quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Totalmente sintomática para a vida

  Pele quente, sensação de calor intenso interrompida por uma onda cortante, que resfria as vísceras e os sentidos. Embora sem febre constatada, maçãs do rosto rubras, extremidades do corpo constantemente suadas, delírios diurnos que só são aplacados com os banhos frios ou chás gelados e os noturnos, atravessando as horas, cheios de desejos, não só os carnais, mas os da alma também: de conhecer, de ultrapassar, de ver o que vai dar, apostar e, se for o caso, perder-se. 
  Desejo de encontrar o dia claro, tão logo possível, para realizar os planos feitos na madrugada.
 
  Insônia noturna, sonhos durante o dia. Lava o cabelo e a ideia se espalha pela toalha, escreve um comunicado e as letras traem sobre o aviso: "As inscrições devem ser feitas previamente", torna-se "As distrações devem ser feitas brevemente", senta-se para ouvir uma palestra, mas tudo o que ecoa é última poesia lida.
  Falta de concentração no presente, ausência de foco no tempo real.

  O olfato sistematicamente nostálgico, contaminado por antigos aromas e outros mais recentes. Tinta fresca na parede da sala, preparada para as festas de final de ano; Leite de Aveia Davene pós-banho da mãe; doce de abóbora na cozinha da avó; tinta de fita de máquina de datilografar do pai; pontas dos dedos com cheiro de mexerica na volta do passeio de trem nas tardes de sábado; borracha escolar em fevereiro e os novos: baunilha e gin.
  Cheiros de filtro solar e peixe no verão, sobremesa de domingo na casa da mãe, pão de queijo da rodoviária em véspera de feriado. Cheiros de gente que partiu, de gente que está, de gente que para sempre vai ficar. 
 
  Lapsos de lucidez eventuais, algumas vezes prolongados. Podem durar dias, semanas e até décadas a fio. Um dia de racionalidade alcançada e dois de quase completo devaneio. Conselhos de todos os  tamanhos, texturas, complexidades e gostos em cima da mesa, dentro da bolsa, na palma das mãos, disponíveis a qualquer hora,  mas nenhum para si. Dois pesos e nenhuma medida.
  Desobediência aos cronogramas, planejamentos e regras autoinstituídas. Autossabotagem, autoengano e, por fim, autocomplacência. Perdoa-te a ti mesma. 
  Fraqueza nos ultimatos, pernas bambas, choro preso na garganta e vontade de desistência nas despedidas. Queria não ter que dizer adeus, mas também continuar não é mais possível.
   
  Taquicardia, mãos frias, rosto tenso e cefaleia incômoda antes de uma decisão importante. Pelo medo do erro, da mágoa, da decepção, da perda, de estar só e também de não estar mais. Disritmia aguda, depois de uma confissão inesperada ou silêncio indesejado. 
  Sensação de vazio, comprimindo o peito: falta a palavra, falta o gesto, falta a única coisa que importava agora. 
  A ameaça iminente dos batimentos cardíacos serem ouvidos do outro lado da sala, da rua, noutro continente. Coração espalhafatoso em carcaça discreta e até, quase, miúda. Mas será que terá coragem para admitir: Sou eu que tenho essas batidas no meu peito?
 
  Ansiedade pelo que está atrás da porta, na próxima esquina, na carta que ainda não foi trazida ao jogo, na próxima parada, na voz que adia a clareza. Olhos fixos no armário, na abertura do cômodo, nas ruas a serem cruzadas, na mesa posta para o baralho, no ponto de ônibus, nos olhos de quem não sabe ainda como dizer.
 Primeiro as costas tensas na viagem e depois os músculos do quadril dissolvendo todo o medo. O primeiro mergulho ainda é desajeitado e torto, no segundo,  a respiração é menos ofegante e o tempo debaixo d'água aumenta, o terceiro é a confirmação do desejo pela água e o quarto é finalmente o mergulho não calculado e, por isso, o mais pleno de entrega.
 
  Em um exame clínico de rotina, o diagnóstico: 
  - A senhora tem sintomas para a vida.
  - É grave, doutor? Tem cura?
  - É grave, mas não mata. Pode ser que passe, mas pode ser crônica e a acompanhará ao longo dos anos. 
  - E isso dói? 
  - Não todos os dias e normalmente se acostuma com as ondas que batem na arrebentação. Sentirá a batida, mas não trará muitos prejuízos à estrutura. A senhora é sintomática para vida, sente muito e isto é tudo.



terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Falta muito para que isto acabe?

  Vai chover? O céu cinza é sempre um prenúncio de temporal ou pode não cair uma só gota e o céu avançar em um cinza seco? Fechei todas as janelas antes de sair? O tapete da sala eu o recolhi da varanda? Ainda dá tempo de ir caminhando ou é melhor pedir um carro no aplicativo? Os preços estarão mais altos pela instabilidade do clima ou mais baratos porque ainda não é hora do rush? Se eu for andando e começar a chover, em que altura da avenida eu estarei para me molhar? Esse sapato escorregaria em asfalto molhado? Alguém se preparou para essa chuva? Baseado em quê? No céu, na experiência de outros verões  ou na previsão meteorológica? Terei tempo de fechar as janelas, tirar o tapete da varanda, não escorregar no asfalto e assistir, de casa, a beleza da chuva de verão? E se não, me molhar pode não ser ruim? Se chove, se me molho e a casa também é afetada, saberei não reclamar?

  Há um limite para o sofrimento, para a alegria, para a dor, para o desejo, para as perdas ou para o amor? Existe uma fita métrica, balança ou trena subjetiva que avisa antes de transbordar ou simplesmente transborda? E quem é que recolhe o que não cabe? E depois que recolhe, faz o quê com as sobras, joga no lixo ou reaproveita?
   Há limite para a espera, para o perdão, para a crença naquele que te feriu? Ou a pergunta: vai ferir de novo? Será sempre um fantasma? 
  Há um limite determinado para a luta até a desistência ou o limite é o desejo de descanso? Se esperasse até o momento certo para o contragolpe, teria vencido ou só estaria agora derrotada e ainda mais cansada?
   Tentar mudar a ideia de alguém ou tentar se sentar do mesmo lado da janela  em que ela está? Ao menos por um segundo, o lugar na janela ou a tentativa de desvio. Acreditar no sexto sentido ou na primeira impressão? Sabemos quando acaba e insistimos ou acreditamos que acaba, porque não suportamos mais esperar que a hora do término se confirme? Para quantas pessoas mente? Para quantas quer dizer a verdade? Alguém a inspira a não ser só uma personagem?

 Forte ou fraco? Expresso ou no coador de tecido? Com ou sem açúcar? Com leite? O leite é desnatado ou integral? Vegetal ou animal? De pé, perto do batente de uma janela de madeira ao lado de um fogão de lenha ou sentado em uma mesa na cobertura de um restaurante no Centro?
  Xícara ou caneca? O pingado no copo americano, é só na padaria ou em casa você também tem o hábito dos copos americanos? Depois das seis da manhã e até às cinco da tarde ou desde que acorda e até antes de dormir? Cafeína é bom para pele e ruim para o sono; é bom para encher a xícara e ocupar os silêncios depois do almoço. 

  Tem mais medo hoje ou antigamente?  São maiores os seus medos ou os toma como proporcionais à experiência? Tem medo de envelhecer? Medo da morte? Medo da fealdade? Tem mais medo de que te queiram e você não ou mais que você queira e eles não? 
  Tem medo de ser abandonada ou de ter que ir embora? De fracassar em público ou ser um sucesso solitária? Tem medo do medo? Divide o seu medo ou o varre para debaixo de um tapete felpudo? O medo a paralisa ou a estimula a correr mais rápido? Já viu que o medo de alguém parece pequeno só porque não é seu? Já viu que o seu é grande até ter que atravessar a rua, o rio, a ponte? 

  Tiro a roupa ou deixo você tirar? Tiro a sua ou deixo você tirar? Dobra ou joga no chão? Estendo no varal ou você coloca na secadora? Tira a roupa quando chega em casa ou descansa primeiro, antes do banho? Passa as camisetas com ferro à vapor ou deixa que elas estiquem com o calor do corpo? Guarda muitas peças que não cabem mais por que acha que vão servir de novo, um dia, ou se esforça para guardar o que elas lembram sobre quem você foi e pode voltar a ser?
 Para quem você se veste? Para quem você se despe? As duas coisas são para mesma pessoa? Quem espera você se vestir? Quem não tem pressa para você se despir? Encontra isso em uma pessoa? Já encontrou?
 
  Ivermectina, Cloroquina, militância bélica, invenção de mitos alucinados; a que horas essa loucura nos deixará em paz? 
  Quem cultiva o ódio, quem aduba a mentira, quem planta a sua esperança em campos de destruição? Quem, ainda, não acordou do pesadelo que chamou de sonho? 
  Há saída? Para que lado ela fica, senão à esquerda? Quando o nosso sonho naufragou e você não fez nada, porque achou oportuna a vingança, não se importou de também perder? Nesse caso é melhor que ninguém ganhe ou que ninguém perca? Você ainda sabe do que estou falando?

  Vai chover? Vou ter que aprender a nadar ou basta um guarda-chuva? Posso te dar o que eu tenho ou é muito para você? Quer café? Quer carona no meu barco? Está com medo? Já tem roupa para o dia em que isso tudo acabará? Quanto tempo eu ainda aguento sem me incomodar demais com os pingos? 
  Falta muito para que isto acabe? Falta muito para que eu me esqueça do seu nome, rosto, voz e gestos? Falta muito para que eu volte a sonhar de novo com um país?


sábado, 6 de fevereiro de 2021

Pela inevitável queda no infinito abismo

   Às vezes não nos lembramos de que é queda, mas esquecer não faz com que ela seja interrompida. Fazemos o café, lavamos o cabelo, deixamos cair um grampo no tapete do banheiro, desentupimos o ralo da pia da cozinha com as mãos, apagamos e acendemos as luzes todas da casa, beijamos o filho antes de dormir, xingamos alguém - mesmo que mentalmente - desejamos o melhor para quem amamos e um revés cruel do universo a quem não pudemos suportar - também em silêncio, sem nunca admitir publicamente, porque somos éticos, maduros e humanos decentes, aparentemente - vamos ao dentista, apalpamos a fruta no mercado e não a trazemos, dormimos com alguém e esticamos os nossos pés durante a madrugada para ter certeza da continuidade da companhia, ajudamos outro alguém com as instruções do caixa eletrônico e nos lembramos dos nossos pais; e isto tudo enquanto caímos.
 
  Não  interrompemos a queda, mas só nos lembramos dela eventualmente e nos enganamos que também é pontual essa perda de solo. Não é. Enquanto escrevo eu caio, enquanto você lê também.
  Não há chão. O que chamamos de solo é apenas a distração da queda e o que entendemos por queda é a consciência fugaz de que não há segurança em nada. Por isso estamos sempre caindo.
  O piso de uma casa é tão seguro quanto ao de um barco naufragado ou ao de um automóvel desgovernado. O que nos faz acreditar que é mais estável a casa é a velocidade lenta, quase sempre imperceptível, do seu desmantelamento. 
  Poucos sabem que caem, menos ainda são os que se apropriam da própria queda e inauguram uma liberdade. A poeta sabia que nunca parava de cair.  E caindo escreveu, caindo inventou um mundo de palavras que me habitam agora. 
 
  Quando a nômade  chegou à última cidade, já estava idosa, enxergava pouco, não viajava acompanhada de alguém com quem pudesse dividir o jantar, assistir ao telejornal noturno ou com quem discutisse pela louça suja na pia. Não tinha gatos, não tinha pratos na parede nem souvenirs, numa estante, em frente aos livros. Não tinha vestidos que não cabiam, não tinha uma gaveta com boletos, caixas de remédios quase vazias, botões perdidos de alguma roupa, arames de fechar pacotes de pão ou clipes de papel. 
  Não tinha registro de água que vazasse, não tinha a sorte de um amor tranquilo com sabor de fruta mordida, não tinha baldes rachados debaixo do tanque, não tinha uma coleção de discos de vinil nem uma cadeira confortável na varanda onde tomasse sol. 
  Tinha apenas a mala, o endereço de um hospital, uma cirurgia de catarata agendada, alguns poemas numa pasta de papelão e uma reserva num hotel na parte antiga do Centro. A poeta que sabia da queda, carregava pouca bagagem, porque o seu peso sempre foi outro.
 
  Continuamos caindo e embora ela pudesse fazer das palavras o que quisesse e, talvez, inventar um mundo onde encontrasse finalmente o chão, ela escolheu não se esquivar da inevitável queda. Agora, tinha um quarto de hotel, alguns poemas na mala, vidros de colírio, caixas  de analgésicos e curativos nos olhos, um de cada vez a cada quinze dias. Depois de um mês enxergava de novo e em todo o tempo se deslocava em queda.
  Enferma ocasional, poeta antiga, caía todos os dias ininterruptamente e só se fatigava quando não escrevia ou alguma gota do colírio manchava a página. À queda estava completamente habituada, se abaixava para acariciar a sua fronte macia, não evitava os pulos, as lambidas e os arranhões. Acostumada à queda, domesticado o medo; não sentia falta de chão.
 
  Porque não dói, como pode parecer; às vezes só nas primeiras horas da percepção do abismo. E chamamos de poço e choramos no travesseiro e trocamos a fronha e choramos de novo e desabafamos com alguém e culpamos os outros e  desabamos em frente ao espelho e cobrimos as olheiras com maquiagem; até esquecermos de novo da queda. Porque são poucos os poetas e muitos os atores.
  Despencar não dói, mas acreditar que antes tínhamos um chão e o perdemos, isso sim causa feridas. Não é que não sabemos flutuar, mas não nos conformamos em perder; mesmo que a posse seja uma narrativa falsa e individual.
 
  Depois do hotel, dos livros de poesia, do voo livre sem expectativa de solo. Depois das tardes sem o som dos latidos dos cães para os carteiros, sem o barulho das chaves, entre os dedos manchados de tinta azul de caneta barata,  para uma caixa de Correios e só encontrar um envelope do banco com um cartão de crédito novo; sentiu que o pulmão se tornava apertado. 
  Há muito sabia da queda, mas nunca tinha perdido o ar. Inspirava profundamente, mas só captava o insuficiente. E eu caía e ela se afogava sem ar.  
 
 Pelo chão que buscamos sem nunca encontrar. Pelo desejo da segurança impossível. Pela aceitação lírica da inevitável queda no abismo infinito; vou rezar esta noite. E morrer aos oitenta e oito sem nenhum poema engasgado, porque este é o regalo da vida para quem não a evita.

À Maria Lúcia Alvim




quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Então não se preocupe mais quando for buscar os pães


  Compramos pão; alguns menos do que há anos atrás. Já não somos mais cinco na casa, já não comemos mais de um pão à tarde e as visitas não podem vir há quase dez meses. Mas compramos pão e continuamos a tomar café da tarde juntos. O da manhã quase nunca, porque despertamos em tempos diferentes e as nossas rotinas se desencontram mais a cada doze meses.
  Embora mais modesto, menos frequentado e quase imperceptível, o ritual dos pães permanece. Hoje compramos juntos; não teve encomenda, não teve a oferta de trazer uma casadinha, sonho ou um pedaço de rocambole de doce de leite, fomos juntos comprar pão de sal; o lacônico: um para cada. 

  Embrulhados os pães, acertada a dívida com a caixa sorridente da padaria, sincronizamos os nossos passos - naturalmente, sem esforço de apreensão de ritmo - e partimos rumo ao coador reutilizável, ao qual ele ainda não se adaptou,um litro de água quase fervente, três colheres de café e três de açúcar - na conta dele, porque na minha, o  açúcar é dispensável.
  Enquanto subimos a rua, noto um desassossego novo, a mão que balança mais, os olhos que permanecem menos em mim enquanto falo. Pode ser algo importante, pode não ser nada. Mas eu sempre vou querer saber:
  - Então, o que o incomoda? Qual é a preocupação?
   Ele podia desviar do assunto, podia inventar algum motivo ou simplesmente permanecer em silêncio, mas não é dele nenhuma das opções anteriores; ele é direto, não borda palavras, não se esconde em vidros foscos. 
- Você. A minha preocupação é você. 
  Não me atordoa a imprevisibilidade da resposta, mas me surpreende, me desconserta um pouco. Ele diz que se preocupa comigo e não sei se debocha ou é seriedade; acho que quase sempre esses dois fios se entrelaçam nas palavras dele.
 - É porque não ganho dinheiro, né? Isso também me preocupa.
  Acho que ele sorri, porque embora não veja os seus lábios, porque estão cobertos pela máscara, seus olhos brilham e espremidos quase se fecham.
 - Não. É porque quero que seja feliz.

  Ainda bem que não carrego os pães, essa era a hora de eu soltar a sacola e abraçá-lo tão fortemente a ponto de perdermos os pães e o fôlego para a subida. Mas não consigo dizer nada, tampouco um gesto só que carregue o que eu sinto depois do que ele diz.
  É um jeito tão manso, esse dele de dizer as coisas, tão cotidiano, tão comezinho, mas ao mesmo tempo tão majestoso, que eu não consigo estar à altura. Porque ele desconfia, mas não me pressiona. Ele sabe, mas não me desafia. Ele vê e não aponta; ele não entende, mas acolhe. 
  Ele compra os pães, faz o café e serve esse amor genuíno em xícara barata, na qual eu tomo os cafés de todos os dias.

  Sou um gato no muro e ele não me afugenta nem tenta me seduzir para descer. Ele se acostumou com o felino em mim e eu me habituei a cercá-lo, mesmo quando quero ser livre. 
  Ele me aponta, quando eu chego ao seu quintal, mas não diz que é meu dono ou me dá um nome. Eu o visito e o amo sem submissão. Sou um gato no muro e estou sempre muito próxima da queda; ele é o homem imponente na porta e parece estar sempre torcendo para que eu não caia ou que, ao menos, não me machuque tanto quando isso acontecer.

  Eu tenho os mesmos olhos dele, as mesmas carência absurda e vontade de andar só, esta última que contradiz a nossa necessidade de troca. Os olhos verdes dele, o adunco do nariz que eu rejeitei, a audição cada vez menos apurada e a voz macia do amor que só me liberta e quer assistir a minha coragem e destreza de subir nos muros, cair deles e não desistir de continuar noutros. 
 - Mas que preocupação complicada é essa sua!
  É tudo o que a minha surpresa permite que eu diga, assim, sem preparo.

  Damos mais alguns passos e acho que sempre podemos chegar ainda mais próximos de nós. Ele abre o portão e eu o seguro com um dos pés para ele passar. Eu estendo a toalha na mesa, ele coloca água na leiteira. Desembrulho os pães, tiro a manteiga da geladeira e lá fora o gato amarelo me encara. 
- Olha, eu não quero mais que se preocupe, não é possível ser infeliz com esse café que você prepara todas as tardes.
  Mas eu não disse. Porque é possível sim, conhecer o amor e ainda sempre procurá-lo.
 
  Então não se preocupe mais quando for buscar os pães, eu sou absolutamente feliz alguns dias e em quase todos os outros em que eu não estou, eu me esforço por você e também por mim; porque me lembro do que você me oferece na xícara. 
  Os pães, a risada dele e esse jeito discreto e completamente grandioso de dizer que sou amada. Ele faz o café mais doce da cidade e sabe amar como eu não sei se saberei um dia. O café é quente, o pão é frio, mas esse amor é uma eternidade morna e profundamente feliz.