Tinha duas irmãs e uma mãe amorosa. Tinha gritos que escapavam, dos azulejos da cozinha, das pedras do quintal, dos panos de prato, das gavetas da estante e da caixa de correios. Tinha os trejeitos dos loucos que costumávamos ver nos pontos de ônibus do Centro, quando éramos pequenos. Uma disposição natural para as surpresas; podia cuspir em direção a um desconhecido por nada, engendrar uma conversa muito profunda e interessante com alguém em quem já tinha cuspido numa outra vez ou simplesmente balançar o corpo esguio, enquanto entoava uma canção que eu nunca soube se existia antes dele, sem letras nos idiomas que eu conhecia; eram sucessões de sílabas prolongadas, ritmadas pela respiração. Eram sempre muito bonitas.
Quando balançava o corpo durante essas canções inventadas, era infinito, seu quase um metro e noventa, com os braços levantados, lembrava uma palmeira ou qualquer outra árvore muito alta e flexível. Tinha os olhos grandes de um artista grego que assisti em algum filme
na adolescência. Tinha um peito que subia a cada inspiração/exalação
completas, como um pombo. Tinha uma caneca com o Mickey Mouse numa
cadeira de praia; que eu ainda procuro nos magazines, mas nunca encontrei. Cabelos negros de corte exato. Tinha uma fome de adulto, de grandes proporções, mas um paladar infantil, por doces coloridos e refrigerantes de uva e laranja.
Tão cansadas, as irmãs e a mãe. Tinha três mulheres muito compreensivas que saíam a qualquer hora a sua procura. Uma o acalmava durante as crises, outra abria e segurava os portões e a porta da casa e a outra recolhia os chinelos ou sapatos que ele deixava para trás. Tinha seis mãos que alisavam o seu cabelo, quando a cabeça parecia ferver ou deslocar para um outro lugar. Tinha um pai que só descia do caminhão uma vez por mês, mas só se o seu menino estivesse dormindo ou muito calmo. Tinha a segurança de sempre andar com algum objeto nas mãos, geralmente um livro, muitas vezes a bíblia e algum outro objeto muito útil ou não; guarda-chuva, chave de fenda, dinossauro de pelúcia, um saco com bolinhas de gude ou a certidão de nascimento dentro de um plástico amarelo. Roubava os brinquedos das crianças, mas em poucas semanas devolvia. Era um ladrão consciencioso.
Tinha uma vida escolar irregular, repetia as séries, voltava algumas e, às vezes avançava, para acompanhar a irmã mais velha na mesma classe. Coloria as paredes da escola pequena de grades marrom, com o giz colorido que ganhava das secretárias, desenhava e escrevia as letras do alfabeto no muro dos fundos do pátio, estratégia das professoras do fundamental para mantê-lo calmo e conseguirem alfabetizá-lo. Deixou as paredes da escola mais bonitas. Aprendeu a ler, escrever, fazer contas e, na adolescência, gostava muito de genética. Escrevia cartas de amor para a filha do dono da padaria e desenhava o seu perfil, com pedaços de tijolos, nas calçadas do bairro. Nunca a abordou pessoalmente, só cartas em duas páginas e retratos públicos. Uma vez, o assisti recitando Carlos Drummond de Andrade em uma festa do Dia das mães e todas as mães da escola choravam.
Alguns dias as três mulheres estavam menos cansadas, pareciam mais descontraídas, até sorriam. A irmã mais velha gostava de bordar toalhas e panos de prato em uma cadeira na varanda, a mais nova ia ao cinema no Centro e a mãe assistia à novela. Mas o habitual eram estar sempre alertas. Lavavam, passavam, cozinhavam, cuidavam e o pai parava o caminhão uma vez por mês, por dois dias.
Tinha uma casa com gritos e alerta, mas também café e sequilhos no final de cada tarde. Tinha uma casa de cinco cômodos com mais cabelos brancos a cada ano nos espelhos, trabalho árduo, pedidos de desculpas aos vizinhos, receitas médicas e consultas uma vez por mês, mas também, delicadas canções que nunca se repetiam e folhas que sacudiam leves à esmo.
A palmeira de um metro e noventa envelheceu e aprendeu mais poemas do Drummond, deixou de cuspir, mas nunca de se balançar sem aviso prévio ou lugar marcado. O pai perdeu a visão em um acidente com ácido que transportava e ficou mais tempo em casa, com o outro homem acordado e, agora, menos irritadiço. A mãe se despediu com câncer nos ossos, a irmã mais velha morreu nas mãos do marido e a mais nova foi atropelada por um ônibus na avenida principal da cidade, quando voltava de uma sessão de cinema; duas notas de duas irmãs no jornal da cidade; com três anos de distância uma notícia da outra.
Dois homens muito distantes um dia, tiveram que aprender a ser cada um e também dois, sem as três mulheres. O pai não subia mais no caminhão, o filho não cuspia nem andava com dinossauros ou bolinhas de gude roubadas e ninguém mais que os acalmasse, abrisse as portas ou guardasse os chinelos deles. A casa ainda tinha gritos, mas eram menos frequentes e quase nada estridentes, os vizinhos acostumaram-se, as canções também permaneciam, mas Carlos era mais sossegado e andava pelo bairro de braços dados com o pai, que um dia teve medo de um filho acordado. Iam à missa, visitavam as três mulheres no dia de finados, aniversários e dia das mães, comiam macarronada aos domingos, assistiam ao campeonato brasileiro de futebol e, finalmente, um pai que descobria o filho sem medo e com orgulho. Na véspera de um natal, o pai chamou Carlos, que telúrico, não se levantou mais.
Chorou quando a palmeira não balançou. Sozinho, tentava entoar as canções que aprendeu com o filho.
— Sossegue, Carlos, o amor é isso que você está vendo...
Falou o pai, enquanto a mãe o acalmava, uma irmã abria a porta e a outra buscava os chinelos perdidos.
Uma mulher dissolve sua vitamina C no copo com água, enquanto toma uma decisão. Assiste à efervescência trivial do comprimido no líquido incolor e se espanta com o seu desaparecimento tranquilo.
Uma pastilha amarela, na vitrine translúcida do copo, se integra ao líquido, sem resistência, só com um sussurro sutil. Uma pastilha delicada, retirada do seu abrigo de alumínio brilhante, se afoga nua até nunca mais ser.
A solidez temporária da pastilha dourada, reduzida à minúsculas partículas no fundo do copo e dentro de um corpo vulnerável. Microcosmos de antídoto para a imunidade hesitante.
Uma mulher segura o cenário do acontecimento banal, vira o copo, entorna na garganta o suco muito amarelo e engole sua decisão mais uma vez, porque se distrai com o destino da pastilha recém-comprada. Uma mulher está lânguida e tem dúvidas.
Na embalagem cilíndrica, mais nove acontecimentos, aguardando a mulher com gripe e uma decisão postergada. Nove possibilidades de erro incontornável, acerto contundente ou, somente, comprimido diluído.
Uma mulher lava o copo, depois de terminar de engolir sua dúvida e tenta se lembrar de quando ficou vulnerável a um vírus e a uma indecisão; o ar-condicionado, a promessa de ser finalmente encontrada, o ventilador potente nas costas do vestido decotado, a ilusão de ser salva, a água gelada no cantil, enquanto andava pelo deserto, a espera pelas palavras e por um encontro. A vitamina C no corpo febril e a decisão que parece não ser tão solúvel quanto a pastilha na água.
Um raio de sol entra pelo basculante da cozinha e uma mulher quer ser redonda, amarela, luminosa e incendiária também para fora. Mas é, ainda, somente vitamina C, rodopiando dentro do redemoinho que a colher de alumínio produz, se afogando lentamente no copo com água e dúvidas.
Um gato amarelo se espreguiça na janela e parece mais solar do que a sua dona, porque o gato não tem dúvidas. O gato é sólido. Coloca o copo para secar na pia, se senta novamente, ajeita o banco perto do raio de sol e imita o gato. Também pode ser sólida e astuta, se precisar.
Uma gripe, que ainda não se instalou, concorre com a indecisão que parece ser mais espaçosa. Ela quer espantar os dois ou, ao menos, não deixar que ocupem tantos espaços e fiquem por muito tempo. O corpo é dela, a decisão também tem que ser, a coriza e o medo são passageiros eventuais de uma mulher dourada de sol e com um pano de prato repousado nas pernas, enquanto se entrega ao calor do meio-dia.
Para a gripe, chá, xarope caseiro, dipirona, infusões de menta e alcaçuz, cochilos ao longo da tarde, termômetro na mesa de cabeceira. Para a indecisão, saber mais de si, não temer colecionar fracassos e ser sólida, ainda que partida em muitos pedaços.
De seis em seis horas, a vitamina C é mergulhada na água. A colher ajudando a espalhar as partes de uma recuperação e o líquido amarelo atravessando a garganta, enfraquecendo o vírus e afogando permanentemente uma indecisão. De seis em seis horas, a dúvida cada vez menos resistente e um vírus para o qual a vacina já foi criada; ao menos para ele a prevenção é possível.
Essa voz, esse tom, essa respiração urgente que intervala as palavras e imprimem um ritmo familiar. Essa entonação dramática de palavras duras e frases que sangram, sufocam e pedem justiça. Essa urgência em contar.
Essa mulher de discurso apocalíptico e meândrico que perdida de um palco, segue com a personagem sem nenhuma plateia que se interesse pelo seu texto.
Essa aleatoriedade de alguém que tem muito dizer a ninguém, inserida no meio da minha vida que também tenho o que dizer, mas que diferente dela, renunciei.
Essa peregrinação pelos mesmos lugares que os meus, esses encontros proféticos e, agora, essa identidade que se cola à minha; que engole a minha. Mais corajosa do que eu, mais tecelã e também insistente.
Essa voz grave e tão feminina, potente e tão solitária; essa narrativa de violadas, famintas, injustiçadas, mutiladas e silenciadas.
— Em cativeiro, numa cela úmida e cheia de ratos, morreu de inanição.
Era a frase que ela entoava, da última vez que a ouvi. Não como uma desesperada, mas como uma personagem de Lorca, em uma montagem de Bodas de Sangue, a qual assisti há muitos anos no teatro da cidade.
Era um discurso longo, mas essa frase foi a que me perseguiu durante todo o dia.
Já ouvi outras, muitas outras, todas com algum grau de violência, em tom de denúncia. Quem é essa mulher? Por que sempre no meu caminho, se agora faço outro? Quanta dor cabe nas suas palavras? Quando abandonou a sua vulnerabilidade e aceitou o papel de denunciante incansável.
No degrau da portaria do prédio, pelo qual passo diariamente, sentada por horas, ela brada um discurso que há pouco eu achava desconexo e, depois, me inundou de perplexidade e admiração. Essa mulher cuja força acorda antes das seis da manhã e se recolhe só depois das oito da noite discursa todos os dias em uma mise en scène que deveria arrebatar plateia e críticos, além de ganhar muitas páginas de jornais, mas ninguém para, talvez ninguém mais se interesse.
No cabeleireiro, leio um artigo sobre a violência contra as mulheres na Faixa de Gaza, cada parágrafo é um nó na garganta, acabo por chorar e culpo o produto no cabelo para defender minhas lágrimas. Sou covarde.
Inanição, cativeiro...também encontrei essas palavras em outra narrativa, em outro texto, em outra denúncia, vozes de ruas no Oriente Médio. A cada linha, fazia mais sentido o discurso da narradora do meu bairro. Não contar é mentir que não existe; não narrar é fechar os olhos para a existência injustiçada, melindrada, humilhada e assassinada.
A advogada na Faixa de Gaza tem histórias sem provas, segundo a ONU; a narradora do meu bairro tem histórias sem ouvintes interessados.
Achei que não voltaria. Adiei um retorno, pensava em prolongá-lo, estendê-lo até esquecer o caminho e nunca mais palavra alguma. Afinal não era urgente, ninguém sangrava, não havia nenhuma ação judicial ou ordens de algum superior.
Achei que não voltaria, porque logo se acostuma, porque o adiável, com o tempo, se torna dispensável. Porque experimentei o silêncio e, por semanas, ele não pareceu me sufocar, pelo contrário, senti o conforto de não me comprometer.
Achei que não voltaria, porque pensei que ninguém sangrava, quando eu recolhia a minha voz. Achei que não voltaria a declamar até que alguém, finalmente, estivesse disponível para me ouvir. Mas então, essa narradora incansável, sentada no degrau da portaria pela qual eu passo todos os dias, mudou a minha percepção da palavra.
Narrar é anterior a nós. A voz de teatro, inquieta, sem sutilezas e sem descanso acorda antes de mim e só se deita, quando eu já sonho. Sonho com ela, aceito suas palavras e choro no cabeleireiro pelo absurdo em Gaza e pela insistência de uma voz na minha cidade. O silêncio não a alcança. Ela é mais rápida do que qualquer mordaça.
Minha amiga, falamos sozinhas sobre coisas que só a nós interessa; porque quem sempre existiu não conhece o silêncio. Somos narradoras incansáveis de alguma ferida que dói mais, se calada. Nessa tarde de domingo ela segurava uma fatia de melancia, ainda sentada no degrau da portaria do prédio onde ela não mora. Pela primeira vez, desde que nos encontramos, ela não falava, não porque é domingo, porque tenha algum dia de descanso ou porque tenha desistido, mas porque a advogada em Gaza, a jornalista na Itália e muitas outras também falam por ela, enquanto saboreia um pedaço de melancia. Nem de inanição nem de silêncio ela irá sucumbir.
Alugo a visão do mar pela primeira vez, o susto, a beleza incalculável do azul, o ar salgado, impregnando na pele, poros e pelos. Alugo uma cadeira na praia para contemplar as ondas, a areia branca e a infinidade de corpos com as faixas coloridas dos trajes de banho. Uma canga com uma estampa tropical ou marítima, colocada sob a sombra de algum guarda-sol e os chinelos de borracha para calçar quando estiver de volta ao asfalto.
Alugo um dia na praia pela primeira vez, com olhos de uma criança não muito pequena, para que nunca se esqueça dessa primeira visão. Alugo uma primeira vez no mar, atravessando a orla com medo de não reencontrar a família, mas desejando ver tudo o que puder. A cena de um grupo de pescadores em seus barcos pequenos, abarrotados de peixes e frutos do mar, o suor, a força e a confiança na embarcação que os sustenta. Alugo a fantasia de nunca mais voltar ao continente, de me estabelecer numa casa em frente à imensidão e só saber do mar daqui para frente.
Compro uma saudade em bom estado de conservação, mas não das que fazem chorar. Compro saudade que venha embrulhada numa alegria de sorriso discreto, no meio da tarde, de uma reunião de trabalho, de um exame médico, de uma fila de banco, na cadeira do dentista, na audiência de conciliação com a empresa de celular. Compro à vista uma saudade que tenha cheiro, som e textura. Que ao abrir o envelope, o cabelo macio e fino encoste nos dedos do destinatário, que o aroma de lima, café ou chiclete de menta invada as narinas e, instantaneamente, me leve a esse outro lugar, cuja trilha sonora seja reconhecida plenamente na primeira nota.
Compro uma saudade não perecível, que não precise de prescrição médica, seguro viagem, nota fiscal. Uma saudade sem burocracia, que se instale sem dificuldade no momento da sua chegada. Uma saudade que avise que com ela nunca mais serei só.
Vendo uma memória bonita que não me serve mais, tamanho P. Um buquê, uma dança, uma declaração que nunca se confirmou. Uma alça da bolsa que arrebentou e alguém gentilmente deu um nó, para salvar a moça do peso dos livros sem sustentação. Vendo uma música, poema e carta ofertada, um filme que passava na TV, que alguém gostava e, por isso, o filme sempre será aquela pessoa.
Vendo um almanaque velho, com propaganda do Biotônico Fontoura e sabonete Phebo, com receitas de biscoito de canela e de misturas para limpar ralos de banheiros e cozinhas.
Vendo uma memória pacífica por motivo de mudança para uma casa menor; por um preço abaixo do mercado e entrega sem custos. Vendo uma memória e aceito parcelar no cartão em até doze vezes.
Avalizo um amor-sussuro, sem sustos, sem vozes dissonantes, sem ruídos na comunicação. Avalizo amores sinceros, sem perdas de confiança e disputas de egos. Avalizo amores de ciúmes muito sutis e admitidos sem dificuldades.
Empresto meus documentos, nome e assinatura para amantes que acreditem no compromisso e partilhem sonhos. Que sejam orgulhosos um do outro, mas sem vaidades. Organizo serenata, para o caso de resistência de uma das partes.
Avalizo a disposição de dois desconhecidos descobrirem semelhanças e diferenças, com beijos ardentes nos intervalos entre as revelações. Dou minha fé no cartório, para distantes que desejam intimidade, para jovens ou velhos que, ao acordar, todos os dias têm um primeiro pensamento com um nome.
Troco meu juízo pelo salto do trapezista, sem rede de proteção, com uma plateia que se levante da cadeira a cada susto, a cada possibilidade de queda mortal. Troco minhas duas mãos inseguras por uma só do artista, que não tem medo de suportar o peso do corpo, a insegurança do balanço do trapézio, a hesitação da plateia e a luz do picadeiro.
Troco meu nome de registro, por um codinome escolhido em solo circense; algo que ria de mim mesma, que não me deixe mais ser tão séria. Troco minhas roupas cinzas, meus sapatos apertados, por um figurino brilhante, colorido e alegre; nos pés, sapatilhas ou os sapatos exagerados do bufão.
Negocio meu tempo por algo de menos valor e mais retorno. Meu relógio em troca de uma mariola, um algodão doce ou uma tarde inteira no banco da praça com um saco de pipoca com queijo.
Negocio meu currículo, meus títulos, minhas horas/aula por um copo de cerveja na venda, onde meu avô tinha crédito e eu só comprava doces.
Barganho minhas milhas por uma volta no carro de boi até a fazenda do doutor Amândio; meu histórico funcional por um dia de ócio. Negocio minhas obrigações por uma vassoura de galhos e palha para varrer as folhas da laranjeira no quintal.
No anúncio publicado, vendo, compro, troco, alugo, avalizo visões de espanto e beleza, de desejo por alguma saudade e de esquecimento, de coragem pendurada e arte, de tempo perdido e de um outro tempo. Na bolsa remendada, nenhum dinheiro, oferta ou rede que garanta a mão no trapézio depois do salto, mas negocio, com muita chance de levar o prejuízo reconhecido dos maus mercadores.
Um gato na janela, aceitando o sol do inverno, sem pressa ou outro desejo que o desvie do acontecimento de ser felino. Um gato amarelo, recebendo o calor no inverno, porque sabe o que procura e o que merece. Um bichano com a barriga para cima, que ronrona ao se esticar na janela que é só sua agora.
Um gato amarelo, ocupando o portal principal, mergulhado na inundação solar e cujo tempo, parece em suspensão; um bicho absolutamente impassível com o que o rodeia, mas em júbilo pelo que é essencial.
Nem a música nem o arredar dos móveis no andar de cima, tampouco o copo com água derrubado pelo seu movimento perturbam a sua meditação ancestral. Um gato que sabe ser.
O gato amarelo cujo próprio corpo relaxado é o seu único templo; sua bondade consigo é a atração na minha sala. Sem tela, sem histórias, sem relatórios, sem desilusões que o apaguem, sem predileção pelo que é urgente. Um gato que não se cobra, não está atrasado para nada, não quer ser mais que o gato da janela sob o sol.
O gato que não se questiona se é amado, não se curva para receber carinho, não manifesta nenhum descontentamento se a janela não se abre; só abandona.
Fecho o computador e tento me espelhar naquele agora, absolutamente desprendido. De barriga pra cima, recebo o que resta de raios lá de fora, apoio a minha cabeça no chão, fecho os olhos e ele vem se deitar ao meu lado. Passo as mãos no seu pelo lustroso e quente, ele não reclama, mas também não se derrete.
É um gato que não tem interesse em barganhar atenção, não quer saber se é desejado ou se amanhã continuarei a alimentá-lo de amor e ração. É uma lucidez selvagem, uma indocilidade doméstica, que não quer afastar, mas demarca um território que é só seu. Um gato derruba copos com água e rejeita migalhas, não espera por mensagens de texto nem que batam à sua porta. Não se ocupa com o que não pode mudar de lugar, silenciar ao redor, carregar consigo ou manter aberto. É uma disposição em receber e não perguntar se merece.
O gato sem número de seguidores, sem mensagens para responder, sem áudios editados antes de enviar. Um bicho que se comunica em presença, em gestos, sons e olhos que brilham no escuro. Sem filosofias, sem religiões, sem concepções sociais que o reprimam, que insuflem idealizações e, logo, desabem em tédio e infelicidade.
Um mamífero delgado e ligeiro que ocupa os meus dias, sem me sobrecarregar, que me faz companhia sem me prender, que se multiplica em pelos no chão e os muitos mistérios que, ocasionalmente, me deixa vislumbrar. Um gato amarelo de patas ásperas que não me conta sobre os muros que precisou escalar para se deitar no meu sofá, mas que partilha da sua boa presença. Um gato que não é afetuoso como meu cão, mas que também ensina o que pode ser amar.
Reparo no gato e, de novo, tento simular meu corpo como um templo. Desligo o celular, ignoro as chamadas no interfone, mas ainda pareço seu reflexo invertido. Tão submissa para o amor, tão incrédula na minha potência. Derrubo um copo com água e me desculpo por um litro e quilos de vidro em pedaços, peço licença para me deitar em um chão pelo qual não pago impostos e aceito qualquer fatia de bom grado.
Acho que ele tem pena, quando vem e me assiste tão sufocada e pouco dona de mim. Acho que ele me julga, quando o deixo na sozinho na sala para ser cordial com as visitas. Mas também acho que ele se orgulha quando dou pequenos passos rumo à porta de saída.
Um gato com a aceitação do que é quente, bom e essencial.
Admiro o gato, absorvo o que é do gato. Admito que não sou tão felina quanto gostaria, ainda. Fecho os olhos e aceito o sol sem me curvar. Esse sol é meu, esse calor eu mereci, aquele amor que eu não espero.