRyncE8t1KlE_TeTOLYDDpCexK5eXEzM_arL33g/w326-h400/fac53b2b4d5d38f225fd161adcf505d5.jpg" width="326" /></a><span> </span>Tem um bebê no meu colo, ele está dormindo e não quero acordá-lo. Tem uma mãe no reflexo do espelho ela está cansada e eu não quero pedir que me ajude a manter o bebê no meu colo dormindo. Tem um entregador, tocando o interfone, não quero deixá-lo, esperando, tampouco acordar o bebê e sobrecarregar a mãe. Logo, o bebê vai chorar, a mãe vai acudir no cansaço e o entregador vai dizer que eu demorei.<br /></div><p style="text-align: left;"><span> </span>Tem uma marca no meu travesseiro, um retrato seu na minha agenda antiga, da qual não tive coragem de me desfazer ainda. Tenho esse livro datado, com compromissos passados que não vão me levar a lugar algum.<br /><span> </span>Tem um nome do qual eu não me esqueço. Tem um rosto que se apaga um pouco mais a cada dia, tem um perfume que nunca mais sairá da minha roupa; tem um sentido que não vale mais um pensamento.<br /><span> </span>Tenho um horário na análise, que eu talvez desperdice; não sei se desmarco ou invento uma história na qual eu não reclame. Tenho vergonha de me lamentar.<br /></p><div style="text-align: left;"><span> </span>Tenho um tapete novo na sala, gosto dele, de como ele orna com os outros elementos do cômodo, mas não deixo de pensar que ele é mais áspero que o antigo. Não sei se me acostumei demais a pisar no macio. Tem uma borboleta na minha janela, não me levanto para não espantá-la, deixo a água do café ferver mais tempo, na esperança de vê-la levantar voo. A chaleira apita mais forte, me assusto com um barulho no corredor e no segundo que eu deixo de olhar as asas, eu perco de vista a borboleta para sempre.<br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Tem um mundo lá fora que talvez eu deva experimentar, mesmo que o café esteja fresco e eu goste tanto de estar aqui.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Tem alguém que quer ir e eu não vou parar. Tem alguém que quer chegar e eu não vou fechar a porta, se ele souber esperar, chamar com cuidado e limpar os pés antes de entrar. Tem alguém que é dono da minha casa antes de mim, tem alguém que mora numa casa da qual sou dona; penso se não devemos nos assentar onde é nosso e devolver o que é do outro.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Tem um anglo-saxão no apartamento ao lado. Eu digo anglo-saxão, porque foi assim que ele se apresentou para mim.Tem um livro com poesia africana na minha mesa, com um Sankofa que eu quero ter como quadro ou tatuagem. Tem uma porta emperrada no armário de papéis e eu não sei se passo óleo ou a deixo fechada por mais algumas semanas.</div><div style="text-align: left;"><span> </span> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Tem um exército que avança e outro que recua. Tem exércitos que nunca se movem, estão à espera de silêncio e sangue; mas tomam suco de caju, cuidam dos jardins dos quartéis e pintam as guias de cal. <span> </span><span> </span><span> </span>Tenho prazos e insônia. Tenho festa de aniversário e férias que acabam na segunda-feira — amanhã. O que significa que todo mundo envelhece, além de mim, e que eu não vou mais andar descalça durante os meus dias. Sou uma mulher pré-histórica: faço registros cuneiformes nas paredes da minha caverna, tenho o cabelo desgrenhado, ando descalça e alerta aos ataques dos animais. <br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Tem uma zeladora sensata que cuida do meu prédio, bate à porta e anuncia o erro. Dá ordens, nunca me trata como uma filha que quero ser, não passa a mão na minha cabeça e não diz que tudo ficará bem. Mas me manda separar o lixo e por para fora, antes da meia-noite, pagar o condomínio em dia e não deixar a música alta. A zeladora é, finalmente, a maturidade.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Tenho os olhos para o céu o dia inteiro. Sou pré-histórica também com a natureza. Lembro que o último céu do ano foi o mais bonito, embora eu tenha me quebrado à
tarde. O de hoje não é tão fotogênico, mas eu não me parto, além do que já estou.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Tomo o café que eu mesma fiz e passo a mão na minha cabeça agora. Como minha mãe faria, se eu pedisse ou chorasse na sua frente. Dois meses para o nada, quatro para algo que não tem mais volta. Entre o céu e o café, a certeza do que é bonito se instala. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>A zeladora bate à porta, mas é domingo, justifico que não tenho obrigações para hoje. Não peço desculpas, não separei o lixo, mas sei o que é bonito. A zeladora é, finalmente, a consciência.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Essa casa pequena, essa casa tão longe, na qual não chego nunca, mas da qual também não fujo. Esse telhado pesado demais, que não me arrebente, que não me sufoque, que não pese mais as asas da borboleta. Essa parede de pastilhas, da qual todo dia cai uma, esse céu nublado que anuncia o temporal, esse tapete áspero que não me afasta do chão. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Tem, nisso tudo, esse infinito que talha o céu e mora no fundo do copo de café que eu passei agora há pouco e que bebemos, eu e a zeladora; sem estardalhaço.<br /></div><p><br /></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/71xmrULJ-ms" width="320" youtube-src-id="71xmrULJ-ms"></iframe></div><br />Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-41626194911693230362024-01-15T00:37:00.007-03:002024-01-19T16:07:05.481-03:00Coisas das quais preciso menos do que um peixe de uma bicicleta<div style="text-align: left;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgHxLvKzQrDB-oQfj1hV2hGc_nI1zkUSTZP1HWVs-aDG2HgYSkyokOl0ZiFDuev31LNyM0jaJjiJFSes6uZ4_ND3K882M4Dunwl6Q6ynC65k4M-DlpRUw02W1goybOQyN8e7upU81YsBZ7lk-_Ql1VtAfO27SkZxfgoHLMmMFulkG_pu7QLhzF_z-1_bnYg/s1002/f22970639c540a127682302f257f9c73.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1002" data-original-width="564" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgHxLvKzQrDB-oQfj1hV2hGc_nI1zkUSTZP1HWVs-aDG2HgYSkyokOl0ZiFDuev31LNyM0jaJjiJFSes6uZ4_ND3K882M4Dunwl6Q6ynC65k4M-DlpRUw02W1goybOQyN8e7upU81YsBZ7lk-_Ql1VtAfO27SkZxfgoHLMmMFulkG_pu7QLhzF_z-1_bnYg/w360-h640/f22970639c540a127682302f257f9c73.jpg" width="360" /></a></div><span> </span>De isqueiros descartáveis, cigarros eletrônicos, cinzeiros personalizados, piteiras, cuspideiras ou enxaguante bucal de manga.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>De invadir um território que não seja meu, mesmo que eu quisesse que fosse. De uma casa que não posso dividir com um gato, de um amor que não se senta à mesa ou saiba onde guardamos os pratos.<br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Raquete de tênis, luta de MMA, UFC ou um ringue. De um homem que grite nem de um que dê socos na parede, quando contrariado.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>De uma passagem de avião para o Texas, de uma bicicleta com rodinhas, mesmo que eu não tenha aprendido, ainda, a me equilibrar.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>De um bonde quebrado chamado Desejo. De um trem parado rumo às estrelas. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>De uma penteadeira com luzes em volta do espelho, de um estojo de maquiagem, de um curso de datilografia, de água com açúcar quando o choro for de raiva.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Da opinião de um homem branco hétero, da admiração de um homem branco hétero — porque só a teria se eu fosse um homem branco hétero. Tampouco da atenção, dos conselhos, da exibição e da vaidade de um homem branco hétero. Das mentiras.<br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Do contato de um design de interiores ou de sobrancelhas; de uma escada caracol. De mertiolate na ferida ainda aberta. </div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Do dorso de um leão morto, da cabeça de um veado alvejado, da carne de uma capivara atropelada, dos chifres de um cervo, de um lobo-guará empalhado na sala de estar, do marfim de um elefante. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Dos olhos pedintes de quem já tem muito. Da meritocracia dos exploradores históricos. Da mão de alguém cuja cabeça não está mais. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Da professora de catecismo, de Benzetacil nas nádegas todo inverno, de Biotônico Fontoura para estimular o apetite. Das fotos da Britney Spears numa lanchonete, chorando com o filho bebê no colo. De pão sem glúten, da dieta da sopa. <span>De uma calça branca de cintura baixa, de um confisco na poupança, de um caçador de marajás. De uma oitiva entres a supervisora e adolescentes que matavam aula na quadra de esportes. </span></div><div style="text-align: left;"><span> </span></div><div style="text-align: left;"><span><span> </span>Não preciso dos olhos condenadores para Capitu, da grosseria do Olímpico com a Macabéa, da morte da Baleia na travessia para fugir da seca, da última Coca-Cola para Clarice Lispector.</span></div><div style="text-align: left;"><span><span> </span>Das lágrimas do crocodilo, das flores no dia oito de março, da condescendência quando explicam um problema no meu carro. Das músicas, dos poemas, das homenagens públicas só para as musas; das cartas de Manuel Bandeira, aconselhando a noiva a não fazer poesia. </span></div><div style="text-align: left;"><span><span> </span>Da tristeza dos três tigres e tistreza do liberal na política e conservador nos costumes. Das palestras motivacionais nas empresas, dos coaches para relações amorosas, de quem chama depressão de energia ruim. Da piada homofóbica, racista, misógina na sala de café do escritório — engasgo.</span></div><div style="text-align: left;"><span> </span></div><div style="text-align: left;"><span><span> </span>De algumas lembranças, gatilhos e obstáculos emocionais. De alguns esquecimentos, bloqueios e entraves afetivos. Da sisudez no trabalho e inocência nas relações pessoais; da kryptonita que é essa medida do mergulho. </span></div><div style="text-align: left;"><span><span> </span>De uma maratona diária para ganhar um cartão em maio com o adjetivo: guerreira. De uma vida inteira calada para ganhar o apelido: princesa. Da dieta, da intervenção cirúrgica, dos corseletes, das unhas que não deixam trocar o pneu.</span></div><div style="text-align: left;"><span><span> </span>Do requeijão no copo de plástico e do molho de tomate na caixinha; na minha vez, tenho que gastar com copos de vidro sem nada.</span></div><div style="text-align: left;"><span><br /></span></div><div style="text-align: left;"><span><span> </span>Da mudança climática, dos dois sóis no meu verão com um ventilador em devolução há semanas. De biquíni de cortininha que enche de areia, de prancha para meninos e baldinho colorido para meninas, na praia. Do Além do bojador ser deles e elas nascerem penélopes. </span></div><div style="text-align: left;"><span><span> </span>Do tarde para começar, do cedo para partir, do sempre em tempo de perdoar, o que nem sempre é perdoável sem Deus. </span></div><div style="text-align: left;"><span><span> </span>Dos motoristas que não enxergam a velhice, dos banners de empresas de empréstimo consignados que exploram os sonhos e roubam a sobrevivência. Da falta de concesso sobre a voz do Milton Nascimento ser a mesma que a divina; de um mundo masculino que há muito silenciou a Elis Rainha. </span></div><div style="text-align: left;"><span> </span></div><div style="text-align: left;"><span> <br /></span></div><div style="text-align: left;"><span><span> </span><br /></span></div><div style="text-align: left;"> </div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/ycnHr9Bd0ag" width="320" youtube-src-id="ycnHr9Bd0ag"></iframe></div><div style="text-align: left;"><br /></div>Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-51155560130514818762024-01-09T00:55:00.004-03:002024-01-09T01:02:04.421-03:00O dente condenado da baleia <p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiv-9GzNDT_NxUdPxbdAD7nAEB7AdD9fbRJJ-i9NOJfbrq-6Jw4yJD7FFWs8lpMuIo7-4woIWnfYEa3dH7fMmWoyB12sCN6-BRKJkhNVDiioa4-i-2APZCZ-z2lsXBJ_ca7aqvElfW8i00_uYt4AHEIDXZp_U6bRQ6i-fZ_N-PTjeO5-Ze1nRpKlYZGYMdA/s751/cdd408e3c7495a9e411f3b0396773c9e.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="751" data-original-width="563" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiv-9GzNDT_NxUdPxbdAD7nAEB7AdD9fbRJJ-i9NOJfbrq-6Jw4yJD7FFWs8lpMuIo7-4woIWnfYEa3dH7fMmWoyB12sCN6-BRKJkhNVDiioa4-i-2APZCZ-z2lsXBJ_ca7aqvElfW8i00_uYt4AHEIDXZp_U6bRQ6i-fZ_N-PTjeO5-Ze1nRpKlYZGYMdA/w300-h400/cdd408e3c7495a9e411f3b0396773c9e.jpg" width="300" /></a></div><div style="text-align: left;"><span> </span>O galo ainda canta e já são nove horas da manhã, desvio dos dois homens fortes que ocupam a calçada da rua estreita, atravesso para o outro lado enquanto ainda descem a cadeira de rodas do carro estacionado em frente ao prédio. Deixo os homens e os seus empenhos para trás e evito o incômodo, a melancolia que o encontro quase sempre me provoca.</div><div style="text-align: left;"><span><span> </span> </span>Eu fujo de um jovem de barba cerrada e cabelos volumosos, num corpo quase inerte. Vinte anos de sonhos desviados, de um quase ir e agora ficar, de um dia que não era mais o que pensava que seria. Me escondo do que eu não sei sentir sem chorar. Fujo da injustiça da qual também é feita esse mundo, que recortamos leve e colorido em um conjunto bizarro projetado na tela de desconhecidos. </div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Eu recuso o trágico, o desvio dramático dos acontecimentos, sejam eles meus ou não. O acidente, a condição, a notícia, o estar aterrado a um lugar ao qual não quer pertencer. À cama, ao soro, aos lençóis em tons pastel, às videochamadas de familiares pouco hábeis com o foco da câmera, às negativas do convênio médico, aos resultados dos exames, aos vinte anos que não foram capazes de estancar esse sangue que transbordou de alguma artéria jovem. Aos atestados, às medicações, à comida de hospital, ao sal que ninguém pergunta mais se ele quer, aos sachês de ketchup, mostarda e maionese que ninguém mais trouxe. Eu não suporto esse lugar que ele não devia nunca visitar. Aos vinte anos, no máximo, um primeiro canal ou sutura do supercílio. Aos vinte anos, glicose na veia para aplacar a bebedeira.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Eu corro porque não sei segurar. Os homens vão deslocar um corpo, um quase menino e eu vou estar longe, ganhando quilômetros que ele talvez não conheça fora do carro. Penso no que ele não pode, me lembro de que a minha liberdade também não é assim tão ilimitada. Talvez eu seja a imagem inerte de alguém. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Corro porque não queria pensar em nada hoje, tento fugir do que não é possível abandonar pelo caminho. A cada passo penso na barba cerrada, no cabelo volumoso sobre a fronha, os sonhos que ele teve na véspera do acontecimento, o susto, o som da sirene da ambulância que não se esquece jamais. Quero esquecer que também tive vinte anos e que há muito não tenho, mas fiz muitos aniversários quase ilesa e que se quisesse jogava futebol agora. Volto da corrida e sei que sou outra, mas meus tênis ainda são pretos com contornos rosa, viro a chave na porta e ainda não abandonei nenhum pensamento. Procuro o livro do Zen budismo na prateleira, vou tentar relê-lo na sala de espera do dentista, mais tarde. </div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Não tenho tempo para a leitura, chego suada dessa outra caminhada, aperto a campainha e logo entro no consultório com ar condicionado. Deito os meus dois vinte anos numa cadeira acolchoada e reclinável, abro a boca e espero a sentença. Tudo demora mais hoje. O refletor da cadeira é forte, fecho os olhos e acho que assim minha boca ganha maior amplitude. <br /></div><div style="text-align: left;"><span> — </span>Vamos salvar esse dente.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Ele diz.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Somos só eu, ele e a auxiliar no consultório, agora. Mas quando ele sentencia o salvamento, ainda de olhos fechados, eu imagino uma multidão empenhada na tarefa.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Influenciada pela leitura na infância, da história na qual uma baleia encalhada numa praia, com uma dor de dente lancinante, que ganha o engajamento, página após página, do pescador, da mulher do pescador, dos filhos do pescador, do comerciante de peixes, da florista da banca ao lado da peixaria, da professora que comprava flores, dos alunos da professora, da freira, do aldeão, dos turistas ingleses, do barbeiro, dos músicos do coreto, dos condutores de balsas e, finalmente, de um construtor que envolve o dente da baleia com a corrente que segura um guindaste e em um movimento sincronizado de todas as personagens, a baleia tem seu dente arrancado. <br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Tal qual a baleia da história, por quem eu torci na infância, sou grande e completamente vulnerável. Corpo estendido na areia, animal contido pela dor excruciante. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Não quero que o dente seja salvo, quero que a baleia sobreviva. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Amanhã a corrida, amanhã o moço na calçada, amanhã o galo boêmio, que acorda às nove. Amanhã o dente ou a baleia. Acaba a consulta, a promessa permanece:</div><div style="text-align: left;"><span> </span>— Salvaremos esse dente.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Me debato na areia; será que ele não vê?<br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Não há salvação sempre; essa é a primeira difícil lição da vida adulta. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Para enfrentar esses dias difíceis, alguém que não tenha medo da boca imensa da baleia orca</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/-fWAIPix3-Q" width="320" youtube-src-id="-fWAIPix3-Q"></iframe></div><br /><div style="text-align: center;"><br /></div>Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-63269505984848136962023-12-12T00:00:00.030-03:002023-12-13T11:49:59.125-03:00Uma cidade às duas<p></p><p style="text-align: left;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEilwtsMGvquAtjS_gx0f9CaLksTLsyix0g4z_D5_vWWEkLXAD3txPUoyyWWlzy8dIs392TVNlU_ltIZSQCgr4S5udvp4_qGFip5XRC5vqf-V8ktHPrei2gnlM90FfhtcM74Rbee5moa-MTJKEJUfr6bMbnHpXlEkm_cDq7esYrpTlLamv4Cu2rgO8Cj3idM/s735/c86c93046536f368587cb47e60c9ad72.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="735" data-original-width="564" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEilwtsMGvquAtjS_gx0f9CaLksTLsyix0g4z_D5_vWWEkLXAD3txPUoyyWWlzy8dIs392TVNlU_ltIZSQCgr4S5udvp4_qGFip5XRC5vqf-V8ktHPrei2gnlM90FfhtcM74Rbee5moa-MTJKEJUfr6bMbnHpXlEkm_cDq7esYrpTlLamv4Cu2rgO8Cj3idM/w308-h400/c86c93046536f368587cb47e60c9ad72.jpg" width="308" /></a></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Nenhuma delas tem pressa, mas certamente não estão prostradas. Algumas caminham mais lentas, mas não titubeantes. Parecem donas do próprio ritmo, sem obediência a qualquer destino externo. Não consultam relógios, não parecem ter que corresponder a uma agenda ou a um compromisso. Nesses meses, não vi nenhuma com os olhos presos a uma tela; se têm celular, nunca vi. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Quando me cumprimentam me acalmam, quando me olham me veem, quando atravessam a rua vou um pouco com elas.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Seus tênis de cores mais suaves que os meus, também amortecem menos, mas não usam a força nos passos. É com constância macia que dobram as esquinas.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Por vezes, acho que são as donas da cidade. Estão na rua, cotidianamente, em maior número do que os homens. Andam com a desenvoltura da coragem e, quase sempre, saem acompanhadas de outras mulheres. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>São duplas certas, constantes. Ao ver uma, já sei que a outra a segue. <span>Como as esquiadoras de montanhas, que nunca sobem só; que apreendem que companhia é sobrevivência.</span></div><div style="text-align: left;"><span><span> </span> </span>Não sei precisar o meu tempo de convivência com elas, tampouco se elas se conhecem ou se também se encontram entre elas, como eu todos os dias. São quatro pares de mulheres indomesticáveis. </div><p style="text-align: left;"></p><div style="text-align: left;"><span> </span>No primeiro trecho, encontro as mulheres de listras. Com vestidos de malha listrada, cada um de uma cor, meias com chinelos, sorrisos de arcada projetada e os idênticos olhos, cujo globo parece um pouco deslocado; suspeito que são mãe e filha. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>As primeiras do trajeto, foram as últimas a integrarem o meu grupo. Parecem tímidas e saem, sobretudo, em dias muito frios para tomarem sol. Os primeiros cumprimentos eram discretos, abafados e essencialmente íntimos; pareciam me oferecer um pouco mais a cada dia. Foram generosas a ponto de, agora, dizerem síncronas um alto bom-dia. Lado a lado parecem a mesma mulher em tempos diferentes, tamanha semelhança de aparência, gestos e roupas. O cabelo preto, longo e muito liso da mais jovem, na mais velha, é curto e grisalho. As maçãs do rosto mais velho mais encravadas no osso, saltam na face da mais jovem. Não usam maquiagem e o único acessório, que eu vi carregarem, é a sacola de tecido do supermercado. </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>No segundo trecho, duas mulheres que caminham um pouco mais rápido, têm os corpos pequenos e músculos definidos, o da mais nova um pouco mais, o tronco fica bastante destacado na camiseta de malha e a panturrilha arredondada se sobressai na legging justa. As duas parecem irmãs, talvez já sexagenárias. São mais ágeis que as primeiras e os cumprimentos também têm mais energia. Nossos encontros são, em geral, no retorno delas da feira, cada uma com um carrinho, abarrotado de sacolas, ou quando a mais velha lava a varanda ou a calçada em frente a casa verde, a qual dividem.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Também sorriem, mas já avançamos mais na comunicação. Conversamos, geralmente, em movimento, algumas frases curtas e exclamativas sinalizam nossos encontros; tá quente hoje, tá sumida, bom domingo, boa semana.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>As próximas do trajeto, também parecem irmãs, talvez gêmeas ou muito parecidas, talvez septuagenárias. Possivelmente partilham o mesmo tubo de tinta para cabelo, atléticas, encontro enquanto caminham de forma mais cadenciada; às vezes com um cão. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Quase sempre estão do outro lado da rua e andam em direção contrária à minha, não sei qual de nós saiu mais cedo e se elas ou eu têm mais quilômetros diários. Só sei dos sorrisos, dos cabelos vermelhos brilhantes e dos braços levantados em um cumprimento muito desenvolto.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>A última dupla do meu trajeto são as que moram mais próximas do meu apartamento, mas chegam à rua, quase sempre, quando eu já estou no caminho de volta. São, também, mãe e filha, muito semelhantes nos sorrisos, biotipo e ousadia capilar. A mãe tem o fundo do cabelo já completamente branco, o que facilita que qualquer tom se sobressaia na cabeça, lilás, verde, azul e rosa já suavizaram o cinza do asfalto da avenida. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Quando passo por elas, tomam sol em banquetas de madeira na calçada em frente ao sobrado onde moram ou estão sentadas no restaurante vegano vizinho, bebericando um suco colorido ou, se passo no final da tarde, bebem chopes em uma das mesas da pizzaria entre o restaurante e o sobrado. Às vezes desejo a vida que desfrutam na mesma quadra onde moro. Chopes, sucos, sol, conversas, sorrisos e cores inusitadas de cabelo. Em que dia isso também será meu?</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Nessa cidade eu me acostumo. Nessa cidade de mulheres, caminhar é fácil, prazeroso e sem receios. Quase não vejo ou cumprimento homens diariamente, são poucos e mais solitários. Não tem ameaça, tudo pacificado na cidade das duas mulheres. Tudo apaziguado na cidade cerzida. Pontos minúsculos consertam os rasgos. </div><div style="text-align: left;"><span> </span> Quatro pares de mulheres se recusam à clausura. Quatro pares de mulheres absolutamente citadinas; embora tenham suas hortas, seus quintais, seus jardins, seus vasos de plantas na varanda e cães dóceis e velhos à espera. Quatro pares que aprenderam a maior lição da montanha de gelo; só se deslocarem acompanhadas. Nunca subir ou descer a montanha gelada sozinha. Encontro as Cholitas mineiras todos os dias e aprendo com elas a escalar a liberdade.<br /></div><p> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/RryQ8V3rWGo" width="320" youtube-src-id="RryQ8V3rWGo"></iframe></div><p style="text-align: center;"><br /></p>Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-70768207249251025472023-12-03T23:53:00.003-03:002023-12-04T20:55:46.529-03:00Somos um filme do Gaspar Noé agora<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg9kCO5b-Hw-4p40s_WhyLXpw6TG7_3DJ-DijnIoc_djnwGN9EdEflgKz1VStJ3Av-VK2XmwRvhuhCGOOMw8W1cdDwwtsf321zN1pW9by95bfPIelcZkmROeRzl79TK-WxYXmzVdY2fpYp9XctU-Vi7XdF-z_1t56xs-2MtnsacNXUzuC8GNt6YyOlFHdvU/s776/543f57abe9918f4db98ea6721445b1e2.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="776" data-original-width="564" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg9kCO5b-Hw-4p40s_WhyLXpw6TG7_3DJ-DijnIoc_djnwGN9EdEflgKz1VStJ3Av-VK2XmwRvhuhCGOOMw8W1cdDwwtsf321zN1pW9by95bfPIelcZkmROeRzl79TK-WxYXmzVdY2fpYp9XctU-Vi7XdF-z_1t56xs-2MtnsacNXUzuC8GNt6YyOlFHdvU/w291-h400/543f57abe9918f4db98ea6721445b1e2.jpg" width="291" /></a></div><p><span> </span>Tivemos uma noite tranquila por aqui. Há meses acompanhávamos a sua chegada, sem fecharmos os nossos olhos. Os sons da cidade, aos poucos,
mais distantes; o tilintar das canecas, copos e xícaras, as discussões nos celulares, as batidas de
portas e as chaves rodando nas fechaduras, as perguntas das crianças, os solados dos sapatos alcançando os solos, as músicas, as vozes dos atores e âncoras de TV, o estalar de dedos, os latidos dos cães domésticos, as explosões dos motores de veículos, os secadores de cabelo, liquidificadores, lavadoras de roupas e toda a sorte de eletrodomésticos, vendidos como silenciosos, se esvaindo até se calarem; enfim, o silêncio. Aterrador, rigoroso e definitivo até clarear. Nos últimos anos é ela quem decreta nossa solidão. Toda a cidade dorme e nós dois permanecemos nessa vigília involuntária.<br /></p><p></p><p></p><div style="text-align: left;"><span> </span>Durante o dia, tudo é cuidado. Tudo é hora e prescrição. É como se eu tivesse que manter uma máquina em funcionamento; medir temperatura, pressão, verificar válvulas e articulações. Operária padrão, quase não penso enquanto executo as tarefas. <br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Evitar a farinha branca, o leite é só sem lactose, mamão não pode, os tomates devem ser sem sementes, nunca mais álcool, café ou açúcar, quase não mais diversão. Os horários de descanso também são contados. É só quando a máquina funciona no modo automático; no cochilo antes do almoço e no do final da tarde. Nos intervalos, ouço músicas, assisto a filmes em sessões de vinte ou trinta minutos ou leio algumas páginas de livros, que quando chego ao fim já não me lembro de quase nada. <br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Um dia ninguém vem mais. Me esqueço também, mas leio e converso sobre atualidades, se tenho interlocutor. Geralmente são os caixas dos supermercados, os atendentes de farmácia, o motoboy de entregas, os enfermeiros, assistentes de laboratórios de análises clínicas ou o carteiro. O porteiro se afastou daqui, depois que aceitou um convite para um café de menos de dez minutos e a síndica o repreendeu; ele me ajuda com as sacolas, me cumprimenta, mas não aceita mais café ou conversa de mais de quatro ou cinco frases. Os trabalhadores que fazem a manutenção da casa também podem ser os escolhidos para receberem os meus pensamentos, depois de muitos dias em silêncio. Pareço a minha mãe, quando envelheceu, mesmo que tenhamos sido tão diferentes a vida inteira. Só hoje compreendo a solidão materna, que é intrínseca aos ofícios domésticos. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Nos períodos de descanso também converso com ela; continuo incrédula do paraíso ou do céu, mas a minha mãe é imortal, agora. <br /></div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Estou ativa, ando lentamente, mas vou a quase todos os lugares, demoro mais tempo para chegar e não posso passar muito tempo afastada de casa. Carrego sacolas, abro portas de armários e prédios e tampas de maionese. Cozinho, lavo, passo e guardo roupas, não me escondo mais se vejo uma viatura policial nem sinto um frio na barriga se ouço a sirene de uma ambulância. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Me acostumei com sondas, veias, soros, sangue, sirenes, curativos, luzes acesas sem aviso prévio, engasgos, tosses e todo o tipo de secreção. Desacostumei de não fazer nada, de acreditar no país e de me sentir corajosa. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Agora temos as noites longas, o silêncio que nos afunda cada dia mais e os círculos desfeitos, pela distância das obrigações muito mais do que pela geográfica. Tínhamos memórias, muitas e nítidas ainda. Colocava nossos álbuns favoritos e narrava nossas experiências, você sorria e parecia ainda dançar comigo; sem nunca um pisão no meu pé. <br /></div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Mas, agora, também vou me esquecendo dos detalhes dos quais me orgulhava em tê-los completos e, às vezes, floreado na lembrança. A memória precisa da fala; não ter para quem narrar faz com que ela se apague lentamente, como os sons antes da noite completa. Tudo se distancia e o que temos é aguardar pelo escuro. Por isso os dez minutos do café com o porteiro eram redentores.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Vou esquecer você. Mas, antes, começo por mim. Alguns dias me esqueço de comer, noutros de escovar os dentes ou pentear os cabelos e até de tirar o pijama, que eu só me lembro perto da hora de vesti-lo de novo. Eu vou esquecer você, mas, antes, organizo seus remédios com a ajuda do alarme do celular — que invenção maravilhosa! — troco sua roupa de cama, cantarolo o tango de Gardel que dançamos, pela primeira vez, quando nos conhecemos e ajeito o seu travesseiro para que sonhe longe. </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Eu vou esquecer você, mas antes, me esqueci da última vez que fomos ao cinema, mas me lembro de vários Bergman, Godard e Fellini que
assistimos no cinema do Centro e de muitos cafés, mas não do último. Eu vou esquecer você, mas antes, me esqueço de maneira regressiva, das últimas coisas em direção às primeiras. Eu vou esquecer você doente, depois me esquecerei do acidente vascular que o colocou aqui, depois me esqueço de você grisalho, quase calvo, depois de você grisalho com cabelos volumosos, até chegarmos ao salão com Gardel e os seus olhos brilhantes.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Eu vou esquecer você, mas antes, de todo o resto a nossa volta. O rosto da síndica, o número do nosso prédio, o nome da rua, o que eu fui fazer no supermercado, para que serve cada pílula, de pagar os impostos, as contas de luz e água e, só depois, o dia em que pediu a minha mão e que decidimos crescer juntos. Eu vou esquecer você, mas antes, acho que esqueço da minha mãe, porque só assim poderemos nos casar de novo e de novo.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"> <span> </span>Depois que a ambulância veio buscá-lo, fiquei horas no sofá sem saber que direção tomar, me lembrei de um filme que assisti numa dessas noites insones. Dois velhos como nós, abandonados no mundo, antes de o abandonarmos. Chorei muito e acho que nem foi pelas personagens do Gaspar Noé. <span> </span>Estamos presos às coisas que escolhemos, quando só víamos uma outra
coisa. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Vou esquecer você, mas acho que serei capaz de me lembrar da nossa escolha até o último dia. A noite envelhece e talvez eu nunca mais tome um café de dez minutos com nenhum porteiro da cidade. Vou te buscar para te esquecer depois. Vou te buscar porque Gardel ainda toca ao fundo. Escuta a nossa escolha até a noite silenciar sobre nós.<br /></div><p> </p><p style="text-align: center;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/04v-SdKeEpE" width="320" youtube-src-id="04v-SdKeEpE"></iframe></div><br /> Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-40742255788375922972023-11-26T21:25:00.002-03:002023-11-26T21:26:32.874-03:00Coragem branca com listras pretas<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgnvadOGyMwtHLhjdjGSmHXuSCbXkDNpa9gAmJMEOHr6OV0nq3a-8UTekwm-D2-QWCcb4Ju69p2OhFjnQkKze-ZvZ5AXf3YVQKbwMMfVP_fAVsnPZDR7_NDrAx4FqD6sY2SO9CXg1_-KmY3jKwbhqzRRIPp3pQ-WUfRpEDF9r8zI6bjQcwZAww9LLZhSjcB/s657/9f727941e68a8a8824a5022aa3b01c5f.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="657" data-original-width="525" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgnvadOGyMwtHLhjdjGSmHXuSCbXkDNpa9gAmJMEOHr6OV0nq3a-8UTekwm-D2-QWCcb4Ju69p2OhFjnQkKze-ZvZ5AXf3YVQKbwMMfVP_fAVsnPZDR7_NDrAx4FqD6sY2SO9CXg1_-KmY3jKwbhqzRRIPp3pQ-WUfRpEDF9r8zI6bjQcwZAww9LLZhSjcB/w320-h400/9f727941e68a8a8824a5022aa3b01c5f.jpg" width="320" /></a></div> <span> </span>Acendo a luz, pego a escova de dentes, enquanto olho para o espelho um pouco embaçado. Ainda que tenha bebido pouco álcool, ao olhar para o meu reflexo, sei que foi o suficiente para me deixar mais lenta, mais desamparada de solidez. Flutuo um pouco, enquanto o creme dental amarelo derrama pelas bordas da escova. Não estou segura em mim, embora tenha conferido as três voltas de chave na porta, quando entrei.<p></p><p><span> </span>O roteiro é simples e terei sucesso se segui-lo sem desventuras: escovar os dentes, limpar a pele do rosto, tomar um banho, beber um copo cheio de água, arrumar a cama e me deitar. Sem hidratante para os pés, para as unhas ou massagem com óleo no cabelo. Talvez um só hidratante para todas as partes do corpo e mais nada. De repente, um barulho forte, molhado, algum pequeno corpo em queda no banheiro.</p><p><span> </span>Nada na pia, a escova ainda está na minha mão, o tubo de creme já está no lugar, a embalagem com o produto de limpeza facial continua intacto na bancada; só a minha imagem derrete, mas isso não faz nenhum som. Talvez um sabonete tenha caído, mas o barulho é mais mole, um tanto flácido, molhado, parece borracha ou algo mais gelatinoso. São três da manhã e o banheiro está quente e iluminado pelas duas lâmpadas, abro o box de uma só vez, porque não suporto o suspense. Logo, o corpo cujo som da queda interrompeu o meu roteiro, aparece. Há muito eu não via o réptil que me causava repulsa na infância. </p><div style="text-align: left;"> No box de chuveiro gotejante ela parece imponente e sem medo algum, acho que também foi surpreendida pela minha chegada. Parece que me olha, parece que também investigou os meus sons. O do interruptor, quando acendi as lâmpadas, o da escova e do creme dental quando retirei dos seus recipientes e talvez um meio muxoxo, quando meu reflexo ébrio no espelho do banheiro, já desacostumado com esse tipo de imagem notívaga, me apresentou a mim. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Faço alguns movimentos na tentativa de afastá-la um pouco, testar sua condição e talvez me poupar de decisões ou estratégias mais elaboradas. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Eu não mato lagartixas. Disso eu sei, mesmo sem muita firmeza corporal, agora, e um pouco reticente quanto os rumos que esse encontro tomará. </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Penso em espantá-la, apenas. Abrir caminho para o meu banho e não me preocupar com a possibilidade de testemunhas. O box é apertado e se eu abrir o chuveiro, logo ela será afetada. Tento convencê-la a se afastar, talvez deva desconvidá-la para essa noite. Vou espantá-la para o lado do basculante e, se ela se sentir afetada pela água fria do chuveiro, abandonará a casa, o banheiro, a precariedade do corpo feminino depois de alguns copos de cerveja. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>— Senhora Lagartixa, nada contra, mas o calor, o álcool, a chegada em casa a essa hora me faz querer um banho. Longe de mim fazer qualquer mal, mas não cabemos as duas nesse estreito box.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>O receio dessa convivência não é estritamente uma atenção com a preservação da vida da réptil. É, antes, um receio de ser tocada por ela, de de repente, sentir o corpo mole, gelado e úmido de um medo tão infantil. A imagem de uma lagartixa, saltando nas minhas costas ou busto, enquanto eu me refresco, me faz ser mais incisiva na decisão de espantá-la. </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Seguro o chuveirinho higiênico e penso em afastá-la com um jato de água, mas compreendo que não tenho a destreza suficiente de afugentá-la sem feri-la. A água sairia com muita pressão, teria que acertar em um ponto muito pequeno do corpo antipatizado e não sei se tenho condições para esse nível de medida. Resolvo que o barulho é quem vai afugentar a invasora.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Ligo o jato de água e miro na direção contrária do corpo rechaçado. Ela não se move. Abro e fecho mais três vezes e ela parece muito mais sólida do que eu ou as paredes do banheiro. Por muito menos eu teria corrido, mas ela permanece exata, sem dúvidas de que o lugar em que está pertence a sua existência. Invejo a lagartixa. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Ligo o chuveirinho mais algumas vezes e começo a aproximar a potência da água na sua direção. Nós não podemos voltar atrás. Ela continua estática, eu começo a recobrar a minha destreza, ameaço, deixo de ser doce e compreensiva. Eu quero o que ela tem e ela não abre mão do meu box.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Logo, um jato de água alcança um pedaço do rabo da réptil, que se desestabiliza e cai próxima ao ralo do banheiro. Nos assustamos, ela fica de barriga para cima, se contorce, mas a água ao redor deixa o piso escorregadio e ela não consegue se aprumar. Se eu abrir de novo o jato e apontar para ela, venço em alguns minutos e resolvo essa situação estranha e disputa remota. Mas eu não matarei lagartixas, juro. Alcanço a escova de limpeza do sanitário e ofereço o cabo a ela, ela encosta as patas no objeto, dá um impulso e se vira de novo. Tento fazer mais barulhos para afastá-la, mas tudo o que ela faz é abrir espaço, se mantendo no canto do chão do box. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>É uma guerra perdida. São quase três, estou suando, quero beber água e dormir. A disputa me faz ter mais controle sobre o meu corpo, agora já não derreto tanto, pareço quase tão sólida quanto a invasora branca de listras pretas. Ligo a ducha fria e tomo o meu banho.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Nada nela que não seja meu. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Não olhei para trás depois que me sequei e apaguei as luzes. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Amanheço com dor de cabeça, acordo para beber água e me lembro de procurar por ela no banheiro.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Uma coragem branca com listras pretas está estirada em um canto da parede. Não há vida. O basculante está fechado. Eu a sufoquei. Eu matei quem eu quis que sobrevivesse ontem.Tenho um dia difícil; em um luto inexplicável. A quem contar que sou outra; que agora mato lagartixas, mesmo quando quero protegê-las? A imagem no espelho, ontem, derreteu completamente. A vida que eu tinha e a lagartixa foram descartadas no lixo do banheiro. Eu sufoquei uma coragem, eu me lancei numa outra vida; como voltar a ser macia agora?<br /></div><p><br /></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/0zvQSISOk7o" width="320" youtube-src-id="0zvQSISOk7o"></iframe></div><br /><p style="text-align: center;"><br /></p>Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-45593350277783917772023-11-21T21:30:00.021-03:002023-11-22T00:24:12.511-03:00Anatomia do erro <div style="text-align: left;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhqbKZ3bmi1hjb6gmReT8EI4gelE-Z8N1X-cbwlvSum8RdEPqMOvJnflwqLdfz4RKzDyHyBRYD0rK7kQ-oM4-ntnJGpHjDkUzW6xMovZZ4NH4mruoHjr50xTxH14s2NAisP9dmT2J7CbcRnwU4CGVEVlr7wQEfTCOj0NMh9VqJIspWozqQITvllbCAohTtn/s753/d2660f2c6770d53b3a4fac3d065e4ffb.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="753" data-original-width="564" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhqbKZ3bmi1hjb6gmReT8EI4gelE-Z8N1X-cbwlvSum8RdEPqMOvJnflwqLdfz4RKzDyHyBRYD0rK7kQ-oM4-ntnJGpHjDkUzW6xMovZZ4NH4mruoHjr50xTxH14s2NAisP9dmT2J7CbcRnwU4CGVEVlr7wQEfTCOj0NMh9VqJIspWozqQITvllbCAohTtn/w300-h400/d2660f2c6770d53b3a4fac3d065e4ffb.jpg" width="300" /></a></div> Repassar mentalmente a receita executada há anos; uma xícara de açúcar, duas de farinha de trigo, uma de chocolate, uma colher de fermento em pó, um ovo, uma xícara de água morna e meia de óleo vegetal. Conferir as datas de validade de cada item, repassar os olhos sobre os vestígios de cada ingrediente; o óleo de coco que untou o fundo da travessa ainda está na bancada da cozinha. O fermento foi incorporado lentamente, só misturado, último item agregado. Forno em cento e oitenta graus, todos os cremadores acesos, durante trinta e cinco minutos. Uma xícara de açúcar, três colheres de chocolate em pó, duas de leite, uma de margarina, mexer até levantar fervura, despejar sobre o bolo ainda quente, salpicar o granulado em seguida.</div><div style="text-align: left;"> A massa não solou, as beiradas não ficaram queimadas, a cobertura não grudou no fundo da panela nem deslizou demais. Esse é o caminho. Não tem erro. Não tinha.</div><div style="text-align: left;"> O bolo doce, fofo e morno não confortou dessa vez. O granulado afogado em uma lágrima e a colher estacionada no canto do prato: por que não deu certo? <br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>A quantidade de comida para o peixe — uma colher de café, a cada dois dias — o climatizador da água com o temporizador ligado, o aquário sobre o aparador do lado mais fresco da sala, sem iluminação direta, sem abalos do trânsito intenso, protegido pelos dezesseis andares que o afasta da avenida. </div><div style="text-align: left;"> Uma cortina de tecido que bloqueia a maior parte dos raios solares, a música que não ultrapassa a porta do quarto lilás, um peixe beta, uma vida vendida como não tão frágil é agora uma fina lâmina laranja metalizada que flutua no azul do aquário sonhado.<br /></div><div style="text-align: left;"> Todo cuidado é sempre tão pouco. Um peixe beta cozido no azul finito. Por que a vida foi tão curta?<br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Retomar o instante do banho, se a água estava demasiado quente, já que era tarde e não fazia o calor dos dias anteriores. Certificar de que o xampu, além da marca usual, tem um pequeno selo na parte inferior do rótulo com a indicação para cabelos oleosos. Identificar, pelo olfato, a máscara hidratante aplicada; a de queratina só deve ser usada uma vez por semana. Se a tolha era a mais velha e por isso mais macia, se o secador estava na temperatura média, se usou o finalizador recomendado para a proteção térmica. </div><div style="text-align: left;"> Nem um coque salvaria. Na foto, mesmo com tratamento digital, vai, sozinha, ver o que não ficou bom. Por que tanto frizz?<br /></div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"> <span> </span>Apertar a torneira um pouco mais a cada dia, para evitar a goteira que começava. A visita adiada do bombeiro, tentar resolver com um cadarço amarrado no puxador, empenhar um pouco mais de força, só mais um pouco, mais um pouco, até que... a cozinha molhada, a água da pia, invadindo o armário embutido, os guardanapos de papel, agora, inutilizáveis, nas gavetas, o açúcar, o sal, o pote de biscoito cream cracker, flutuando na enxurrada ininterrupta. Tentar fechar o registro, não conseguir sozinha, chamar o vizinho.</div><div style="text-align: left;"> Será o cadarço, a omissão da goteira, o adiamento da avaliação de um profissional, a mudança para esse apartamento — o único aluguel possível — a profissão escolhida, o emprego mal remunerado, os livros que eu não li, mas estão secos nas prateleiras, as pessoas para as quais eu não liguei, as que eu liguei, mas não contei sobre a torneira; quantos equívocos molham a cozinha agora?<br /></div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Se a subida é escarpada demais, se o instrutor foi mais relapso do que deveria, se a minha vocação para o volante é somente imaginária, se serei Telma e Louise na direção; se o meu sapato era apertado ou largo demais, já que não tinha salto; se caminhar será sempre minha partida e chegada. <span> </span></div><div style="text-align: left;"><span> </span><span> </span>Pressionei o acelerador e tirei o pé da embreagem simultaneamente; depois, acelerei e soltei o freio de mão. Apostilas lidas, provas realizadas, vídeos atentamente assistidos, aulas práticas para além do número das obrigatórias, nenhum nervosismo demasiado; mas, então, o carro morreu no meio da ladeira. Por quê?</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Não ter dito que conseguiria sem cirurgia, não negar a dor, dissimular que era assim mesmo, que as cólicas ou o sangramento eventual não eram nada, não admitir que o corpo falharia; os limites de mulher que a avó não teve por treze gestações — só falhou ao final de duas. Natimorto.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Não era planejado, mas foi desejado; não queria festa de revelação de sexo biológico, mas já tinha um nome para cada gênero, antes do ultrassom. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>A idade que não era a ideal, o álcool antes de saber dessa outra existência, o consumo de qualquer outra substância em esmaltes de unha, cremes para cabelo, comidas, produtos de limpeza, ração para o gato, as pombas no telhado, combustível de automóvel, poluição, água contaminada, poucas horas de sono. Quando apartou a mãe do filho? O que não deu a vida?<br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Reviver o último dia, a derradeira conversa; como foi a última vez que olhou? Em quem doeu mais? Repassar os investimentos, as projeções, todas as falhas, as surpresas, o melhor está por vir, o melhor já passou. Reviver os dias antes do fim, as semanas, os meses anteriores. Será que o esquecimento daquela data, nome, grau de parentesco, número da casa de festas ou assunto era prenúncio?</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Repassar os últimos anos, desde o mais recente até o primeiro deles partilhado. Será que a cama é que foi sempre pequena demais? Será que o ronco não era tão baixo quanto imaginado? A altura da mesa de cabeceira é o que limitou os sonhos? </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Quem morreu antes, a esperança ou o amor? Quantos segundos de diferença entre a partida de um e de outro? Algum dia, ressuscitarão ao menos um deles? </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Por que a receita de anos não conforta mais? Chora sobre o granulado e cutuca o pedaço de bolo sem apetite. Por que não deu certo? <br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/yl-Jy383W9Q" width="320" youtube-src-id="yl-Jy383W9Q"></iframe></div><br /><div style="text-align: center;"><br /></div>Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-59128042063012645322023-11-12T21:15:00.001-03:002023-11-12T23:47:43.472-03:00Porque o café solúvel acaba e a Terra esquenta<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhCF_b1JbJAZW-XaV5YX5mqffsnZuc5xyxy2NNkv3Nc-LymdD15dOz-XcfHdXbxribqR7lu_Ve4Ltb9BtZvNoNg6p9NZsFzneToEX6wodRBj8mxwq8GiTfk3dYiaPNRhKOqauKYfr2MhCUnrUmqloN43CFOMen1EQZIe3hLeJwRngVE2lk6knzxV3MFGHoB/s632/kate.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="632" data-original-width="485" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhCF_b1JbJAZW-XaV5YX5mqffsnZuc5xyxy2NNkv3Nc-LymdD15dOz-XcfHdXbxribqR7lu_Ve4Ltb9BtZvNoNg6p9NZsFzneToEX6wodRBj8mxwq8GiTfk3dYiaPNRhKOqauKYfr2MhCUnrUmqloN43CFOMen1EQZIe3hLeJwRngVE2lk6knzxV3MFGHoB/w308-h400/kate.jpg" width="308" /></a></div><p></p><div style="text-align: left;"> Porque preferi ir ao aeroporto te buscar, com um cartaz feito de última hora, para que achasse graça e se sentisse amado, não comecei o texto de domingo. </div><div style="text-align: left;"> Para que quando o avião pousasse, você se encontrasse, de novo em casa, deixei o bloco de notas aberto, tomei banho e não almocei, para que te visse no tempo exato da sua chegada.</div><div style="text-align: left;"> Porque o voo atrasou, porque tínhamos muito o que dizer, porque esse encontro me pacifica, porque ver você é sempre a melhor escolha, não cheguei a tempo de escrever o que eu queria hoje.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"> Porque as roupas se acumularam na máquina por uma semana, as janelas parecem menos translúcidas, o tapete da sala precisa ser limpo, as peperômias requerem poda, não terminei o texto começado há dias.</div><div style="text-align: left;"> Porque me vestir, comer, fechar e abrir janelas e portas, dar os passos até o trabalho, supermercado, clínica médica, consultório odontológico, cinema, às vezes, bares e restaurantes, casas de parentes e amigos e dormir me requisita um trabalho anterior ao trabalho de cada coisa e, por isso, os blocos de notas ficam sempre à espera.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"> Porque fingir para a foto, mentir para a chefe, enrolar a orientadora, escolher o sabor do iogurte, organizar os livros na estante, comprar absorventes íntimos, me inteirar sobre os benefícios para a saúde e os malefícios éticos do consumo de ovos de galinha, toma muito tempo, de quatro a cinco páginas por dia e o texto não sai, não sairá no dia que eu escolhi para ele. </div><div style="text-align: left;"> Porque me atualizar sobre as notícias, descobertas científicas, novas celebridades — cujos nomes sei mais do que sobre o que fazem — não me esquecer dos aniversários, estar atenta à dieta, ao meu índice glicêmico, à condição cardíaca, ao saldo da conta bancária me deixa sempre em dívida e eu sinto que nunca farei literatura. Mas a constatação também não é definitiva, enquanto eu penso nisso, já estou atrasada em quinze minutos para alguma hora marcada.<br /></div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"> Porque entre o eclipse e os teclados, entre o pão doce que eu prometi que faria para o café da tarde com convidados e o cursor piscando na tela com duas ou três frases, entre o convite de última hora e o planejamento semanal da escrita, a urgência ainda está fora do parágrafo inacabado.</div><div style="text-align: left;"> Porque é preciso luz solar para o cortisol, é preciso um telefonema para perdoar as faltas e justificar previamente as próximas ausências, é preciso ligar para o pedreiro e fazer um orçamento para a troca dos azulejos na parede da pia, é preciso descascar uma réstia para o almoço, é preciso assumir um incêndio enquanto os bombeiros não chegam, é preciso dizer o que é preciso e escrever não é preciso. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Porque sonhar em viajar para outro país parece mais apaziguador do que inventar um novo mundo, sem conflitos, na ficção. <br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"> Porque ainda estão em guerra, bombardeiam hospitais, escolas e feiras; a Amazônia padece; os meus alunos ainda não sabem ler; os migrantes sofrem na casa e precisam partir, sofrem na ausência da casa e precisam ficar; porque escolher é mais difícil do que só sentir; porque a Antártida não me parece tão longe e eu não tenho tempo de revisar uma página que escrevi há pouco mais de uma semana. </div><div style="text-align: left;"> Porque o impacto de um livro é, para a autora, num tempo e muito depois para uma leitora e, na maioria das vezes, elas nunca conversarão; os abalos sísmicos de cada uma não será registrado em parte alguma.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"> Porque a publicidade também me envenena, as pressões sociais batem à porta com os testemunhas de Jeová e, assim como eles, me prometem um paraíso impossível que só chegará depois de muitas concessões absurdas e, por isso, tenho que ser vigilante e esperta; não escrevo porque fico alerta sob a guarnição.</div><div style="text-align: left;"> Porque os manuais confundem, as placas não apontam todas as direções, o uso da gramática foi negligenciado e as sirenes de ambulância suspendem, por alguns segundos, o desfecho da oração.</div><div style="text-align: left;"> Porque a lista do supermercado não termina, porque os desencontros também não. Porque esperar para escrever só depois que tudo estiver em equilíbrio é planejar um divórcio depois que os filhos estiverem grandes.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"> Porque o café solúvel acaba e o planeta está cada vez mais quente, custa escrever em um mundo que deteriora; quem vai ler depois?</div><div style="text-align: left;"> Se escrevesse um romance, os baldes de água transbordariam, as prateleiras acumulariam pó, você ainda estaria no aeroporto, procurando a casa em olhos desconhecidos, os azulejos cairiam todos, meu emprego não me sustentaria e, o mais importante, meus alunos ficaram sem ler. Por isso eu nunca vou escrever literatura. </div><p><br /></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/7e4wO8wrHh0" width="320" youtube-src-id="7e4wO8wrHh0"></iframe></div>Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-37146415472966695452023-11-06T21:30:00.001-03:002023-11-07T00:32:25.350-03:00Nem sempre a pena, às vezes o insulto<div style="text-align: left;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhB8YetOKuf22PIuYMBWrT9LxnJRHnMHvzUTX3Kl4jAElr3qSMAIBMyzUBKuviX-GqmDyh-2EMPCjf6BwRntSzX6PyTD9GkFGWjp_D3_CF975xHqHth9Cf1tpYVyQHRoidCj0d9-_Flt8Fj3kLmmFL1sO6X6CEzrnAC8OJ5NXeK3w1tSqqrWJsTRngLp1Q9/s844/a62e5920d2d5802be66db9e5bbd6570c.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="844" data-original-width="563" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhB8YetOKuf22PIuYMBWrT9LxnJRHnMHvzUTX3Kl4jAElr3qSMAIBMyzUBKuviX-GqmDyh-2EMPCjf6BwRntSzX6PyTD9GkFGWjp_D3_CF975xHqHth9Cf1tpYVyQHRoidCj0d9-_Flt8Fj3kLmmFL1sO6X6CEzrnAC8OJ5NXeK3w1tSqqrWJsTRngLp1Q9/w266-h400/a62e5920d2d5802be66db9e5bbd6570c.jpg" width="266" /></a></div> Coisas ruins acontecem. Às segundas pós-feriados, trabalhos que precisam ser terminados; nem sempre<br /> prazos estendidos nem sempre a compreensão dos vestígios da fadiga, mesmo pós-descanso. Atrasos, tropeços, perdas de pequenos objetos e lutas, esquecimento de palavras, de promessas e de retornos aos contatos anotados na folha amassada. Acontecem rompimentos de barragens, de paciência e de relações; por água, por limites ultrapassados, por abismos irreparáveis. <br /></div><div style="text-align: left;"> Coisas boas acontecem. Às segundas-feiras, um chocolate nas mãos, uma pergunta à porta, um elogio infantil. Acontecem resoluções à luz do dia, um outro passo, um desvio, uma saída de emergência com escada para liberdade. </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"> Coisas ruins acontecem às segundas. A sola do sapato favorito descola, no teto do apartamento uma nova infiltração, as parcelas se acumulam e o salário é só no quinto dia útil. O ventilador não funciona, a internet não carrega o documento, um mioma no exame. </div><div style="text-align: left;"> Coisas boas acontecem à tarde. A visita de uma família de micos ao batente da janela, uma banana, um copo com água, os dedos minúsculos que seguram a fruta, o barulho quase inaudível da deglutição dos símios e os olhos brilhantes de medo e espera.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"> Coisas ruins acontecem às manhãs, enquanto a cidade ainda acorda. Mais uma vida destroçada na linha férrea, o sinal da cruz de setenta por cento dos passageiros do ônibus e o silêncio até o ponto final; a morte voluntária é muda. Um dia, grandes templos se transformam em ruínas, supermercados ou estacionamentos; cinemas de rua se tornam igrejas, lanchonetes ou terreno baldio; uma alegria parece pesada demais para carregar, onerosa demais para manutenção.</div><div style="text-align: left;"> Coisas boas acontecem antes das duas da tarde, na segunda-feira. É benigno, tem tratamento, o envelope descansa em quatro mãos; a sentença não alcança o corredor da clínica de exames.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"> Coisas ruins acontecem em um jogo de futebol, o time perder é a menor das derrotas. As revistas por seguranças armados, a desconfiança, o ingresso caro que é suspeito porque parece mais caro para alguns. Os hinos deturpados, os gestos criminosos disfarçados de piada, a mãe, a mulher, a irmã, a prima, a desconhecida, a filha que não estão seguras na arquibancada. Coisas ruins acontecem nos estádios aos domingos. Um ônibus apedrejado, um grupo encurralado, as emergências preparadas para ferimentos à bala.</div><div style="text-align: left;"> Coisas boas acontecem nas partidas de futebol. Um menino e um velho realizam um sonho ao mesmo tempo, uma mãe paga uma promessa, um pedido de casamento entre dois torcedores de times rivais, um atleta em sua melhor performance, um troféu, a medalha, um acontecimento contado por gerações. </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"> Coisas ruins acontecem em casamentos. Nas festas, a queda do bolo, a falta de luz, a playlist ruim, a bebida que não está gelada, o desmaio do celebrante, o calor, o temporal, o frio da noite. Depois da festa, os afazeres domésticos não-partilhados, o ciúme, as incompreensões, os gritos, o silêncio, a indiferença que comemora dezenas de bodas em retratos que fingem. </div><div style="text-align: left;"> Coisas boas acontecem em enlaces. Nas comemorações, bem-casados recheados de doce de leite, alegria genuína, convidados descalços, gravatas abandonadas em cima das mesas. As dúvidas, as dívidas, as realizações, os sentimentos, as descobertas, as dores, os cobertores divididos.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"> Coisas ruins acontecem ao descer o calçadão do Centro, a visão periférica e disfarçada da promessa de um amor que não aconteceu, a mira de um pombo que risca com merda o ombro da camisa branca, o salto agarrado entre pedras portuguesas, as ofertas de seguros, cartões de lojas de departamentos e planos de celular. </div><div style="text-align: left;"> Coisas boas acontecem ao passar pelo calçadão do Centro, a performance do artista de rua, o painel de Portinari, os cheiros de pipoca com queijo, amendoim com chocolate e de churros, os balões metalizados do vendedor ambulante, os encontros marcados sob o relógio do parque, as crianças de uniforme puxadas pelas mãos de uma avó, o meu dentista que anda sempre adiantado para as consultas. </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"> Coisas ruins acontecem nas noites de segunda-feira, um tratado científico que ninguém vai ler pelos próximos dez anos é concluído, assim como um texto desarrazoado de uma desconhecida tocada pelas coisas ruins de uma segunda com centenas de civis mortos ou reféns de soldados; que detesta os exércitos e quer gritar isso. Uma pomba que negou a pena, mas não o insulto; uma sociedade acostumada à bomba com salvo-conduto.</div><div style="text-align: left;"> Coisas boas acontecem nas noites de segunda-feira, um tratado científico é terminado, um grito desarrazoado é transcrito, uma pomba é finalmente compreendida, uma camisa branca é lavada e não tem manchas. </div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/07jjbmHxTnY" width="320" youtube-src-id="07jjbmHxTnY"></iframe></div><br /><div style="text-align: center;"><br /></div>Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-18535467909712761422023-10-30T21:30:00.002-03:002023-10-30T23:56:54.369-03:00O negócio do amor só quer gritar<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgOT3vkibqTKOyblCO1i7iTvAH0E6alFXEWVNGQJJjvmSc4kNLoAY5w_KoDszeyhmksmx-663gszMCSWYHV9wbEyIwhDnTri7xzIF9Od6ZcN0kTG2n3XjWv2EglmAhVhl1TaiLUqx3jFKqHpr9cGCwQ_QDRFqzK-hY3LDvGQP9M1o6x3wKkI7g-s-fI0vB8/s675/f2924eea8a1cee647e37438c0b767a7c.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="675" data-original-width="540" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgOT3vkibqTKOyblCO1i7iTvAH0E6alFXEWVNGQJJjvmSc4kNLoAY5w_KoDszeyhmksmx-663gszMCSWYHV9wbEyIwhDnTri7xzIF9Od6ZcN0kTG2n3XjWv2EglmAhVhl1TaiLUqx3jFKqHpr9cGCwQ_QDRFqzK-hY3LDvGQP9M1o6x3wKkI7g-s-fI0vB8/w320-h400/f2924eea8a1cee647e37438c0b767a7c.jpg" width="320" /></a></div><p></p><div style="text-align: left;"> O negócio do amor não vai bem. Já marcaram com os bombeiros a retirada dos amantes. Não querem saber das minhas imagens, registros do que há de mais bonito por aqui. O negócio do amor está prestes a ficar sem casa, sem geografia, sem um ponto no Google Maps. </div><div style="text-align: left;"> O negócio do amor cairá amanhã e as minhas súplicas eu já nem sei a quem dirigir e se devo mesmo fazer alguma intervenção. O negócio do amor é uma confusão imobiliária agora, um caso urbano de um negócio que parecia bucólico. O negócio do amor parece que vai acabar e eu não quero voltar para vida aqui antes dele. O negócio do amor parece perdurar em mim, mesmo que esteja de saída.<br /></div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"> Há semanas eu acompanho o ninho. No primeiro dia, vi o casal entre as telhas do prédio ao lado e só depois eu vi o buraco. O casal de maritacas saía, um de cada vez, de uma abertura minúscula da parede que segura a cobertura. Duas cabeças verdes brilhantes e delicadas saíram da parede branca às duas da tarde.</div><div style="text-align: left;"> No início, contemplava sozinha, depois comecei a chamar alguns colegas para dividir a descoberta, até começar a fotografar e eventualmente a filmar. Gostava de ver as cores das penas, dar zoom para apreciar os bicos e, mais tarde, observar a suavidade dos gestos me acalmava. Por muitos instantes, eu admirei a sincronicidade e a destreza do negócio do amor que escalava as alturas. </div><div style="text-align: left;"> Mas, agora, o negócio do amor está cercado por uma faixa preta e amarela, pedindo atenção. Intervenção municipal no negócio do amor.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"> O negócio do amor é uma medida a qual eu não sei precisar, duas maritacas, um buraco de vinte centímetros de diâmetro em um prédio histórico, os fios de energia de pelo menos cento e vinte apartamentos no condomínio da frente. O negócio do amor é pequeno com proporções que não cabem no campo de visão da minha janela de madeira, também histórica.</div><div style="text-align: left;"> O negócio do amor me faz criar uma fanfic de um ninho repleto de ovos ou filhos recém-nascidos que sensibilize os bombeiros pela família desalojada; me faz torcer por um amor tradicional com frutos vivos, que quebrem os ovos e façam chorar os homens cujo trabalho tem uma aura de serviço quase divino.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"> O negócio do amor me faz defender as expectativas sociais de amores que rendem frutos e de vidas que ainda só começam a existir e me faz esquecer dos sem-luz ao redor. Um casal de maritacas prestes a perder o abrigo me consome horas de pensamento e buscas no Google para salvá-las. </div><div style="text-align: left;"> O negócio do amor me desafia a pensar no amor como algo sobre-humano, além do humano e, também, meramente humano. O negócio do amor me faz chegar mais cedo ao trabalho e perder a hora de ir embora. O negócio do amor me preocupa quando chove ou quando um caminhão dos bombeiros estaciona na mesma quadra em que estamos.</div><div style="text-align: left;"> Ao negócio do amor me sinto próxima e responsável, embora esteja fora dos domínios do negócio do amor.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"> O negócio do amor estraçalha a fiação elétrica, interrompe a comunicação e ameaça o banho quente de uma centena de famílias. O negócio do amor carrega intimidação e defesa no mesmo bico. O negócio do amor vai abocanhar o conforto da civilização que precisa de antenas, fios e um robô de nome Alexa.</div><div style="text-align: left;"> A primeira vez que eu ouvi que as maritacas destruíam redes elétricas de bairros inteiros eu fiquei incrédula sobre o poder e a força do negócio do amor. Não eram só pássaros pequenos, adoráveis e barulhentos.<br /></div><div style="text-align: left;"> <br /></div><div style="text-align: left;"><span style="font-weight: normal;"> O negócio do amor se esgueirou até fazer um buraco no telhado e acolher seu romance num espaço vazio. O negócio do amor é sério e faz rir. Mobilizou um grupo que deseja a sua expulsão e outro que defende que ele fique até o fim dos dias do amor. Bodas de telhado. Bodas de fiação corroída.</span></div><div style="text-align: left;"><span style="font-weight: normal;"> O negócio do amor não quer testemunhas, defensores, holofotes, fotógrafos ou perscrutadores. </span></div><div style="text-align: left;"><span style="font-weight: normal;"> O negócio do amor quer ser livre para expandir suas asas acima das cabeças confusas dessa multidão e voltar para o aconchego quando quiser. O negócio do amor não quer sofisticação ou burocracia de posse, o negócio do amor só quer um buraco no telhado e gritos de satisfação ao final de cada tarde. O negócio do amor só deseja contemplar o pôr do sol alaranjado da cidade que amedronta.</span></div><div style="text-align: left;"><span style="font-weight: normal;"><br /></span></div><div style="text-align: left;"> O negócio do amor é fazer casa na instabilidade, provocar incêndios e ainda assim ser admirado. O negócio do amor está prestes a falir, sem concordata. Sem intervenção da associação protetora dos animais que também teve sua fiação carcomida. O negócio do amor não quer discar para o 193, não quer provar que tem família ou que precisa do telhado alheio. </div><div style="text-align: left;"> O negócio do amor só quer gritar e se esconder da chuva. O negócio do amor tem que voar. Porque a liberdade é o negócio maior do negócio do amor. Amanhã os bombeiros vêm, amanhã a minha janela ficará fechada.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/DOO3Tg4Vxv0" width="320" youtube-src-id="DOO3Tg4Vxv0"></iframe></div><br />Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-58525297798908863912023-10-11T14:19:00.004-03:002023-10-11T21:27:38.522-03:00Ela que nunca dorme, eu que não posso fechar os olhos quando ela vem<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj2g4VkkyEHg6sR_X98JmeM5Vy7uX0BHrX9nmoDdg80wgL-Hm_o8n-1sG71WCEPwZ6WifhclCFkXPDBCl2YY-wYAw9v3X8LG-iB0Se4uFYnJD5vg2h1IIHaWvi0oLo84WBgucM61BOW4wgVyvmZhl-jLmpuY_suxlQzWyNz6gVXf8KPriAZ6g6-sTvr42Nq/s450/be0c9a1625bbf3df52b8885f1eccaf91.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="450" data-original-width="360" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj2g4VkkyEHg6sR_X98JmeM5Vy7uX0BHrX9nmoDdg80wgL-Hm_o8n-1sG71WCEPwZ6WifhclCFkXPDBCl2YY-wYAw9v3X8LG-iB0Se4uFYnJD5vg2h1IIHaWvi0oLo84WBgucM61BOW4wgVyvmZhl-jLmpuY_suxlQzWyNz6gVXf8KPriAZ6g6-sTvr42Nq/w320-h400/be0c9a1625bbf3df52b8885f1eccaf91.jpg" width="320" /></a></div><p></p><div style="text-align: left;"> De novo me alcança e como o desejo clichê da carta "espero que essa mensagem a encontre com saúde"; tenho saúde e isso é tudo o que posso sinalizar como resposta agora.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Quando achava que não voltaria a me encontrar, quando pensava que tivéssemos rompido definitivamente, mesmo que sem qualquer acordo oficial, ela retorna. Pensei que não voltaria porque talvez eu tivesse atingido certa sabedoria da maturidade; talvez porque ela tivesse outras vidas mais interessantes para frequentar.</div><div style="text-align: left;"> De novo me assalta, chega sem avisar e não diz quanto tempo a visita durará. Logo comigo que tenho uma inabilidade ancestral para os imprevistos.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"> De novo chega e, conhecida, senta-se na minha sala e toma café na minha xícara. De novo desinteira o número de pães por morador e encontra os biscoitos que eu guardo para as boas visitas. De novo pede açúcar para o café e me deixa o amargo da sua presença.</div><div style="text-align: left;"> De novo me entrega as correspondências, que trouxe quando passou pela portaria, o que sugere a intimidade, porque qualquer um aqui a trata como moradora da minha casa.</div><div style="text-align: left;"> De novo ela abre os meus pacotes, experimenta minhas roupas, abre os armários, a geladeira e os meus e-mails, investiga cada lombada de livro novo e bagunça a ordem da estante. Pergunta sobre a maçã importada, a farinha de amêndoa, critica as camisetas de cores cítricas que eu uso para ir à academia e me pressiona a responder dois ou três e-mails, para os quais eu não queria definir uma posição, ainda.</div><div style="text-align: left;"> De novo, ela me apavora.<br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"> Ela atravessa o corredor, quando me vê com a toalha na mão e se instala no banheiro, ao lado do lavabo; me encara no espelho, leio as suas críticas no olhar que projeta sobre a minha cabeça. Quando ela vem não estou bem, quando ela vem não sou suficiente, forte e bonita como o seu olhar atesta.</div><div style="text-align: left;"> De novo ela entra no box e escolhe a temperatura da água na qual iremos nos lavar. De novo a mornidão saudável da sua decisão. Queria água fria, mas ela decide que não. De novo o meu banho é invadido por ela, a qual não encaro, porque não quero ser pedra.<br /></div><div style="text-align: left;"> De novo a Medusa dos meus dias me rouba um brilho na tez e a altivez da minha coluna vertebral, atravessa a minha respiração e a deixa entrecortada, vacilante. De novo gaguejo, de novo recuo, suspeito e tenho saudade de Deus.</div><div style="text-align: left;"> Quando o banho termina, ela toma a minha toalha e me deixa encharcada fora do piso atoalhado, de novo ela me deixa desamparada de mim.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"> Ela interrompe a minha rotina, de novo, os meus chás, as minhas taças de vinho, os meus pés sujos no sofá. De novo ela ameaça a tranquilidade sob o meu abrigo, quando bate seus dedos finos e firmes no vidro da minha redoma. De novo ela coloca os meus planos em suspensão, questiona os meus sucessos, ressalta os meus fracassos. De novo ela é minha hóspede e eu sua refém.<br /></div><div style="text-align: left;"> Ela quer chamar a minha atenção, quer reafirmar sua força e influência; de novo ela quer me lembrar de que não sou livre, mesmo que tenhamos mantido distância por muitos meses.<br /></div><div style="text-align: left;"> De novo ela não penteia ou trança os meus cabelos, mas puxa as minhas mechas, como se pudesse revelar uma calvície. De novo não faz massagens nos meus músculos oblíquos do abdome, não alonga meus plantares, não destrava minha mandíbula; de novo, esse desconforto em tê-la por perto. De novo essa lição da dor.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"> Não a encaro, mas não posso fugir, por isso sigo na simulação do que é a minha vida sem ela. Vou ao trabalho, saio com amigos depois do expediente, escolho um filme, depois de chegar em casa, ao qual ela também assiste, mas não comenta. Choro muitas vezes na sua frente, sem pudores com essa estranha antiga. Ela não me consola, ela não se arrefece; acho que as minhas lágrimas a nutrem.</div><div style="text-align: left;"> De novo ela chega e me faz questionar os meus sonhos, coloca a sua métrica em cada desejo meu e eu não sei mais querer nada quando ela está. Divido minhas xícaras, minhas senhas, meus livros e tudo o que ela faz é me deixar um pouco menor a cada olhar que me envia debaixo das páginas das suas leituras. Não temos solução e ela sabe; não estamos sintonizadas e ela não estremece; nem o meu desconforto é mais um lugar novo para ela.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"> De novo ela me acompanha até à cama, coloca seus chinelos simétricos ao lado dos meus e me espera apagar a luz. De novo ela escolhe a temperatura do quarto, o lado da cama, a altura do travesseiro e as orações da noite. Quando ela me visita, eu rezo. <br /></div><div style="text-align: left;"> Encostamos na cabeceira, ela me confronta, não temos sono. Encaramos nossa condição sem sinal de desistência. Ela ficará pelo período que quiser e eu não posso partir. Ela
que nunca dorme, eu que não posso fechar os olhos quando ela vem.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"> De novo ela atravessa os meus sonhos, coloca as minhas pequenas felicidades em risco, me aponta o abismo que é o redor da minha cama. Eu sei do seu poder, mas também sei da sua inaptidão em me cercar por muito tempo.</div><div style="text-align: left;"> Viro para o outro lado da cama, não serei pedra. Um dia eu acordo e ela terá ido embora. Tem sido assim desde um tempo em que eu achava que ela nunca partiria. </div><div style="text-align: left;"> Melancolia, não saia sem comer um pouco de arroz doce.<br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/-QFIUHZopOU" width="320" youtube-src-id="-QFIUHZopOU"></iframe></div><br /><p style="text-align: center;"><br /></p>Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-83019643334129115262023-10-03T23:54:00.003-03:002023-10-04T00:03:01.718-03:00A ideia culposa de eternidade<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi7mWger281YfiWex0wV3ffqw_IQbnppXVtYLhD8hV0fvLo7ujVY18e_oWrdaBtrQBXzL83dHdRpQXSNennAfiWooZlm0_giao5uwmEFnGiQuJP6fZfX7nqBHFMVLHW8EeTZe66rJk4XwSg2Mrq2BK81KKMsGdmvpv9arUvsRHHaIAPILDVzJbUn4wLF-f-/s715/2d2ba301285e17d2d368299e4d9a10be.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="715" data-original-width="530" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi7mWger281YfiWex0wV3ffqw_IQbnppXVtYLhD8hV0fvLo7ujVY18e_oWrdaBtrQBXzL83dHdRpQXSNennAfiWooZlm0_giao5uwmEFnGiQuJP6fZfX7nqBHFMVLHW8EeTZe66rJk4XwSg2Mrq2BK81KKMsGdmvpv9arUvsRHHaIAPILDVzJbUn4wLF-f-/w296-h400/2d2ba301285e17d2d368299e4d9a10be.jpg" width="296" /></a></div><div style="text-align: left;"> A ideia de adotarmos um gato e darmos o nome Tariq ao bichano. Aprendermos o que ele come, escolhermos cuidadosamente um lugar confortável e bonito para o seu sono, mesmo que ele sempre procure a nossa cama no meio da noite. Comprarmos brinquedos coloridos, barulhentos e caros para descobrir que a embalagem faz mais sucesso que o conteúdo. </div><div style="text-align: left;"> Mimarmos o gato, amarmos o gato, mantermos o gato como o único soberano da casa, termos sempre pelos nas roupas e os móveis, portas, cortinas e tapetes arranhados. Olharmos o gato como se ele existisse antes e depois de nós; não sabermos como era o mundo sem ele.</div><div style="text-align: left;"> Dormirmos uma última noite, sem imaginarmos que era a derradeira, em trio. Passarmos os pés na maciez do gato e, depois, na nossa aspereza de fim. Procurarmos dois novos apartamento com varanda e dois lugares. </div><div style="text-align: left;"> Aprendermos com o gato o valor da embalagem e o desprendimento da coisa.<br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"> A ideia de plantarmos um pé de mexerica no quintal da casa alugada, madressilvas próximas à janela, hortelã, manjericão, salsa e tomate cereja. Assistirmos às raízes se espalharem, imaginarmos na profundidade da terra, sonharmos com a sombra da árvore e uma cadeira bem embaixo da sua copa. Detectarmos uma praga, resistirmos aos pesticidas, curarmos com ervas e expectativas.</div><div style="text-align: left;"> A ideia de que um pé de mexerica pode ser uma fonte eterna de assuntos, resoluções, planos e festas de final de ano ao seu redor. A ideia de que um pé de mexerica nos manteria sólidos, firmes e majestosos. <br /></div><div style="text-align: left;"> Entregarmos a casa ao proprietário, fazermos recomendações para os cuidados com a tangerineira, para dias depois ele derrubá-la para levantar uma edícula em seu lugar. Abandonarmos o pé de mexerica e a sombra sonhada.<br /></div><p></p><div style="text-align: left;"> A ideia de comprarmos uma toalha de mesa quadriculada para o café de todos os dias; recorrermos à toalha a cada falha, desilusão e dor de cabeça. Estendermos a toalha como quem levantasse a bandeira branca da desistência em meio ao fogo. Escolhermos a mesma toalha sempre que precisarmos de algum elemento pacificador de nós.</div><div style="text-align: left;"> A ideia de comprarmos uma toalha de mesa quadriculada para não nos perdermos na volta de qualquer lugar, olhá-la detidamente a cada retorno. Esperança verde, vermelha, branca e com algumas linhas azuis, estendida na mesa do café, sempre que o mundo desequilibrar sob os nossos pés.</div><div style="text-align: left;"> Estendermos a toalha, recolhermos a toalha, lavarmos, passarmos e estendermos de novo. Uma estampa, um tecido, um elemento doméstico que resgate abduzidos.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"> A ideia de chamarmos o ascensorista do elevador do escritório de chefe e o chefe de companheiro, o garçom de amigo e o amigo de irmão. A ideia de escolhermos uma família com aqueles que não tenhamos laços sanguíneos ou memórias. Oferecermos suporte a quem cujo passado não temos e o futuro também não almejamos ter, familiarizarmos sem culpas, sem contratos, sem fim.</div><div style="text-align: left;"> A ideia de desabafarmos com o motorista do aplicativo, ouvirmos conselhos de desconhecidos em filas, chorarmos em um ombro sem históricos ou antecedentes e estabelecermos em um minuto a conversa que não conseguimos em décadas de mesmo teto.</div><div style="text-align: left;"> Sentarmos em frente ao advogado e não sabermos como começar um divórcio já encaminhado por dentro.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"> A ideia de comprarmos livros que nunca conseguiremos ler; comprarmos livros e não assinarmos na primeira página, porque pensamos em bens em comum. Comprarmos autores, idiomas, gêneros, expectativas variadas e compartilharmos o projeto de lermos uma pilha deles nas férias; e nas férias, compramos outra pilha para outras férias. </div><div style="text-align: left;"> A ideia de um biblioteca borgeana em um apartamento de dois quartos, muitos boletos, as jornadas de quarenta horas semanais de trabalho, mais dois pais e duas mães, dois chefes e dois mundos que querem coincidir, mas nem sempre conseguem. </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"> A ideia de treinarmos para uma maratona. Comprarmos tênis, camisetas com tecido de proteção UV, encomendarmos um plano de treinamento, começarmos uma dieta, a dormirmos cedo, até que um de nós descubra que o joelho não poderá concorrer a nenhum metro. A ideia de um avançar e homenagear, na linha de chegada, o outro que ficou ou desistir, por ora, da corrida.</div><div style="text-align: left;"> A ideia de aprendermos tango com uma professora argentina. Compramos sapatos, vinis de Gardel, cravos vermelhos de tecido para o cabelo ou lapela e não sermos capazes de sincronizarmos os passos. E então, a professora sugerir que dancemos com outros pares. A ideia de que o tango é maior do que nós, no salão.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"> A ideia culposa de eternidade. Admitimos a mortalidade, estamos acostumados a naufragar, conhecemos as raízes arrancadas, as pragas fatais, as toalhas das mesas chacoalhadas pelo vento, os vizinhos que não nos cumprimentam, os livros que nunca são devolvidos, as dores nos joelhos e os ritmos que se desencontram, mas ainda assim a ideia culposa de eternidade. </div><div style="text-align: left;"> Não ter fim. Mesmo que Sherazade só tenha resistido até a milésima primeira noite, ignorar as previsões, as expectativas do público, negar os desertos, empurrar os vagões vazios até que o gato tenha sua guarda compartilhada. A ideia dolosa de não querer acabar depois do fim. <br /></div><p><br /></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/QfMd4qhVkYo" width="320" youtube-src-id="QfMd4qhVkYo"></iframe></div><br /><p style="text-align: center;"><br /></p>Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-43085656697918702012023-09-24T18:41:00.015-03:002023-09-24T23:30:57.041-03:00Até deixar de ser imprescindível às epífitas<div style="text-align: left;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjaXD2CGSW82PHWojTCwmn9a3-17OIJaswNUa3C8bbluFRVPxPKBq4Z-R1qh7j_eqhig03U2mf3T4nAwhifwGpURrwaLHXu_Bn9ezmcm04zrWTtVg4uAPsJQ3z3FyMWjk1GRwPumjm1PrHDXFFn153qvUTEJdz9nB6n3uY5rDiOksa3NQOSoC8KwAp8UH9j/s751/cdd408e3c7495a9e411f3b0396773c9e.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="751" data-original-width="563" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjaXD2CGSW82PHWojTCwmn9a3-17OIJaswNUa3C8bbluFRVPxPKBq4Z-R1qh7j_eqhig03U2mf3T4nAwhifwGpURrwaLHXu_Bn9ezmcm04zrWTtVg4uAPsJQ3z3FyMWjk1GRwPumjm1PrHDXFFn153qvUTEJdz9nB6n3uY5rDiOksa3NQOSoC8KwAp8UH9j/w300-h400/cdd408e3c7495a9e411f3b0396773c9e.jpg" width="300" /></a></div> Coloco duas pedras de gelo nas raízes da orquídea, no aparador. Assisto ao gelo diminuir de tamanho até não ter mais bloco transparente nenhum. As flores, antes murchas, se erguem logo e esse é um fenômeno, dentre outros botânicos, que tenho gostado de acompanhar. Lá fora os ipês; aqui dentro as epífitas e as suculentas.</div><div style="text-align: left;"> Os insumos na terra ainda estavam úmidos, quando mãos mais antigas depositam outros dois cubos. Não digo nada, só reparo no cuidado, que atrasado, se integra ao meu. A orientação da rega é antiga, nem água demais nem de menos, mas há casos em que o gesto é mais valioso do que o efeito que ele provoca. Não quero desconcertá-la com a confissão de que cheguei antes. Porque talvez a desampare ao não se sentir mais necessária às orquídeas. </div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"> Logo ela que conquistou esse lugar de indispensável e fundamental à vida do seu microcosmo. Logo ela cujas medidas, os ingredientes, as fórmulas químicas, os nomes, as datas, os substratos, as podas nunca passaram despercebidas. </div><div style="text-align: left;"> Logo ela que entende que toda vida precisa de dedicação e cuidados; ela cuja vida também se alimenta de nutrir outras. Logo ela que equilibrou um mundo, sem quase nunca deixá-lo estremecer. </div><div style="text-align: left;"> Logo ela que não admitia acordar mais tarde, tampouco não ser a última a ir dormir e, agora, fica sonolenta durante a tarde e não sai da cama antes das oito, no inverno.</div><div style="text-align: left;"> Ela que vem antes de tudo e todos e que se acostumou aos rituais de partida, com lenço branco abanado pela mão que, agora, deposita gelo. Ela que sempre ficou para cuidar, ela que se estabeleceu como zeladora de um mundo que ela mesma criou.<br /></div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"> Logo agora que ela tenta ter o mesmo domínio, mas que lentamente perde as horas, os números, a frequência e urgência de cada coisa; logo agora que ela se esquece, se perde, se desequilibra e que disfarça alguns vacilos. Agora que ela queima o arroz, esquece a temperatura do forno médio, os nomes mais conhecidos e cujo pudim não é mais o mesmo. Agora que as suas plantas murcham no calor e que os seus dedos já não conseguem fazer o encontro da linha e da agulha. <br /></div><div style="text-align: left;"> Logo agora que a ordem desse universo, tão conhecido e previsível, se torna a cada dia mais esquivo, cujas subidas parecem ainda mais escarpadas. </div><div style="text-align: left;"> Para atravessar a sala e trazer um par de cubos de gelo até o vaso, atravessou uma areia movediça, não derrubou um pingo de água sequer no tapete, mas o esforço é hercúleo, vejo isso nas suas bochechas saturadas de vermelho. <br /></div><div style="text-align: left;"> <br /></div><div style="text-align: left;"> Continuo calada, mas ela sabe que há algo de incomum na pequena crosta do vaso. Analisa, talvez desconfie que alguém mais regou a flor, pesquisa as raízes, enquanto eu me mantenho calada; não quero parecer usurpadora de nenhum ecossistema. Que eu criasse o meu próprio, talvez ela insinuasse ou pior, que passasse para a minha responsabilidade todo o seu planeta, agora; eu que ainda nem sei onde encontrar a sua porta.<br /></div><div style="text-align: left;"> Sentada na poltrona ao lado do aparador, eu me arrependo de ter matado a sede das Catlleyas, se eu esperasse só mais um pouco, se eu me mantivesse firme no papel que coube a mim desde o início dessa era familiar. Mas o dia de calor me deixou vulnerável aos cuidados de hidratação, depositei dois cubos de gelo nas raízes cujos cuidados não são meus.</div><div style="text-align: left;"> Não matei a sede das epífitas de imediato, antes rondei sua nutridora, puxei assunto, comentei do calor. Quero ajudar, mas não quero. Quero dizer que eu posso partilhar das suas diligências, mas não quero que ela pense que não é imprescindível. Porque é. <br /></div><div style="text-align: left;"> <br /></div><div style="text-align: left;"> Quando uma orquídea morre a dona das mãos experientes demora muito a se conformar, o faz somente quando encontra a causa, o erro crucial que vitimou a planta. Quase nunca é a rega, porque essa é primária demais. Há sempre um fungo, um organismo inesperado, um substrato cujas medidas vieram erradas da loja, um mau adubo. </div><div style="text-align: left;"> Se começar a falhar no essencial talvez desista desse cuidado, se começar a errar no primário, talvez tenha medo de continuar e o medo dela ameaça a minha coragem. Acho duro mentir, mas ainda não estou pronta para ser plenamente sincera com as suas dificuldades; ela disfarça e eu aceito, ela encena e eu devolvo prontamente a fala. Nos nossos diálogos não cabem desistências ainda.</div><div style="text-align: left;"> <br /></div><div style="text-align: left;"> Antes que ela duvide da própria capacidade de análise ou acuse a qualquer outro pela irrigação adiantada, penso em confessar que coloquei duas pedras de gelo no vaso, a propósito de dividir os cuidados com os outros seres da casa. </div><div style="text-align: left;"> Penso em olhar com ternura para ela e me oferecer para cuidar das plantas nessa primavera, se ela tiver outras prioridades, mesmo que eu desconfie que não tenha.</div><div style="text-align: left;"> Penso em oferecer mais horas dos meus dias para manter a vegetação do seu mundo, penso em dizer que estou de dieta e nos livramos da sua decepção pelo pudim que não escorrega mais tão facilmente da forma. Não falo, ainda.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"> Dois dias depois e eu não me adianto na hidratação das plantas, deixarei que desidratem até a mão que as sustentam se ausente definitivamente. Não vou insurgir contra uma líder que nem é tirana, embora não haja nenhuma sucessora próxima que conheça a travessia da areia movediça tão bem. Talvez esse mundo só exista mesmo com ela. </div><div style="text-align: left;"> Segurando um pote de plástico ela atravessa mais uma vez o tapete, deposita um cubo, depois outro, outro e, por fim, um quarto cubo de gelo. </div><div style="text-align: left;"> — Na sexta-feira, só dois cubos foram suficientes. O engraçado é que sempre coloco quatro e hoje também parece menos quente. </div><div style="text-align: left;"> A vida das Catlleyas ainda é dela. A profundidade das suas raízes, o verde das suas folhas, suas sedes e necessidades nutricionais; nada escapa a única governante desse Estado doméstico. Ela é, ela está. Não há motivo para temer,ela atravessará muitos solos movediços até deixar de ser imprescindível às epífitas. </div><div style="text-align: left;"> — Vamos comer pudim, depois do almoço.</div><div style="text-align: left;"> É a sentença do seu governo vitalício.<br /></div><p><br /></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/dmF5IuV39kY" width="320" youtube-src-id="dmF5IuV39kY"></iframe></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><br />Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-88691990885835042852023-09-17T21:22:00.000-03:002023-09-17T21:22:20.147-03:00Aquela sede outra<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhe6f-0JmGjbcSD88OUq4-XrJkePq9DUfyY9NyqdIkmOBkziTF_JVXB9G6QHvPHFRCYDvqQVAryU3qheSEAt0EZ1n_6dYV2P-OGOZMvKGA7HsOfZCQSm41RbxyMO91-IXxxSuLr_rRpDQiV9E-B44B8bAs9srFPpL5j_vCjedH4oD38g4TriG8fyNwqMCb8/s847/36c4c490b568f502e73ee837f983442b.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="847" data-original-width="564" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhe6f-0JmGjbcSD88OUq4-XrJkePq9DUfyY9NyqdIkmOBkziTF_JVXB9G6QHvPHFRCYDvqQVAryU3qheSEAt0EZ1n_6dYV2P-OGOZMvKGA7HsOfZCQSm41RbxyMO91-IXxxSuLr_rRpDQiV9E-B44B8bAs9srFPpL5j_vCjedH4oD38g4TriG8fyNwqMCb8/w266-h400/36c4c490b568f502e73ee837f983442b.jpg" width="266" /></a></div><div style="text-align: left;"><span> </span>A calçada larga, há uma semana, é a casa de alguém que dorme até mais tarde. No caminho da minha corrida diária, ele permanece estático durante as idas e voltas que eu percorro. Eu só conhecia os seus pés e um pouco do contorno do corpo, embalado em um cobertor xadrez colorido. Sua estrutura não é grande, sobra muito ainda da calçada larga.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Há alguns pertences alinhados, do lado de dentro da calçada, pequenas composições estéticas que sugerem gostos, preferências e personalidade, além da utilidade, é claro. Uma mochila quase verde, porque é meio encardida, meio desbotada; uma garrafa pet com tampa azul; uma luminária de cabeceira, sem o fio de energia, sem lâmpada, cuja cúpula tem somente a metade coberta do que parece um pequeníssimo vitral; um baú de madeira, do tamanho de uma caixa de bombons e a caneca amarela.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span> De todos os itens, a caneca é a mais chamativa e é ela que me leva a pensar mais na condição da pessoa de quem só conhecia os pés. É uma caneca grande, está nova e ali, na calçada,
parece destoar de qualquer alusão ao desabrigo. </div><div style="text-align: left;"> <span> </span>É uma caneca de casa, na
qual tomaríamos um café no sábado pela manhã, desprovidas de grandes preocupações. Meia caneca de café, olhando para o vazio por alguns minutos e recobraríamos a energia de um luminária, ainda inteira. A caneca amarela é bastante grande, talvez uns 300 mililitros, tem a estampa de um rosto sorridente e uma alça vermelha, no formato de meio coração. É chamativa e estava vazia, enquanto o homem dormia.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"> <span> </span>No sábado, quando costumo também acordar mais tarde, pela primeira vez eu vi o dono da caneca amarela desperto. Eu caminhava pela calçada, quando o vi com a caneca numa das mãos, olhando para o infinto, como quem recobra a energia, depois de uma semana carregada de compromissos. Ele olhava por uma janela imaginária, tinha uma feição plácida que só as manhãs de sábado podem proporcionar nesses dias. O cobertor xadrez, ainda cobria as suas pernas; como quem tivesse se levantado e voltado para cama para mais alguns minutos.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Mas o homem da caneca amarela além de acordado, não estava mais silencioso. De longe, percebi que cantarolava alto. A faixa de pedestre, a qual atravesso na maioria das vezes, fica um pouco antes do lugar onde ele dorme, mas estendi o meu percurso para vê-lo melhor e tentar ouvir o que ele cantava. </div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Na mesma calçada larga onde ele dorme, ficava antes um hipermercado, cujo prédio foi dividido entre um hortifrúti, uma papelaria e um cartório. Nas manhãs de sábado, é sempre possível ver alguma noiva e transeuntes com e sacolas transparentes cujas coroas de abacaxi, sempre escapam pelas bordas. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Nesta manhã havia uma jovem de vestido branco e batom muito vermelho. O homem com a caneca amarela não olhava para o vazio, mas para a noiva. Tão moça, tão bonita, tão feliz; eu acho.</div><div style="text-align: left;"> Passo por ele, que não vê mais ninguém e escuto:"Vem, que a sede de te amar me faz melhor...". Enquanto cantava, olhava para ela. Tinha os olhos de sonho e o cabelo bagunçado da noite dormida. Parecia muito jovem também. Ele cantava para ela, com o sorriso da caneca e meio coração nas mãos.<br /></div><div style="text-align: left;"> Um dos homens que cercavam a noiva se aproxima e joga uma moeda dentro da caneca amarela. Todos riem. Ele não.</div><div style="text-align: left;"> — Aí não, gente boa! Estragou o meu café!</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Não tinha café, eu ouvi a moeda tilintando no fundo da caneca. O homem da moeda se afasta gargalhando; é o noivo. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>O homem do cobertor xadrez tira a moeda do fundo da caneca, guarda no baú de madeira, volta para a posição anterior, na qual simulava esfriar um café quente, e segue a serenata matutina. "Eu quero tanto te fazer feliz". </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Ele canta para ela, que em alguns minutos vai se casar com outro. Ela está de branco e parece felicíssima.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>O homem da caneca não se importa, só quer tomar seu café e cantar para a musa ocasional da calçada larga. Para quantas ele terá cantado a mesma música? Quanto cafés imaginários ele tem esfriado nesses sábados de casamento? E se só cantou para ela? E se a caneca está vazia, esperando outra coisa que não seja café ou moeda? <br /></div><p></p><div style="text-align: left;"><span> </span>Na volta da minha corrida, ele está dentro de um carrinho de supermercado, sentado sobre a mochila e o cobertor dobrado, com a caneca amarela numa das mãos e um cabo de uma vassoura, na outra, que encosta no chão para fazer o carrinho se locomover. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>No antigo estacionamento do hipermercado, ele brinca de conduzir uma embarcação. Uma gôndola em Veneza. Meio coração nas mãos, uma caneca sempre vazia ou será que cheia?</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Passo por ele que não cantarola mais. Agora posso correr, porque vi e ouvi quem todos os dias era só uma silhueta vulnerável. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Eu também tenho uma caneca grande em casa. Nossas sedes se equivalem à medida que a faísca de um desejo nos torna menos invisíveis. A moça de branco, o sem teto cantante, meus passos certos em um solo que sempre parece provisório. </div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Queria que desse certo para nós. Para mim e o homem da caneca, desperto no sábado de manhã, para a noiva que assina um papel e, na cabeça, alguma trilha sonora romântica. Nós que vivemos, no mínimo, dois mundos, o da falta do pão ou o do suor na meia, o do vestido branco e aquele com o qual sonhamos. Algumas vezes ambos se cruzam; é maravilhoso e assustador.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Na caneca amarela não cabe tudo o que mata a sua sede. Porque as sedes se prologam, estendem até a margem de outros rios. Queria que as noivas soubessem que o amor também dorme nas calçadas do hipermercado. Queria que o sedento encontrasse finalmente a sua fonte. Mas amor e sede são corridas de infinitos quilômetros; só a gôndola de Veneza para fazer esse encontro.<br /></div><p><br /></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/5MCpTa0yYVM" width="320" youtube-src-id="5MCpTa0yYVM"></iframe></div><br />Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-70650589473614567792023-09-03T20:37:00.002-03:002023-09-03T21:39:03.748-03:00Um iglu não é uma casa vazia<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi7tix7R-NqzeAL0CRyTFvUy1gqHsX6ANhRcU1XEr_xFfFnrGbAD_joTChaLSviqstPjEB-GJgIdlpqbXNLsC6uPlPbMRuELq8yIrGlhnAcxw7JFlpJ1_GBG5QHavvfxMugFWgf1OZ7nBQT0Cb-y2Ap4EEp8gGVgP3FbBqRuFS-lzwV4oWlgkIOLsJ5xX4Z/s690/59c9abdafb2c4900dd84890a5e1caa17.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="690" data-original-width="460" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi7tix7R-NqzeAL0CRyTFvUy1gqHsX6ANhRcU1XEr_xFfFnrGbAD_joTChaLSviqstPjEB-GJgIdlpqbXNLsC6uPlPbMRuELq8yIrGlhnAcxw7JFlpJ1_GBG5QHavvfxMugFWgf1OZ7nBQT0Cb-y2Ap4EEp8gGVgP3FbBqRuFS-lzwV4oWlgkIOLsJ5xX4Z/w266-h400/59c9abdafb2c4900dd84890a5e1caa17.jpg" width="266" /></a></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Um hodômetro não guarda as memórias de um itinerário; só as medidas. Uma bifurcação nem sempre é escolha; às vezes o lado já está determinado na saída. A dois passos do paraíso não significa chegar lá; a duzentos pode ser que chegue. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Uma onomatopeia não explica a chuva, não explica as chaves, não explica um choro. Uma onomatopeia só ilustra. Uma onomatopeia é o quadro no texto. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Três pratos de trigo para três tigres tristes não resolve a melancolia de ser tigre. "Segunda eu começo" não é uma mentira, é mais uma esperança. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Um útero não é uma mulher; mas um útero condiciona o que é ser uma mulher.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Um ventríloquo não é mãe nem dono, mas o próprio boneco. Um ventríloquo simula ser outro para os outros rirem. O ventríloquo só quer ser amado; o ventríloquo somos nós.<br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Um barco na areia não está perdido; uma embarcação à deriva também não. Estar perdido é não ter chão.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Um homem de bem é um homem que mata, por bem. Uma mulher de bem é uma mulher que se oferece para morrer, por bem. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Um útero não é uma casa, um receptáculo ou um vazio à espera; um útero não é propriedade pública.<br /></div><p></p><div style="text-align: left;"><span> </span>Cacos de vidro não desamparam para sempre um aparelho de jantar. Um aparelho de jantar incompleto tem mais histórias do que um com todos os pratos. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Um amor que não resiste à noite de domingo não é sempre um erro, mas às vezes é. Um amor que não resiste à noite de domingo pede fast-food e liga a TV para ver se esquece. Um amor que não resiste à noite de domingo é uma solidão infinita.<br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Uma mulher sem destino escreve às duas da tarde de um sábado e não está perdida, porque pisa nas palavras que ela mesma tece. Uma mulher que faz o próprio tapete é também uma sobrevivente. Um útero nunca está vazio; um útero não tem paz nem quando sexagenário. Um útero tem muitos juízes. </div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>O rio de uma vila é mais sagrado do que a igreja secular da vila. Um rio corre independente, um rio mata a sede, limpa os pés e os cabelos, purifica, refresca, irriga a vida. Um rio não excomunga quem com ele não concordar; um rio nunca negará água.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Um retrovisor avisa sobre o que vem atrás; é o reflexo do que passou, mas ainda ameaça. Um retrovisor adverte sobre o que não apaga. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Uma cicatriz nem sempre é resultado de um trauma, mas um trauma sempre produz uma cicatriz; seja ela visível ou não. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Um útero é comemorado se produz frutos — mas somente os bons — um útero é comentado exaustivamente se não. </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Uma bandeira não é um país, um hino não é um país, uma ideologia também não. Mas uma bandeira, um hino e uma ideologia precisam de um país. As leis, as armas, os mercenários não são a guerra. Mas as armas, as leis e os mercenários só existem em nome do conflito; mesmo que seja pelo seu fim.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>O senhor das armas não está preso. O senhor das armas nunca será alcançado.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Uma utopia começa e não tem fim; uma utopia é irmã siamesa da esperança; dividem os mesmos alvéolos pulmonares. Uma utopia é útero em gestação permanente sem data para parir.<br /></div><div style="text-align: left;"> <br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Uma revolução só é quando não acaba. Uma revolução só é quando nada mais volta a ser como antes; uma revolução precisa de dança e livros; uma revolução está cansada das bombas.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Uma revolução precisa ter coragem na fadiga e compreensão no medo. Para uma revolução não tem receita; uma revolução não tem reação adversa para vila que reverencia mais ao rio.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Um útero é revolucionário quando não é violado; um útero que escolhe é um início de uma revolução. </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Um iglu na Groelândia abriga uma mulher e um homem adultos, três
crianças, cujos nomes têm a mesma inicial e um cachorro de doze anos. Um
iglu não é quente como uma sauna, tampouco frio como um congelador. Um iglu mantém a temperatura dos corpos que ele abriga ou da fogueira que ele protege. <span> </span></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Um iglu é um útero glacial. Um
iglu só não é uma casa vazia. </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/HwevxY90Z8Q" width="320" youtube-src-id="HwevxY90Z8Q"></iframe></div>Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-77207293355199245752023-08-27T20:25:00.000-03:002023-08-27T22:26:08.175-03:00 Agora que expulsamos todos do Éden<p></p><div style="text-align: left;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiWXL4bA36mZyOP4YctSR6hJ3eFnmtyXbFIQuOsuPyp6qWTIs_lOer6BC59FBwDgFJIbEADbSpS6zgUXS7Qbjspb1KS-c36OR_r2CznQyyCvGLErKgAkfwFjoXa4H9Tt8t1jcmozg18c_hzfqIpFzOwkMbkA0mJsk9SSQq2nT2bpaYCgKJ-gQiPaiq5dvbz/s600/fb045866d781e338673bab14873aa582.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="600" data-original-width="500" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiWXL4bA36mZyOP4YctSR6hJ3eFnmtyXbFIQuOsuPyp6qWTIs_lOer6BC59FBwDgFJIbEADbSpS6zgUXS7Qbjspb1KS-c36OR_r2CznQyyCvGLErKgAkfwFjoXa4H9Tt8t1jcmozg18c_hzfqIpFzOwkMbkA0mJsk9SSQq2nT2bpaYCgKJ-gQiPaiq5dvbz/w334-h400/fb045866d781e338673bab14873aa582.jpg" width="334" /></a></div><span> </span>Agora que todos os outros mundos nos faltaram. Que as outras vozes não nos abalam. Que os únicos quadros que olhamos estão nas mesmas paredes. Que os nossos gritos não alcançam outros incêndios. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Agora que nenhuma mão que não seja a minha ou a sua abrirá o portão. Que nenhuma carta conta o que já não sabemos e que remetente e destinatário se intercalam entre nós. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Agora que expulsamos todos do éden. Agora que nenhuma flor nesse jardim desabrocha sem o meu olhar ou o seu. Que nenhuma ruína dura muito mais que um dia. Que as pirâmides nos deixam menos boquiabertos do que cada minuto nosso.<br /></div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Agora que ninguém virá nos salvar, porque não temos telefone de emergência, não pagamos seguros e que trocamos todos os nossos documentos para incluirmos o sobrenome um do outro, ignorando os conselhos. Que acreditamos piamente, que dispensamos o plano b e ignoramos as estatísticas. <br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Agora que compramos muitos vasos de plantas e sementes, que não temos mais medo das mortes; que a Amazônia está na nossa sala de estar. </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Agora que nenhum lençol permanece desamassado. Que as noites são tão curtas; que os dias custam a passar. Que os oceanos, os vulcões, os desertos, as chuvas torrenciais parecem menores e menos destrutivos a cada tarde de conversa contigo. Que eu não me sinto atrasada em nada, que tampouco me adianto a qualquer coisa; agora que temos a hora exata, seja ela qual for. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Agora que eu não olho para mais ninguém na rua e não espero outro para começarmos o jantar. Que eu não sou mais estrangeira, que o meu idioma coincide quase sempre com o seu; que os meus modos à mesa não surpreendem, que eu não volto para ver se fechei a torneira e se tranquei a porta. Agora que eu pareço fazer parte de algo pela primeira vez; que não estou mais longe, que tenho sempre sapatos com o meu número de pé. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Agora que compramos móveis, panelas e xícaras para a casa. Que mantemos a varanda sempre iluminada e varremos todos os dias as folhas do chão.<br /></div><p><span> </span>Depois que o espelho embaçar pela primeira vez, que o chuveiro queimar bem na vez do outro, que as histórias se tornarem repetitivas e que as cartas forem eventuais até serem completamente escassas. <span> <span> </span></span>Depois que o paraíso parecer apertado, previsível e deserto; que as calhas do telhado transbordarem, porque esquecemos de limpá-las. Que as ruínas invadirem a nossa sala amazônica e que os planos b, possibilitarem c e d. Que o Cazaquistão não pareça absurdo e que tenhamos salvo nos nossos aparelhos telefônicos todos os contatos que puderem nos ajudar: gás, água, mãe, colega de trabalho, primos e um advogado indicado por alguém de quem nem nos lembramos mais.<br /></p><div style="text-align: left;"><span> </span>Depois que as minhas mãos não encontrarem as suas. Que a louça não se acumular mais na pia, porque queremos nos manter ocupados. Que o jardim tenha morrido de solidão e que as avencas da varanda só sobrevivam com água e adubo.</div><div style="text-align: left;"><span> </span> Depois que no meu carro não tiver mais o seu cheiro. Que o supermercado for o primeiro lugar de descanso, que a sua língua não for mais a mesma que a minha e a minha etiqueta começar a te incomodar, à mesa.</div><div style="text-align: left;"><span> </span> Depois que os seus molares não forem mais da minha conta, sua mãe, seus pesadelos, seus problemas no trabalho.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Depois que tivermos que vender os móveis e entregar a casa ao locatário, chorará pelo sofá cinza de três lugares ou pelo sonho esfarelado no chão da cozinha? Depois que a minha voz estiver muito longe, se esforçará para ouvi-la ou para esquecê-la? Depois que o vizinho avisar que me viu chorando de camisola, andando sem destino, vai me buscar de pijama ou trocar de roupa antes que alguém da sua emergência chegue?</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Depois que o meu sobrenome não fizer sentido na sua identidade, irá imediatamente a um cartório ou vai se sentar e respirar antes de decretar esse outro começo? Depois que os cactos morrerem, que ao nosso gato restar uma última vida e que nenhum Éden nos sustente, vai escrever uma derradeira carta ou começar outra sequência delas para não acabar nunca de chegarem?</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Não vamos nos preocupar ou devemos nos precaver? Como fazem as outras pessoas quando entram em um bote, depois de rejeitarem o navio? Devemos aprender a nadar já ou devíamos ter aprendido antes do bote? E se nadar não for preciso?</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Como fazem os que abandonam os outros mundos por um só? O retorno é possível ou habitar no próprio e visitar os outros é o melhor caminho? Como se comportam os outros donos de Ráfias, Antúrios e Begônias? Não queria adiantar o assunto. Talvez não o faça. Talvez pense nisso sozinha, quando você for à padaria.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Mas caso, um dia, alguém não caiba mais nessa embarcação tão íntima, que não se esqueça da Amazônia com a qual sonhamos um dia e que o último a sair do éden, coloque água na Costela-de-Adão e carregue o gato para um lugar com varanda; essa é a última vida que ele tem agora.<br /></div><p><br /></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/YiLBX2z1zYo" width="320" youtube-src-id="YiLBX2z1zYo"></iframe></div><p style="text-align: center;"><br /></p>Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-87301031344329419372023-08-17T20:59:00.144-03:002023-08-21T16:03:55.186-03:00A mulher de mil corações<div style="text-align: left;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg63yhimBO7Zmav1wkcvPG-eEdk6MRq3Qq3KPayW9z3UUn-_g_ZO_HWuEERHarGZmOrOyHr1q6pbgb_HXPFO64i2_CpH4t62uQtyuSnnwPkscWqdyR7qH2lM2nRPS8PnlVCAx5mucmLS5YNGMsbu4lupahXYGghrEyeKAalQweTlFXl9P5apVCdvDFTBx4W/s760/adcb8a90d640e874f55cfaec27829d3f.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="760" data-original-width="564" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg63yhimBO7Zmav1wkcvPG-eEdk6MRq3Qq3KPayW9z3UUn-_g_ZO_HWuEERHarGZmOrOyHr1q6pbgb_HXPFO64i2_CpH4t62uQtyuSnnwPkscWqdyR7qH2lM2nRPS8PnlVCAx5mucmLS5YNGMsbu4lupahXYGghrEyeKAalQweTlFXl9P5apVCdvDFTBx4W/w296-h400/adcb8a90d640e874f55cfaec27829d3f.jpg" width="296" /></a></div><span> </span>A mulher de mil espelhos não tem uma roupa preferida, não espera o homem do gás chamar, não adoça a voz para falar com o frentista. A mulher de mil espelhos não tem hora para voltar, não se inspira no ilusório, não tem máscaras para guardar. A mulher de mil espelhos se levanta antes do sol, lava as roupas da semana e ouve os jornais diários enquanto toma o café que ela mesma coa.<br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>A mulher de mil intertextos usa pena, usa pincel, tem um teclado com letras apagadas e máquina fotográfica antiga. A mulher de mil intertextos olha para o filho e vê a sua mãe, não tem o nome do pai na certidão e, por isso, assume a própria paternidade, mas não sem conflitos. A mulher de mil intertextos deixa um recado na secretária do dentista, que parece um poema e escreve um soneto, que parece uma denúncia. A mulher de mil intertextos se lembra de um filme, enquanto dança e escuta notas musicais, enquanto lê; a mulher de mil intertextos nunca está só.<br /></div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>A mulher de mil senões não desvia do cachorro de rua que só quer brincar, não transporta amarguras nos bolsos nem aceita caber no sonho que não é dela. A mulher de mil senões não aduba terra improdutiva e só invade onde puder cultivar. A mulher de mil senões encontra a mulher de mil perdões, em um café, e ambas discutem a quem mesmo devem oferecer segundas chances.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>A mulher de mil perdões não é esquecida, tampouco é estúpida, só não exige a perfeição da coerência a qualquer custo. A mulher de mil perdões abriga a mulher de mil senões, mesmo quando discordam de qualquer coisa. A mulher de mil senões sempre está pronta para acenar para mulher de mil perdões.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>A mulher de mil armaduras estende a mão ao vazio, mergulha no rio do qual não conhece a profundidade, sem medo de enferrujar, e é frequentemente ferida onde o traje não alcança. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>A mulher de mil armaduras não parece pesar, embora cada roupa completa tenha mais de vinte quilos, não leva escudo, não desembainha a espada porque é pacífica desde o seu nascimento. A mulher de mil armaduras dança o seu balé, é autora dos seus próprios hinos e tem mil bandeiras, mas não obriga nenhum exército a hasteá-las. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>A mulher de mil armaduras come com o prato na mão, porque nunca é convidada para a mesa de jantar. A mulher de mil armaduras se levanta antes de todos na casa e é sempre a última a se deitar; quase ninguém conhece os seus cabelos, mas a sua voz é ouvida até no outro continente. A mulher de mil armaduras tem na voz a sua arma mais potente.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>A mulher de mil corações já remedou quinhentos e aposta diariamente a outra metade, porque não recorre à segurança de um banco de antecedentes para poupar os ventrículos. A mulher de mil corações tem afetos múltiplos e ternuras intermináveis por tudo o que é comezinho e insignificante; tem um inventário próprio de estimas que não figuram nas milhões de publicidades da ilha.</div><div style="text-align: left;"> <span> </span>A mulher de mil corações entrega sempre uma parte de si sem pedir adiantamentos, não o faz por consignação e não assina contratos.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>A mulher de mil corações tem sempre uma raiva a despontar, um ódio secular que não consegue disfarçar e a angústia de quem sente sem cessar. A mulher de mil corações não é só ternura e zelo.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>A mulher de mil corações abre o peito dia sim e dia não, mas não cobra ingressos para o espetáculo.</div><div style="text-align: left;"> <br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>A mulher de mil alforrias se lança à improvável liberdade e anda sempre à margem até alcançar seu regaço sonhado. A mulher de mil alforrias se joga da segurança autoritária para o barco sem velas e sem coletes salva-vidas, o qual ela mesma aprende a remar. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>A mulher de mil alforrias não escreve cartas com pedidos singelos aos poderosos, tampouco assina leis que não concebeu, mas traça estratégias para libertar todas as outras que souberem das algemas. A mulher de mil alforrias não agradece à Isabel.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>A mulher de mil nomes e nenhum sobrenome não levará o legado de dois mil homens em um Albuquerque, Ferreira ou Silva. A mulher de mil nomes só defenderá os ocultados de todas as histórias, as reais heroínas de qualquer pátria. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>A mulher de mil nomes assina todos eles, sem hierarquia ou ordem de preferência; porque não tem medo da sua autoria. A mulher de mil nomes assume as suas mil vozes e dá a elas a amplitude que não tiveram antes. A mulher de mil nomes não se preocupa em ocupar muitos espaços na assinatura, ela escreve no verso da folha, se for preciso. A mulher de mil nomes é do tamanho dos seus muitos nomes. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Para a mulher de mil nomes o alfabeto é restrito, a mulher de mil nomes pode inventar suas próprias sílabas; não necessariamente com uma vogal e uma consoante.<br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>A mulher de mil derrotas não tem mais medo de perder, não leva amuleto da sorte nem consulta os compêndios dos notáveis históricos. A mulher de mil derrotas tem cicatrizes antigas e outras recentes, de cada queda, e muitas memórias de renascimentos. A mulher de mil derrotas não fica muito tempo no chão e se está nele é para pensar em como se levantar. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>A mulher de mil derrotas, às vezes, se queixa de estar cansada de lutar; quem ouve a mulher de mil derrotas se não outra mulher? A mulher de mil derrotas não tem espaço nos museus, nos livros, nos bustos das praças; a mulher de mil derrotas quer outros espaços. A mulher de mil derrotas quer ganhar um dia.<br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>A mulher de mil domingos, acompanhada dos seus mil intertextos, depois de um cochilo à tarde, aguarda a segunda-feira, enquanto lustra sua armadura. A mulher de mil domingos se prepara para dormir e para acordar uma mulher de mil segundas-feiras.<br /></div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/-2QBmBYvVfE" width="320" youtube-src-id="-2QBmBYvVfE"></iframe></div><br /><div style="text-align: center;"><br /></div>Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-45443665410124637862023-08-14T23:00:00.008-03:002023-08-14T23:56:55.561-03:00A primeira janela que é também a última<p></p><p></p><div style="text-align: left;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgh_GXDoKGdUaPpl_QF--YXLh9NLO12Az42Yg8Qp7usHL0GXt0Qd-HFpDsaD95_IPV6Ke0PXwoSQ1fI5MwVfV_ur8Dket-sF5gaXxtYX-qrMEGiMsSsOe2Qfk8kCqdVLG_ANjizUuJDaWA3LqlqdUSkovmy1zKkQAVgj8SFmh1J9MfLArddXNCGnN08fX6A/s600/7ac7e340d6baf4a6e0263aa48bf2ae9c.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="600" data-original-width="500" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgh_GXDoKGdUaPpl_QF--YXLh9NLO12Az42Yg8Qp7usHL0GXt0Qd-HFpDsaD95_IPV6Ke0PXwoSQ1fI5MwVfV_ur8Dket-sF5gaXxtYX-qrMEGiMsSsOe2Qfk8kCqdVLG_ANjizUuJDaWA3LqlqdUSkovmy1zKkQAVgj8SFmh1J9MfLArddXNCGnN08fX6A/w334-h400/7ac7e340d6baf4a6e0263aa48bf2ae9c.jpg" width="334" /></a></div><span> </span>É bastante tarde e faz muito frio quando eu ouço pela primeira vez. Depois do trabalho, a rua vazia e eu não esperava por nada, talvez só chegar em casa com segurança.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Ali onde a rua é mais íngreme e o meu impulso é mais forte; vontade de chegar em casa, medo da rua escura e dos passos que vêm atrás, algumas vezes. Noite de agosto, cidade silenciosa, a volta depois do cotidiano enfadonho e o cansaço de uma semana que ainda começa. Me preparo para a impulsão da subida, mas há uma casa. A primeira da rua, depois da demolição da que vinha antes. Uma casa que parece mais baixa do que o normal, porque nesta rua, quase toda ela, foi invadida por prédios cada vez mais altos. Mas a casa resiste; baixa, espaçosa e discreta. Sem cores fortes, sem adornos espalhafatosos. Uma casa com uma árvore na frente e fios de energia que poluem a fachada e a deixam ainda mais desvalorizada.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"> <span> </span>Em todos os dias a casa esteve ali; há alguns anos, quando havia uma outra antes dela, o aquário na sala — ou o que parece ser uma sala — é que roubava a minha atenção. Com a porta aberta e as janelas escancaradas, no verão, a água refletida em azul capturava os meus olhos. Sempre que eu passava por ela era o aquário que eu procurava. Até que veio a música, na última semana. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Já ouvi, outras vezes, notas musicais que ecoam da mesma sala do aquário; me lembro de escutar Chorinho, mas não sei quando. Talvez não tenha dado a atenção que merecia ou a rua estivesse mais barulhenta. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Mas na última semana, sem ninguém na rua, porque era frio e muito tarde, a música desacelerou meus passos e conteve a minha pressa cotidiana. A única luz acesa, as janelas fechadas e uma peça clássica, na segunda-feira, me lembram de ser ou, ao menos, querer ser outra coisa que não pressa e impulsão na parte íngreme das coisas.</div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>A música do piano parece uma naturalidade, um fenômeno como chuva ou arco-íris; sem esforço, sem dono, sem mãos reconhecíveis que orientam uma trajetória. Por ela desacelero, por causa dela paro na parte mais escura da rua e procuro em outras janelas alguma testemunha, alguém com quem eu possa compartilhar o sublime. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>— Você também ouviu isso? </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Mas não há ninguém, não que eu possa ver. É claro que os vizinhos do prédio colado à casa ouvem e, talvez, os do prédio da frente. Não sei se acostumados e, por isso, reclamam da altura, das repetições — caso seja um treino ou ensaio — ou, quem sabe, enrolados em cobertores desfrutam do que eu ouço na rua, tão desprotegida, tão vulnerável ao vento, cerração e escuro.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Fico de pé em frente à casa, por alguns minutos, penso em me sentar no muro baixo do prédio da frente, mas minhas mãos e lábios congelam. E não sei quando acabará, se a peça terá um fim ou subitamente as mãos pararão e me deixarão com frio e sem final.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Resolvo subir; só que, agora, mais lentamente. Os passos mais demorados que sou capaz de executar. Todo o esforço para ter mais tempo possível daquela música.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>— Não vou chorar. Isso é certo. Não estou triste, tampouco exausta. Não vou chorar, mas é bonito.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Passei a parte mais elevada, agora descerei e deixarei a música para trás, penso se é o melhor a fazer. Penso que talvez não tenha outra oportunidade de beleza esta noite. São quase onze de uma terça-feira. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>A árvore em frente à casa parece me acompanhar, enquanto a música vai sumindo, aos poucos. Essa árvore que já me viu tantas vezes, essa árvore que sabe do meu encantamento pelo aquário, que eu mudei de turno de trabalho muitas vezes e, agora, que não quero abandonar a música.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Chego à esquina e é inevitável, a poucos metros não terei mais a música; do ipê eu só vejo o topo agora. Preciso seguir, mesmo que não tenha música. Invejo os vizinhos que já estão deitados, aquecidos e continuam a ouvi-la.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Caminho mais alguns metros, é estranho que eu ainda ouça a música, mesmo tão longe. Viro mais uma esquina e não tem ipê ou aquário, mas o que eu ouvi ainda ecoa em algum lugar que eu não sei precisar. Tiro as chaves da bolsa, abro o portão, caminho pelo hall do prédio e há música sim. Abro a porta de casa e, na sequência, fecho. E é inacreditável que eu ainda escute as notas que me despertaram de um letargia laboral. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Vou para o banho, não ligo a TV, tampouco ouço as mensagens no celular, quero deixar o ambiente imperturbável para que a música ainda me alcance, talvez seja esse o segredo.<br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>É claro que a música não é para mim, não é uma homenagem, um presente ou nada que lembre uma dedicatória, mas é evidente também que ela me acompanha, estaciona em alguma parte que precisava dela. Não penso em quem a toca, não tenho interesse ou curiosidade nenhuma maior que o próprio desejo de mantê-la o máximo de tempo comigo. Sem devoluções, sem negociações, sem custas com direitos autorais ou mensalidade de streaming, só quero que essa surpresa dure o quanto puder, sem litígio. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Eu não pedi que ela atravessasse o meu caminho, tampouco pedi que me deixasse passar sem saber dela; eu só escutei, precisei de um tempo para admirar e não nos separamos até eu ir dormir. Não compartilhei com ninguém sobre o encontro, ninguém nos viu; somos eu, o ipê e a música atados a essa casualidade da vida. Choro no banheiro, mas não estou triste.<br /></div><p></p><div style="text-align: left;"><span> </span>Quando vou me deitar, a janela de onde saía a música apaga as luzes e o piano para. O silêncio pousa sobre a minha cama, terei que abrigá-lo de novo. Abro espaço entre as cobertas.<br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>A primeira janela da rua é a última lembrança do dia. Na página recém-marcada do meu livro, na cabeceira, a autora afirma que ninguém sabia melhor que o tempo passava do que Virgínia Woolf. E essa é música que eu ouço agora; o tempo de Woolf.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/6emKPjmRFJ4" width="320" youtube-src-id="6emKPjmRFJ4"></iframe></div><br /><p><br /></p>Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-83416940784074023992023-08-07T18:09:00.002-03:002023-08-08T16:49:51.504-03:00Todos os amores terminam igual<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: left;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjCM0R-sE_gfnzxfY-94v_ry6EdNaOza1iHZsZB559Q1KcRi9dskstzHq09czcK6s4hj8dAGlsGpbJSLjjgkYaaWi34pbmmuSfFmFv_-tH7FM4dDX_er2M0IqJ1NrLBy7zIi6sasHOf1O293-hFYiwCoKTgxd6-_R57FPliv--FHf5DXlnOeyTwUBYOec9I/s705/b1310873e8f9906aa999c09965da0a80.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="705" data-original-width="563" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjCM0R-sE_gfnzxfY-94v_ry6EdNaOza1iHZsZB559Q1KcRi9dskstzHq09czcK6s4hj8dAGlsGpbJSLjjgkYaaWi34pbmmuSfFmFv_-tH7FM4dDX_er2M0IqJ1NrLBy7zIi6sasHOf1O293-hFYiwCoKTgxd6-_R57FPliv--FHf5DXlnOeyTwUBYOec9I/w320-h400/b1310873e8f9906aa999c09965da0a80.jpg" width="320" /></a></div><span> </span> Não sei nada sobre os momentos que antecederam a ligação, tampouco como e onde começou; se já ali na porta da loja de telefones na avenida central ou se, exaltada com a conversa, chegara até ali para esbravejar sem paredes. Ela está muito agitada quando eu passo, suspeito, inclusive, que uma gotícula do seu desespero molhou o meu antebraço — só desejo que seja lágrima, me parece mais higiênico e seguro — mas era tanta umidade no rosto vermelho dela que pode ter vindo do nariz ou boca. Era um ódio suculento, uma ira pantanosa. Berros que jorravam água e sal, ondas de um mar revolto. Quem se atrevesse a consolá-la agora, deveria fazê-lo de barco, guarda-chuvas e galochas. Não sei se foi mesmo um fim, como ela anunciou algumas vezes antes de abaixar o telefone e chorar abraçada a si mesma na entrada da loja, ao lado de um boneco inflável de sorriso bobo. <span> Mas pareceu um indício de fim ou uma necessidade de fim. Para segurança dela, eu penso; para conhecer outra coisa que não seja isso, rogo. </span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: left;"><span><span><span> </span> </span>Nada vale isso, um telefonema desses, um choro público e descompensação marítima no meio da cidade, numa segunda-feira. </span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: left;"><span><span> </span>Ela parece muito jovem e também me lembro que alguns sentimentos já me levaram a essas tempestades, nunca ao lado de um boneco inflável, nunca com a camiseta de uniforme do trabalho para o qual eu deveria voltar cinco minutos depois de ter derrubado um ancoradouro só com os líquidos que saíssem do meu corpo. Mas ainda assim já me afoguei de mim.</span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: left;"><span><span> </span>Ela fica para trás, mas o seu choro segue comigo, não sequei a gotícula do meu braço, tampouco saquei o vidro de álcool da bolsa, como faria meses atrás talvez. Levei o choro como forma de respeito e solidariedade; levei o choro com a esperança que estivesse ajudando a secar um pranto tão nosso. Mas esta não deve ser a derradeira encenação do fim do amor. O fim mesmo me parece muito mais silencioso e discreto; quase imperceptível. Imagino isso, porque todos os amores terminam igual.</span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: left;"><span> </span> <br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Exceto os que parecem terminar, mas só descansam, porque precisam de paz, um lugar para se sentarem e um café, sem perguntas. Então acaba uma temporada, ambas as personagens se despedem, às vezes até harmoniosamente. Combinam de separarem os livros, irem à corretora para pedirem uma cópia do contrato e calcularem os gastos para a entrega do apartamento. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Combinam um último evento social, o casamento da irmã dele, porque seriam padrinhos e arranjar alguém, assim de última hora, será mais uma atribulação para os nubentes, que já têm tantas outras. Combinam a guarda compartilhada do cão e a maneira que anunciarão o término para os amigos mais próximos, ainda não sabem se antes do casamento da irmã dele ou no dia seguinte à festa. Então na harmonia dos planos de abandono, recebem, numa manhã no parque, da boca do cão que levaram para um passeio, o amor que achavam ter se deteriorado. O cão deles que não poderia ser repartido, mas já entrava nos acordos finais, desenterra o amor perdido e ninguém mais precisa pensar no tempo para avisar aos íntimos. O amor voltou a pulsar. Todos os amores terminam igual, mas só quando não há um cão que o possa farejar.<br /></div><p></p><div style="text-align: left;"><span> </span>Afora os que descobrem que nem se amavam. E que depois de uma partida, com a distância do campo em uma imagem que pedem para rever, veem dois amando duas projeções que nunca se materializaram. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Dois jogadores exaustos, depois de uma prorrogação inesperada, antes de tentarem os pênaltis, se veem no VAR não se amando. Entraram companheiros de time, mas saem de campo adversários em times opostos. <span> </span><span> </span></div><div style="text-align: left;"><span> </span> Atiçam as torcidas uma contra o outro, convocam entrevistas coletivas e despejam provocações, aprendem coreografias para a comemoração de um gol, só para humilhar o antigo parceiro de jogadas. Ferem pelo abandono, se vingam porque não receberam a bola quando estavam na cara do gol. Odeiam mais quando ouvem o hino antes do jogo e relembram que amaram um jogador que nunca apareceu nos mesmos treinos. Todos os amores terminam igual, mas só se as chuteiras não estiverem bem amarradas.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Salvo os que sempre exigiram muito mais amor do que desejaram oferecer à outra pessoa. Amores que sempre priorizaram espelhos, que nunca saíram de si, porque não sabem o quanto é interessante lá fora. Amantes mais dos elogios do que olhos de alguém. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Mas então, num dia, acordam e acham que o amor acostumado é pouco, por isso rompem para irem atrás de um novo, fresco, com uma diversidade maior de adjetivos no repertório. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Seguem como Tuaregues que visitam o oásis e vão embora depois de beberem toda a água, deixando para trás um deserto fraturado. Todos os amores terminam igual, mas só se os desertos sempre são o outro.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Exceto os amores que terminam na fila da burocracia, com divisão de clipes e sacos de pão e que talvez até germinassem de novo se não fosse a raiva das muitas cláusulas do contrato que nem sabiam que assinaram. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Amores que não têm mais paciência, que querem amar sem erros, sem deslizes na língua padrão, sem marcas de café nos móveis preferidos. Amores que não admitem manchas de dedos com manteiga nos livros, que não querem mais as toalhas molhadas em cima da cama, que não suportam as camisetas acumuladas na poltrona do quarto. Que não querem mais esperar ou serem apressados para saírem, que não suportam mais o barulho do outro quando toma café. Todos os amores terminam igual, mas só se o barulho da porta batendo for menos importante que o do próprio coração.<br /></div><div style="text-align: left;"> <br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Todos os amores terminam igual, mas nem tanto. Deixar uma moça tão desesperada no meio da própria tempestade, sem planos, sem terra à vista, sem faróis ou olhos cansados demais para os encontrarem é algo comum com o qual eu ainda não me acostumei. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>A lágrima dela veio no meu braço, o seu abraço abarcando a si não sai da minha memória, começamos a nos consolar desde muito cedo.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>O boneco inflável de sorriso bobo é o interlocutor do outro lado da linha, parecia um mascote pacato, mas aniquilou uma serenidade por alguns minutos. Um dia, ela se lembrará da cena, que eu por acaso testemunhei, e a pipoca que comeu depois da arrebentação fará mais sentido do que qualquer marulho, depois da tempestade. Todos os amores se terminam é porque o mar foi maior.<br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/1VyA3QgjYSo" width="320" youtube-src-id="1VyA3QgjYSo"></iframe></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div>Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-468228735489199568.post-66933534377004349032023-07-31T23:55:00.003-03:002023-08-01T12:19:11.983-03:00Por sorte ainda há um atum de dois quilos e trezentos<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhfpJ7zqiKXjIe4Iom-UyvbCf1nLg3jeKVjLr40KkE-2P8ls10jSEzmaLiMHuo0cBWo-C_T0XdnLzpkKIe2Tqc9kc-EKpcPAbT6gBTwpuvYy1BMziwAuOXT_fufwP2ZakykSxF3gZrtIKW2s9GLsuN7dTamp5_0hwr-rmc65bBQmwYIw2EXkVKsLjp4tOBT/s714/5a4fd57e3bcedd0d567e57d8a4085007.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="714" data-original-width="564" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhfpJ7zqiKXjIe4Iom-UyvbCf1nLg3jeKVjLr40KkE-2P8ls10jSEzmaLiMHuo0cBWo-C_T0XdnLzpkKIe2Tqc9kc-EKpcPAbT6gBTwpuvYy1BMziwAuOXT_fufwP2ZakykSxF3gZrtIKW2s9GLsuN7dTamp5_0hwr-rmc65bBQmwYIw2EXkVKsLjp4tOBT/w316-h400/5a4fd57e3bcedd0d567e57d8a4085007.jpg" width="316" /></a></div><div style="text-align: left;"><span> </span>São quinze minutos de carro e, se tiver sorte, uma fila de dez minutos para o pedido e mais cinco no <br />caixa. Se fosse só assar o peixe, mas antes tenho que limpá-lo, antes disso tenho que ir à peixaria e negociar o mais fresco, pesado — mas não demasiado — e, na esperança primeira, de encontrar um que o meu dinheiro possa comprar. Morar afastada do litoral tem dessas coisas. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>O homem para o carro e eu preferia cancelar a viagem, tudo por causa de um adesivo no vidro traseiro. Achei que estivéssemos melhores agora, mas me lembro que andamos em bolhas ainda. Entro no carro um pouco a contragosto, um pouco condescendente. Se fosse só uma eleição, mas são séculos de colonialismo. E eu só queria um peixe para o almoço.<br /></div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Se fosse só aprender e ensinar as letras, como códigos universais. Como ler bulas de remédios, manuais de instruções, comunicados e avisos. Saber quem chega, a que horas e estar preparado a tempo ou que foi embora e o porquê; saber de quanto em quanto tempo administrar o medicamento e, por curiosidade, as reações adversas — ainda que seja uma possibilidade em um milhão. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Mas inventamos de gostar de literatura, de interpretar a mensagem, de ler o que nela não está e de ignorar até o que estiver em caixa alta, com explicação pormenorizada entre vírgulas. Um dia Austen, noutro Dostoiévski e nunca mais a perspectiva voltou ao lugar de origem ou a alma coube entre as mesmas paredes inertes. </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Se fosse só morrer de amor, mas antes tem os impostos que não declaramos, as eleições as quais precisamos justificar a ausência — mais ainda a justificativa afetiva para o antigo amigo do grêmio estudantil —, os atestados médicos para cada falta, os argumentos bem fundamentados para cada desistência e os escândalos que devemos evitar protagonizar para ficarmos na poltrona confortável do julgamento. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Exercitar o corpo, consumir as vitaminas certas na medida exata, abordar os traumas somente nas sessões de análise, não varrer o lixo para debaixo do tapete, reciclar embalagens e consumir o mínimo de produtos industrializados. Ir às festas de família, frequentar os almoços e jantares, ouvir as barbaridades das vozes domésticas e devolver a feição Monalisa, recurso tão antigo quanto o primeiro nome da árvore genealógica.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Se fosse só fazer as pazes com a irmã, mas antes temos que passar por cima da nossa dignidade, perdoar pelo flerte roubado ou pelo consumado — este último no qual não tínhamos interesse, mas de péssimo gosto — ignorar as injustiças paternas, as preferências maternas e as conspirações fraternais.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Se fosse só atravessar a rua e tocar a campainha da casa da irmã, mas antes tem um oceano, algumas avenidas, milhares de ruas e em cada uma delas uma placa com a inscrição da promessa de nunca mais. Se fosse só um abraço no natal, mas antes tem a competição que não acabou ainda, as divergências de opiniões, cartelas de cores e contribuições para as despesas dos pais que já estão mais velhos do que imaginávamos que ficariam um dia.</div><div style="text-align: left;"><span> </span>Se fosse só um beijo de boa-noite, mas tem o patriarcado que coloca uma armadilha a cada metro de aproximação nossa, que escava buracos para que não saíamos inteiras deles, que cobre com areia movediça cada fenda das nossas pontes. </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Se fosse só somar as rendas e alugar um apartamento perto de alguma praça da qual gostamos, mas antes tem os históricos familiares e amorosos; as disponibilidades e as resistências. Se fosse só gostar do cinema francês ou húngaro, aprender o idioma estrangeiro, mas antes tem a projeção e a identificação; o ego, o id e o superego.<br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Se fosse só gostar de cães ou de gatos, mas teve a namorada tóxica e o amante violento; teve uma ameaça ou só um espetáculo ridículo em público. Teve aquele desfecho com boletim de ocorrência ou roupas jogadas pela janela. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Se fosse só um pedido e um sim, mas, antes, tem um que não tem medo de abismos e o outro, que mesmo sem nunca ter saltado não abre mão do paraquedas. E ambos alugam um apartamento perto da praça da qual gostaram e vivem por lá até a queda da última árvore ou no primeiro grito do vendedor de algodão doce. </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Se fosse só deixar que o destino conduzisse, que um signo da astrologia resolvesse cada vocação; se fossem inscritos em pedra os caminhos de cada um, mas tem os peixes que escolhemos comer em um almoço, os carros que preferíamos evitar, os livros que nos modificam profundamente, as eleições que todos os dias nos cobram presença, os traumas, os laços familiares, as bodas para as quais nem requisitaram o nosso aval, os apartamentos e as praças, os sonhos e as paixões, os estrangeiros que aprendem uma língua porque querem ler um amor. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>Se fosse um corretor de imóveis que não só indicasse a melhor localização com valor acessível, mas, também, se gato ou cachorro, se Bèla Tarr ou Alain Resnais, se trauma ou cura; se abismo ou pequenos abalos sísmicos. <br /></div><div style="text-align: left;"> <br /></div><div style="text-align: left;"><span> </span>Por sorte, quando entro no carro com o adesivo no para-brisa traseiro, não sou interpelada pelo motorista, que vai silencioso e concentrado até o ponto final. </div><div style="text-align: left;"><span> </span>São cinco minutos na fila e um atum viçoso de dois quilos e trezentos gramas se acomoda no meu colo. Por sorte tenho uma irmã com a qual não preciso fazer as pazes e nenhuma praça com a qual eu tenha me encantado, por ora. Dos abismos pelos quais sou seduzida, a complexidade da vida ainda é o maior deles.<br /></div><div style="text-align: left;"> </div><div style="text-align: left;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen="" class="BLOG_video_class" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/9z3jCiCrsx0" width="320" youtube-src-id="9z3jCiCrsx0"></iframe></div><br /><div style="text-align: center;"><br /></div>Amanda Machadohttp://www.blogger.com/profile/13550453054225736878noreply@blogger.com0