Acendo a luz, pego a escova de dentes, enquanto olho para o espelho um pouco embaçado. Ainda que tenha bebido pouco álcool, ao olhar para o meu reflexo, sei que foi o suficiente para me deixar mais lenta, mais desamparada de solidez. Flutuo um pouco, enquanto o creme dental amarelo derrama pelas bordas da escova. Não estou segura em mim, embora tenha conferido as três voltas de chave na porta, quando entrei.
O roteiro é simples e terei sucesso se segui-lo sem desventuras: escovar os dentes, limpar a pele do rosto, tomar um banho, beber um copo cheio de água, arrumar a cama e me deitar. Sem hidratante para os pés, para as unhas ou massagem com óleo no cabelo. Talvez um só hidratante para todas as partes do corpo e mais nada. De repente, um barulho forte, molhado, algum pequeno corpo em queda no banheiro.
Nada na pia, a escova ainda está na minha mão, o tubo de creme já está no lugar, a embalagem com o produto de limpeza facial continua intacto na bancada; só a minha imagem derrete, mas isso não faz nenhum som. Talvez um sabonete tenha caído, mas o barulho é mais mole, um tanto flácido, molhado, parece borracha ou algo mais gelatinoso. São três da manhã e o banheiro está quente e iluminado pelas duas lâmpadas, abro o box de uma só vez, porque não suporto o suspense. Logo, o corpo cujo som da queda interrompeu o meu roteiro, aparece. Há muito eu não via o réptil que me causava repulsa na infância.
No box de chuveiro gotejante ela parece imponente e sem medo algum, acho que também foi surpreendida pela minha chegada. Parece que me olha, parece que também investigou os meus sons. O do interruptor, quando acendi as lâmpadas, o da escova e do creme dental quando retirei dos seus recipientes e talvez um meio muxoxo, quando meu reflexo ébrio no espelho do banheiro, já desacostumado com esse tipo de imagem notívaga, me apresentou a mim.
Faço alguns movimentos na tentativa de afastá-la um pouco, testar sua condição e talvez me poupar de decisões ou estratégias mais elaboradas.
Eu não mato lagartixas. Disso eu sei, mesmo sem muita firmeza corporal, agora, e um pouco reticente quanto os rumos que esse encontro tomará.
Penso em espantá-la, apenas. Abrir caminho para o meu banho e não me preocupar com a possibilidade de testemunhas. O box é apertado e se eu abrir o chuveiro, logo ela será afetada. Tento convencê-la a se afastar, talvez deva desconvidá-la para essa noite. Vou espantá-la para o lado do basculante e, se ela se sentir afetada pela água fria do chuveiro, abandonará a casa, o banheiro, a precariedade do corpo feminino depois de alguns copos de cerveja.
— Senhora Lagartixa, nada contra, mas o calor, o álcool, a chegada em casa a essa hora me faz querer um banho. Longe de mim fazer qualquer mal, mas não cabemos as duas nesse estreito box.
O receio dessa convivência não é estritamente uma atenção com a preservação da vida da réptil. É, antes, um receio de ser tocada por ela, de de repente, sentir o corpo mole, gelado e úmido de um medo tão infantil. A imagem de uma lagartixa, saltando nas minhas costas ou busto, enquanto eu me refresco, me faz ser mais incisiva na decisão de espantá-la.
Seguro o chuveirinho higiênico e penso em afastá-la com um jato de água, mas compreendo que não tenho a destreza suficiente de afugentá-la sem feri-la. A água sairia com muita pressão, teria que acertar em um ponto muito pequeno do corpo antipatizado e não sei se tenho condições para esse nível de medida. Resolvo que o barulho é quem vai afugentar a invasora.
Ligo o jato de água e miro na direção contrária do corpo rechaçado. Ela não se move. Abro e fecho mais três vezes e ela parece muito mais sólida do que eu ou as paredes do banheiro. Por muito menos eu teria corrido, mas ela permanece exata, sem dúvidas de que o lugar em que está pertence a sua existência. Invejo a lagartixa.
Ligo o chuveirinho mais algumas vezes e começo a aproximar a potência da água na sua direção. Nós não podemos voltar atrás. Ela continua estática, eu começo a recobrar a minha destreza, ameaço, deixo de ser doce e compreensiva. Eu quero o que ela tem e ela não abre mão do meu box.
Logo, um jato de água alcança um pedaço do rabo da réptil, que se desestabiliza e cai próxima ao ralo do banheiro. Nos assustamos, ela fica de barriga para cima, se contorce, mas a água ao redor deixa o piso escorregadio e ela não consegue se aprumar. Se eu abrir de novo o jato e apontar para ela, venço em alguns minutos e resolvo essa situação estranha e disputa remota. Mas eu não matarei lagartixas, juro. Alcanço a escova de limpeza do sanitário e ofereço o cabo a ela, ela encosta as patas no objeto, dá um impulso e se vira de novo. Tento fazer mais barulhos para afastá-la, mas tudo o que ela faz é abrir espaço, se mantendo no canto do chão do box.
É uma guerra perdida. São quase três, estou suando, quero beber água e dormir. A disputa me faz ter mais controle sobre o meu corpo, agora já não derreto tanto, pareço quase tão sólida quanto a invasora branca de listras pretas. Ligo a ducha fria e tomo o meu banho.
Nada nela que não seja meu.
Não olhei para trás depois que me sequei e apaguei as luzes.
Amanheço com dor de cabeça, acordo para beber água e me lembro de procurar por ela no banheiro.
Uma coragem branca com listras pretas está estirada em um canto da parede. Não há vida. O basculante está fechado. Eu a sufoquei. Eu matei quem eu quis que sobrevivesse ontem.Tenho um dia difícil; em um luto inexplicável. A quem contar que sou outra; que agora mato lagartixas, mesmo quando quero protegê-las? A imagem no espelho, ontem, derreteu completamente. A vida que eu tinha e a lagartixa foram descartadas no lixo do banheiro. Eu sufoquei uma coragem, eu me lancei numa outra vida; como voltar a ser macia agora?
Repassar mentalmente a receita executada há anos; uma xícara de açúcar, duas de farinha de trigo, uma de chocolate, uma colher de fermento em pó, um ovo, uma xícara de água morna e meia de óleo vegetal. Conferir as datas de validade de cada item, repassar os olhos sobre os vestígios de cada ingrediente; o óleo de coco que untou o fundo da travessa ainda está na bancada da cozinha. O fermento foi incorporado lentamente, só misturado, último item agregado. Forno em cento e oitenta graus, todos os cremadores acesos, durante trinta e cinco minutos. Uma xícara de açúcar, três colheres de chocolate em pó, duas de leite, uma de margarina, mexer até levantar fervura, despejar sobre o bolo ainda quente, salpicar o granulado em seguida.
A massa não solou, as beiradas não ficaram queimadas, a cobertura não grudou no fundo da panela nem deslizou demais. Esse é o caminho. Não tem erro. Não tinha.
O bolo doce, fofo e morno não confortou dessa vez. O granulado afogado em uma lágrima e a colher estacionada no canto do prato: por que não deu certo?
A quantidade de comida para o peixe — uma colher de café, a cada dois dias — o climatizador da água com o temporizador ligado, o aquário sobre o aparador do lado mais fresco da sala, sem iluminação direta, sem abalos do trânsito intenso, protegido pelos dezesseis andares que o afasta da avenida.
Uma cortina de tecido que bloqueia a maior parte dos raios solares, a música que não ultrapassa a porta do quarto lilás, um peixe beta, uma vida vendida como não tão frágil é agora uma fina lâmina laranja metalizada que flutua no azul do aquário sonhado.
Todo cuidado é sempre tão pouco. Um peixe beta cozido no azul finito. Por que a vida foi tão curta?
Retomar o instante do banho, se a água estava demasiado quente, já que era tarde e não fazia o calor dos dias anteriores. Certificar de que o xampu, além da marca usual, tem um pequeno selo na parte inferior do rótulo com a indicação para cabelos oleosos. Identificar, pelo olfato, a máscara hidratante aplicada; a de queratina só deve ser usada uma vez por semana. Se a tolha era a mais velha e por isso mais macia, se o secador estava na temperatura média, se usou o finalizador recomendado para a proteção térmica.
Nem um coque salvaria. Na foto, mesmo com tratamento digital, vai, sozinha, ver o que não ficou bom. Por que tanto frizz?
Apertar a torneira um pouco mais a cada dia, para evitar a goteira que começava. A visita adiada do bombeiro, tentar resolver com um cadarço amarrado no puxador, empenhar um pouco mais de força, só mais um pouco, mais um pouco, até que... a cozinha molhada, a água da pia, invadindo o armário embutido, os guardanapos de papel, agora, inutilizáveis, nas gavetas, o açúcar, o sal, o pote de biscoito cream cracker, flutuando na enxurrada ininterrupta. Tentar fechar o registro, não conseguir sozinha, chamar o vizinho.
Será o cadarço, a omissão da goteira, o adiamento da avaliação de um profissional, a mudança para esse apartamento — o único aluguel possível — a profissão escolhida, o emprego mal remunerado, os livros que eu não li, mas estão secos nas prateleiras, as pessoas para as quais eu não liguei, as que eu liguei, mas não contei sobre a torneira; quantos equívocos molham a cozinha agora?
Se a subida é escarpada demais, se o instrutor foi mais relapso do que deveria, se a minha vocação para o volante é somente imaginária, se serei Telma e Louise na direção; se o meu sapato era apertado ou largo demais, já que não tinha salto; se caminhar será sempre minha partida e chegada.
Pressionei o acelerador e tirei o pé da embreagem simultaneamente; depois, acelerei e soltei o freio de mão. Apostilas lidas, provas realizadas, vídeos atentamente assistidos, aulas práticas para além do número das obrigatórias, nenhum nervosismo demasiado; mas, então, o carro morreu no meio da ladeira. Por quê?
Não ter dito que conseguiria sem cirurgia, não negar a dor, dissimular que era assim mesmo, que as cólicas ou o sangramento eventual não eram nada, não admitir que o corpo falharia; os limites de mulher que a avó não teve por treze gestações — só falhou ao final de duas. Natimorto.
Não era planejado, mas foi desejado; não queria festa de revelação de sexo biológico, mas já tinha um nome para cada gênero, antes do ultrassom.
A idade que não era a ideal, o álcool antes de saber dessa outra existência, o consumo de qualquer outra substância em esmaltes de unha, cremes para cabelo, comidas, produtos de limpeza, ração para o gato, as pombas no telhado, combustível de automóvel, poluição, água contaminada, poucas horas de sono. Quando apartou a mãe do filho? O que não deu a vida?
Reviver o último dia, a derradeira conversa; como foi a última vez que olhou? Em quem doeu mais? Repassar os investimentos, as projeções, todas as falhas, as surpresas, o melhor está por vir, o melhor já passou. Reviver os dias antes do fim, as semanas, os meses anteriores. Será que o esquecimento daquela data, nome, grau de parentesco, número da casa de festas ou assunto era prenúncio?
Repassar os últimos anos, desde o mais recente até o primeiro deles partilhado. Será que a cama é que foi sempre pequena demais? Será que o ronco não era tão baixo quanto imaginado? A altura da mesa de cabeceira é o que limitou os sonhos?
Quem morreu antes, a esperança ou o amor? Quantos segundos de diferença entre a partida de um e de outro? Algum dia, ressuscitarão ao menos um deles?
Por que a receita de anos não conforta mais? Chora sobre o granulado e cutuca o pedaço de bolo sem apetite. Por que não deu certo?
Porque preferi ir ao aeroporto te buscar, com um cartaz feito de última hora, para que achasse graça e se sentisse amado, não comecei o texto de domingo.
Para que quando o avião pousasse, você se encontrasse, de novo em casa, deixei o bloco de notas aberto, tomei banho e não almocei, para que te visse no tempo exato da sua chegada.
Porque o voo atrasou, porque tínhamos muito o que dizer, porque esse encontro me pacifica, porque ver você é sempre a melhor escolha, não cheguei a tempo de escrever o que eu queria hoje.
Porque as roupas se acumularam na máquina por uma semana, as janelas parecem menos translúcidas, o tapete da sala precisa ser limpo, as peperômias requerem poda, não terminei o texto começado há dias.
Porque me vestir, comer, fechar e abrir janelas e portas, dar os passos até o trabalho, supermercado, clínica médica, consultório odontológico, cinema, às vezes, bares e restaurantes, casas de parentes e amigos e dormir me requisita um trabalho anterior ao trabalho de cada coisa e, por isso, os blocos de notas ficam sempre à espera.
Porque fingir para a foto, mentir para a chefe, enrolar a orientadora, escolher o sabor do iogurte, organizar os livros na estante, comprar absorventes íntimos, me inteirar sobre os benefícios para a saúde e os malefícios éticos do consumo de ovos de galinha, toma muito tempo, de quatro a cinco páginas por dia e o texto não sai, não sairá no dia que eu escolhi para ele.
Porque me atualizar sobre as notícias, descobertas científicas, novas celebridades — cujos nomes sei mais do que sobre o que fazem — não me esquecer dos aniversários, estar atenta à dieta, ao meu índice glicêmico, à condição cardíaca, ao saldo da conta bancária me deixa sempre em dívida e eu sinto que nunca farei literatura. Mas a constatação também não é definitiva, enquanto eu penso nisso, já estou atrasada em quinze minutos para alguma hora marcada.
Porque entre o eclipse e os teclados, entre o pão doce que eu prometi que faria para o café da tarde com convidados e o cursor piscando na tela com duas ou três frases, entre o convite de última hora e o planejamento semanal da escrita, a urgência ainda está fora do parágrafo inacabado.
Porque é preciso luz solar para o cortisol, é preciso um telefonema para perdoar as faltas e justificar previamente as próximas ausências, é preciso ligar para o pedreiro e fazer um orçamento para a troca dos azulejos na parede da pia, é preciso descascar uma réstia para o almoço, é preciso assumir um incêndio enquanto os bombeiros não chegam, é preciso dizer o que é preciso e escrever não é preciso.
Porque sonhar em viajar para outro país parece mais apaziguador do que inventar um novo mundo, sem conflitos, na ficção.
Porque ainda estão em guerra, bombardeiam hospitais, escolas e feiras; a Amazônia padece; os meus alunos ainda não sabem ler; os migrantes sofrem na casa e precisam partir, sofrem na ausência da casa e precisam ficar; porque escolher é mais difícil do que só sentir; porque a Antártida não me parece tão longe e eu não tenho tempo de revisar uma página que escrevi há pouco mais de uma semana.
Porque o impacto de um livro é, para a autora, num tempo e muito depois para uma leitora e, na maioria das vezes, elas nunca conversarão; os abalos sísmicos de cada uma não será registrado em parte alguma.
Porque a publicidade também me envenena, as pressões sociais batem à porta com os testemunhas de Jeová e, assim como eles, me prometem um paraíso impossível que só chegará depois de muitas concessões absurdas e, por isso, tenho que ser vigilante e esperta; não escrevo porque fico alerta sob a guarnição.
Porque os manuais confundem, as placas não apontam todas as direções, o uso da gramática foi negligenciado e as sirenes de ambulância suspendem, por alguns segundos, o desfecho da oração.
Porque a lista do supermercado não termina, porque os desencontros também não. Porque esperar para escrever só depois que tudo estiver em equilíbrio é planejar um divórcio depois que os filhos estiverem grandes.
Porque o café solúvel acaba e o planeta está cada vez mais quente, custa escrever em um mundo que deteriora; quem vai ler depois?
Se escrevesse um romance, os baldes de água transbordariam, as prateleiras acumulariam pó, você ainda estaria no aeroporto, procurando a casa em olhos desconhecidos, os azulejos cairiam todos, meu emprego não me sustentaria e, o mais importante, meus alunos ficaram sem ler. Por isso eu nunca vou escrever literatura.
Coisas ruins acontecem. Às segundas pós-feriados, trabalhos que precisam ser terminados; nem sempre prazos estendidos nem sempre a compreensão dos vestígios da fadiga, mesmo pós-descanso. Atrasos, tropeços, perdas de pequenos objetos e lutas, esquecimento de palavras, de promessas e de retornos aos contatos anotados na folha amassada. Acontecem rompimentos de barragens, de paciência e de relações; por água, por limites ultrapassados, por abismos irreparáveis.
Coisas boas acontecem. Às segundas-feiras, um chocolate nas mãos, uma pergunta à porta, um elogio infantil. Acontecem resoluções à luz do dia, um outro passo, um desvio, uma saída de emergência com escada para liberdade.
Coisas ruins acontecem às segundas. A sola do sapato favorito descola, no teto do apartamento uma nova infiltração, as parcelas se acumulam e o salário é só no quinto dia útil. O ventilador não funciona, a internet não carrega o documento, um mioma no exame.
Coisas boas acontecem à tarde. A visita de uma família de micos ao batente da janela, uma banana, um copo com água, os dedos minúsculos que seguram a fruta, o barulho quase inaudível da deglutição dos símios e os olhos brilhantes de medo e espera.
Coisas ruins acontecem às manhãs, enquanto a cidade ainda acorda. Mais uma vida destroçada na linha férrea, o sinal da cruz de setenta por cento dos passageiros do ônibus e o silêncio até o ponto final; a morte voluntária é muda. Um dia, grandes templos se transformam em ruínas, supermercados ou estacionamentos; cinemas de rua se tornam igrejas, lanchonetes ou terreno baldio; uma alegria parece pesada demais para carregar, onerosa demais para manutenção.
Coisas boas acontecem antes das duas da tarde, na segunda-feira. É benigno, tem tratamento, o envelope descansa em quatro mãos; a sentença não alcança o corredor da clínica de exames.
Coisas ruins acontecem em um jogo de futebol, o time perder é a menor das derrotas. As revistas por seguranças armados, a desconfiança, o ingresso caro que é suspeito porque parece mais caro para alguns. Os hinos deturpados, os gestos criminosos disfarçados de piada, a mãe, a mulher, a irmã, a prima, a desconhecida, a filha que não estão seguras na arquibancada. Coisas ruins acontecem nos estádios aos domingos. Um ônibus apedrejado, um grupo encurralado, as emergências preparadas para ferimentos à bala.
Coisas boas acontecem nas partidas de futebol. Um menino e um velho realizam um sonho ao mesmo tempo, uma mãe paga uma promessa, um pedido de casamento entre dois torcedores de times rivais, um atleta em sua melhor performance, um troféu, a medalha, um acontecimento contado por gerações.
Coisas ruins acontecem em casamentos. Nas festas, a queda do bolo, a falta de luz, a playlist ruim, a bebida que não está gelada, o desmaio do celebrante, o calor, o temporal, o frio da noite. Depois da festa, os afazeres domésticos não-partilhados, o ciúme, as incompreensões, os gritos, o silêncio, a indiferença que comemora dezenas de bodas em retratos que fingem.
Coisas boas acontecem em enlaces. Nas comemorações, bem-casados recheados de doce de leite, alegria genuína, convidados descalços, gravatas abandonadas em cima das mesas. As dúvidas, as dívidas, as realizações, os sentimentos, as descobertas, as dores, os cobertores divididos.
Coisas ruins acontecem ao descer o calçadão do Centro, a visão periférica e disfarçada da promessa de um amor que não aconteceu, a mira de um pombo que risca com merda o ombro da camisa branca, o salto agarrado entre pedras portuguesas, as ofertas de seguros, cartões de lojas de departamentos e planos de celular.
Coisas boas acontecem ao passar pelo calçadão do Centro, a performance do artista de rua, o painel de Portinari, os cheiros de pipoca com queijo, amendoim com chocolate e de churros, os balões metalizados do vendedor ambulante, os encontros marcados sob o relógio do parque, as crianças de uniforme puxadas pelas mãos de uma avó, o meu dentista que anda sempre adiantado para as consultas.
Coisas ruins acontecem nas noites de segunda-feira, um tratado científico que ninguém vai ler pelos próximos dez anos é concluído, assim como um texto desarrazoado de uma desconhecida tocada pelas coisas ruins de uma segunda com centenas de civis mortos ou reféns de soldados; que detesta os exércitos e quer gritar isso. Uma pomba que negou a pena, mas não o insulto; uma sociedade acostumada à bomba com salvo-conduto.
Coisas boas acontecem nas noites de segunda-feira, um tratado científico é terminado, um grito desarrazoado é transcrito, uma pomba é finalmente compreendida, uma camisa branca é lavada e não tem manchas.
O negócio do amor não vai bem. Já marcaram com os bombeiros a retirada dos amantes. Não querem saber das minhas imagens, registros do que há de mais bonito por aqui. O negócio do amor está prestes a ficar sem casa, sem geografia, sem um ponto no Google Maps.
O negócio do amor cairá amanhã e as minhas súplicas eu já nem sei a quem dirigir e se devo mesmo fazer alguma intervenção. O negócio do amor é uma confusão imobiliária agora, um caso urbano de um negócio que parecia bucólico. O negócio do amor parece que vai acabar e eu não quero voltar para vida aqui antes dele. O negócio do amor parece perdurar em mim, mesmo que esteja de saída.
Há semanas eu acompanho o ninho. No primeiro dia, vi o casal entre as telhas do prédio ao lado e só depois eu vi o buraco. O casal de maritacas saía, um de cada vez, de uma abertura minúscula da parede que segura a cobertura. Duas cabeças verdes brilhantes e delicadas saíram da parede branca às duas da tarde.
No início, contemplava sozinha, depois comecei a chamar alguns colegas para dividir a descoberta, até começar a fotografar e eventualmente a filmar. Gostava de ver as cores das penas, dar zoom para apreciar os bicos e, mais tarde, observar a suavidade dos gestos me acalmava. Por muitos instantes, eu admirei a sincronicidade e a destreza do negócio do amor que escalava as alturas.
Mas, agora, o negócio do amor está cercado por uma faixa preta e amarela, pedindo atenção. Intervenção municipal no negócio do amor.
O negócio do amor é uma medida a qual eu não sei precisar, duas maritacas, um buraco de vinte centímetros de diâmetro em um prédio histórico, os fios de energia de pelo menos cento e vinte apartamentos no condomínio da frente. O negócio do amor é pequeno com proporções que não cabem no campo de visão da minha janela de madeira, também histórica.
O negócio do amor me faz criar uma fanfic de um ninho repleto de ovos ou filhos recém-nascidos que sensibilize os bombeiros pela família desalojada; me faz torcer por um amor tradicional com frutos vivos, que quebrem os ovos e façam chorar os homens cujo trabalho tem uma aura de serviço quase divino.
O negócio do amor me faz defender as expectativas sociais de amores que rendem frutos e de vidas que ainda só começam a existir e me faz esquecer dos sem-luz ao redor. Um casal de maritacas prestes a perder o abrigo me consome horas de pensamento e buscas no Google para salvá-las.
O negócio do amor me desafia a pensar no amor como algo sobre-humano, além do humano e, também, meramente humano. O negócio do amor me faz chegar mais cedo ao trabalho e perder a hora de ir embora. O negócio do amor me preocupa quando chove ou quando um caminhão dos bombeiros estaciona na mesma quadra em que estamos.
Ao negócio do amor me sinto próxima e responsável, embora esteja fora dos domínios do negócio do amor.
O negócio do amor estraçalha a fiação elétrica, interrompe a comunicação e ameaça o banho quente de uma centena de famílias. O negócio do amor carrega intimidação e defesa no mesmo bico. O negócio do amor vai abocanhar o conforto da civilização que precisa de antenas, fios e um robô de nome Alexa.
A primeira vez que eu ouvi que as maritacas destruíam redes elétricas de bairros inteiros eu fiquei incrédula sobre o poder e a força do negócio do amor. Não eram só pássaros pequenos, adoráveis e barulhentos.
O negócio do amor se esgueirou até fazer um buraco no telhado e acolher seu romance num espaço vazio. O negócio do amor é sério e faz rir. Mobilizou um grupo que deseja a sua expulsão e outro que defende que ele fique até o fim dos dias do amor. Bodas de telhado. Bodas de fiação corroída.
O negócio do amor não quer testemunhas, defensores, holofotes, fotógrafos ou perscrutadores.
O negócio do amor quer ser livre para expandir suas asas acima das cabeças confusas dessa multidão e voltar para o aconchego quando quiser. O negócio do amor não quer sofisticação ou burocracia de posse, o negócio do amor só quer um buraco no telhado e gritos de satisfação ao final de cada tarde. O negócio do amor só deseja contemplar o pôr do sol alaranjado da cidade que amedronta.
O negócio do amor é fazer casa na instabilidade, provocar incêndios e ainda assim ser admirado. O negócio do amor está prestes a falir, sem concordata. Sem intervenção da associação protetora dos animais que também teve sua fiação carcomida. O negócio do amor não quer discar para o 193, não quer provar que tem família ou que precisa do telhado alheio.
O negócio do amor só quer gritar e se esconder da chuva. O negócio do amor tem que voar. Porque a liberdade é o negócio maior do negócio do amor. Amanhã os bombeiros vêm, amanhã a minha janela ficará fechada.