O espaço quente no lençol, depois que você se levanta, é irrefutável. O tecido amarrotado do travesseiro,
com a marca leve da sua cabeça, que já não está mais deitada, é
absolutamente indubitável.
O tapete com a ponta levemente dobrada,
depois que você vai ao banheiro, é prova cabal.
As
cortinas completamente cerradas, para o sono longo ou cochilo também
não sou eu, mas você. Os fios de cabelo na escova que eu nunca usei,
porque se adequam mais aos fios finos do cabelo que não é como o meu. A
gaveta com o meio milímetro para fora da cômoda é a materialidade do seu
empenho em fechar portas, caixas, gavetas, zíperes, apostas.
O suor na borda do copo, na pia, depois de você beber água é irrefutável. O resto de Coca-cola na terceira prateleira da geladeira não me deixa mentir.
A caneta sem tampa na escrivaninha, o número de telefone no post it, sem identificação, os boletos pagos e a vencer na mesma pilha, em cima do aparador da sala, dão a absoluta certeza do seu retorno. Nem promessas, alianças, certidão ou pacote de viagem meio pago são tão definitivos.
A mesma piada há cinco anos, a mesma suspeita de piada há cinco anos são as manifestações da sua cultura, a qual eu me integrei tão bem. O seu idioma nas mensagens do meu telefone, os aniversários da família de onde não vim, os coletivos que não usava até conhecer você, as resmas de papel que extrapolam o móvel da impressora. As listas de presentes que não são para mim, não cabem no meu pai, não agradariam a minha mãe e que nunca foram sonhados pela minha irmã.
A TV com o volume cinco pontos mais alto do que a minha audição solicita, incontestável vestígio. As almofadas sempre amassadas no sofá da sala, o cachorro com habilidades novas todos os dias, os vizinhos que o encontraram no elevador pela manhã e que agora me perguntam sobre a sua tosse.
O cheiro de comida na cozinha, depois que você abre o micro-ondas, o
barulho do lacre da lata de água tônica que ecoa no corredor, o cheiro
do xampu de maçã verde na toalha úmida no varal, o pé do chinelo, numero
42, onde acabo de tropeçar e que se perdeu do par que deve estar do
outro lado da casa, são decisivos.
As gírias e palavrões da calopsita do
apartamento ao lado, os pacotes de arroz integral fechados com clipes, os sacos de cereal fechados com pregadores de roupas, o ferro de passar roupas sempre na tábua, nunca no armário, também denunciam a presença.
A chave virada no miolo da fechadura e eu, parada na porta, porque não conseguia entrar sem a sua mão. O banco do motorista recuado para caber as suas pernas, a sua direção relaxada, o cinto folgado, o combustível que eu nunca mais tive que repor, também são indiscutíveis.
O barro seco no chão da varanda, onde você estaciona a bicicleta, a mesa do bar, restaurante, o garçom que já me chama pelo nome, nada disso eu inventei sozinha. As listas de filmes, livros, álbuns, países para visitar que não sei mais se fui eu quem escreveu ou foi você. As linhas de ônibus que você já pegou na cidade, as ruas que eu não decorei o nome, os bairros que eu não conheço a direção, as igrejas que você frequentou com os seus pais, aos domingos, são rastros inegáveis.
O espelho do banheiro embaçado, o piso molhado, as roupas usadas, ainda fora do cesto de roupas sujas; o caos do banho finlandês. No tubo de pasta de dentes, sinais sutis de dedos anteriores aos meus. No corrimão da escada, algo melado, de um picolé que não derreteu na minha mão.
A mensagem que pergunta se precisamos de algo do supermercado, que é logo ultrapassada pela outra que quer saber se cheguei e outra com o total de uma conta e depois dividida por dois e outra que pesquisou sobre a minha dor de cabeça e outra que pede desculpas porque não fechou as janelas e um dilúvio bíblico afoga a cidade.
Nada na cama, quarto, cozinha, sala, casa, automóvel, transporte coletivo, bares, cinemas, escovas de cabelo, lojas de material de construção pode negar a sua presença e, então, por que não sinto?
O amor, cansado de esperar, envelheceu, comprou um sítio de dois alqueires e só volta à cidade uma vez ao mês para as compras no supermercado. Mora em uma casa pequena, com raras visitas e somente com o essencial.
O amor, na cozinha, enche uma leiteira com água da torneira para abastecer o filtro de barro em cima da pia; o amor faz o mesmo gesto até ter o filtro cheio. O amor aprendeu a regar as plantas, a alimentar seus animais domésticos de companhia, a guardar saudades e a estender as roupas na grama para quarar.
O amor, agora, serve café em caneca esmaltada vermelha e assa bolo de milho. O amor não quer mais champanhe em torre alta.
O amor grisalho, não é mais um alienado pela tecnologia, abriu mão das facilidades, que sempre dificultaram muito mais a sua vida. E mandou embora da sua horta, pomar e jardim os plásticos, os embutidos, os flertes colecionáveis, as harmonizações faciais, os cursos online, os clubes do vinho, de corrida e de livros. O amor assumiu sua autoria.
O amor, agora maduro, não se deixa mais ser enganado por qualquer discurso; o amor enxerga a materialidade nas ações.
O amor é mãe, que diz que aquele não é companheiro para a filha; o amor é o pai, que vai buscar a filha, depois de tudo acabado. O amor é a irmã, que nunca gostou do cunhado, o amor é o filho, que não suportava assistir a sua mãe sofrer.
Nem fotos nem fogos de artifício, nem declarações fugazes de um ano nem pedidos de desculpas por trinta meses. O amor ouviu pai, mãe e amiga; o amor, finalmente, foi abraçado pela antiga intuição.
O amor é a sua própria invenção, começa e termina antes da assinatura do juiz. O amor tem galinhas, limoeiros, alguns pés de café, hortênsias, dois cães mansos e um gato arredio. O amor nunca saiu sem nada, mesmo que não estivesse vestido e sem sapatos no abandono.
O amor desistiu de ensinar. Em escola pública não dão condições, em rede privada não há alinhamento de convicções. O amor abandonou o quadro, os planejamentos e as avaliações; mas o amor ensina uma vizinha a ler, o entregador do supermercado a calcular, ao carteiro se localizar e ao motorista que o traz à cidade, entender sobre o sistema que também o explora. O amor é freiriano em sua raíz; o rigor e a amorosidade.
O amor é um ex-professor que nunca se perdeu do ofício. O amor que não dá mais aulas, ensina mais quando aprende; fala melhor quando ouve e ama mais quando oferece.
O amor, com ouvido absoluto, não pode mais ir às festas municipais, com cantores superfaturados e presidenciáveis; o amor só deseja desfrutar das canções de Livia e Arthur Nestroviski. O amor é impaciente e nem tudo suporta; valoriza os bons acordes e prefere se retirar quando a música parece dissonante. O amor não quer dança fácil, mas não autoriza que lhe levem uma perna ou um braço. O amor aprendeu a ensinar limites.
O amor, mesmo colonizado pelo Alzheimer, não se esqueceu do Clube da Esquina n°2, das Geraes e das Vinte palavras ao Redor do Sol; o amor só consegue chorar com música, o amor só consegue se recuperar com uma trilha sonora.
O amor foi tomado por mandruvás, nas suas folhas, e ninguém tinha coragem de se aproximar. O amor se tratou com infusão de coentro e, logo, os ninhos de seda das lagartas peludas se dissolveram. Os mandruvás, do amor, finalmente se descolaram.
Um dia, o amor, cansado de cuidar sozinho de um sítio de dois alqueires, colocou placa no portão da propriedade e, em pouco tempo, encontrou interessados. O amor vendeu sua terra, deixou para trás a sua rede, sua enxada, seu regador de dez litros, suas galochas tamanho 37, subiu numa moto, apontou um destino e seguiu em retirada à liberdade. O amor vai, mas fica.
É o horário da troca de turno e todas as vezes em que tentei chegar nesse momento, fracassei. Agora, que não planejei, eu alcanço as duas enfermeiras no quarto, trocando impressões, pontuando as orientações mais recentes do médico e, também, contando episódios dela, como se fossem anedotas. Quando me veem, param, silenciam e me cumprimentam com algum constrangimento. Não tem nada demais em rirem dela. Ela que também sempre teve o melhor dos humores, certamente aprovaria as risadas que continua provocando, ainda que, de certa forma, involuntariamente (mas não completamente, ela gosta de público e sabe como cativá-los).
Quis muito ter esse momento com as duas; falar, em um mesmo tempo, observações ou pedidos que saem, na maior parte das vezes, fragmentados, sem nenhum rigor e precários, porque se falo com a enfermeira de um turno e ela concorda, só no dia seguinte, consigo ter a percepção da outra, que se contrária, teremos mais alguns dias até afinarmos qualquer decisão.
Tudo agora é imenso, burocrático, assinaturas em três vias, autenticadas em cartório e comunicado para gente que, antes, eu nem sabia que faziam parte da nossa vida. São juntas médicas, equipes de psicólogos, assistentes sociais e até um diácono. São bancos, boletos, cifras, dívidas e pagamentos. Não somos só nós duas e, às vezes, eu me perco nesse mar de ligações, emails, mensagens, exames, mensalidades, taxas e adicionais. É uma vida muito valiosa desde sempre, mas difícil de administrar, desde que não pudemos mais sermos só nós.
Logo hoje, com a possibilidade desse encontro, me sinto despreparada para qualquer estratégia nova. Logo eu, CEO da vida mais preciosa que pousou nesse universo. Estou cansada e desde o último encontro, há dois dias, não tenho dormido bem, me alimentado ou sonhado como antes. Desde a última visita e reunião com o médico, minha esperança se vestiu de um verde desbotado. Há dois dias, eu a vi pela primeira vez completamente entregue, sem frases, argumentos, sem luta, só imóvel e com um olhar que não parecia nunca mais retornar para esse planeta. A enfermeira da manhã me preparou para a reunião com o médico, me contou das novas dosagens de ansiolíticos, da necessidade de contenção dos braços e pernas, da agressividade; a enfermeira da noite me consolou, depois da conversa com o médico.
Hoje, as duas estão juntas e ela não está mais na cama.
Com a camisola de cetim champanhe e o robe da mesma cor e tecido, ela está em frente à janela do quarto. Cabelos soltos, não muito arrumados, mas não completamente despenteados, pacífica, nenhuma onda revolta, nenhum grito, nenhum tecido que a contenha na cama. É início da manhã e o sol penetra nos seus cabelos ralos, toma o seu rosto e mãos, que estão postas para cima, como se fosse uma praticante ou terapeuta de reike. Não há paisagem bucólica lá fora, só outros prédios e ambulâncias, mas ela parece contemplar ou agradecer a um universo que nós três não vemos, mas do qual ela talvez se lembre.
A enfermeira da noite diz que ela dormiu bem e com pouco medicamento e que, por isso, deve ter um dia bom. A enfermeira do dia parece otimista e propõe um passeio no jardim, depois do café da manhã. Enquanto conversamos, ela continua com as palmas da mãos voltadas aos raios de sol e com um semblante plácido, que era comum quando estávamos relaxadas em casa, em finais de semana, passeios e outros tantos dias felizes. Ela interrompe a conversa com as enfermeiras e a minha contemplação da sua imagem.
Me pergunta se eu trabalho e fica feliz quando respondo que sim, depois quer saber quanto eu ganho e quando eu respondo, ela diz:
— É pouco, né? Confirmo e me incentiva:
— Mas deve ser o suficiente para não depender de ninguém. Ela não sabe que o que ganho é o que sustenta nós duas, é o que garante o atendimento médico e os cuidados paliativos dos quais ela depende agora. Ela não sabe que embora tenhamos uma multidão que nos assiste, somos só nós a sobreviver do que trabalhamos. Mas concordo com um pequeno aceno de cabeça.
Logo ela emenda outro assunto: — Você é casada?
— Não sou.
Respondo e sorrio. Porque já desconfio da sua abordagem cuja confirmação vem logo depois:
— Então nunca faça essa bobagem.
Sorrio e ela me repreende:
— Eu estou falando sério! Conselho de quem já viveu muito.
Pergunto como ela se sente hoje e a sua fisionomia parece mais grave, antes de me responder:
— Eu só não quero casar de novo. Por favor, não deixe eles me obrigarem. — Não vai, dona Antônia, se não quer se casar, não vai. Não a chamo mais de vó. Não na presença dela, que não reconhece o nosso parentesco. Tenho orgulho em tê-la, ainda que, na maior parte das vezes, distante ou agressiva. Mas não posso mais insistir em uma lembrança que já se apagou para ela, guardo para mim e exponho a todos os outros.
Quando eu podia dormir até mais tarde, ela saia de madrugada; eu voltava da escola, fazia as tarefas, brincava e, quando já estava prestes a dormir, ela chegava. Depois saíamos ambas no mesmo horário, ela voltava mais cedo e eu chegava cada dia mais tarde, estágio, trabalho, aulas. Depois foi ela que podia dormir até mais tarde e eu só chegava quando ela já estava de camisola de cetim e robe para me desejar boa noite. Estivemos quase sempre em mundos diversos, mas com visitas recorrentes e sem intermediários. Ela pisava no meu mundo sem bater à porta, limpar os pés em um capacho ou pedir licença e eu atravessava todas as suas muretas, degraus, portões e tramelas, sem cerimônias.
Queria
que continuássemos a partilhar um mesmo mundo, alguma janela que nos
mostrasse qualquer ângulo que ambas, juntas, pudéssemos contemplar.
Quando vejo suas mãos voltadas para cima, iluminadas de sol, me lembro de tê-las debaixo do
meu rosto, me segurando, me conduzindo, me ofertando um mundo e me
oferecendo a ele também. Esse nosso mundo que não coincide, mas que ampara quando o outro ameaça a desmoronar.
Depois da troca de turno, fomos ao pátio, tomamos café e tivemos um dia bom. Nenhuma de nós se casou naquele dia.
Quando eles chegam, já estou exausta e um pouco mal humorada pela espera, mas insistente. É véspera de um novo ano e eu tenho uma resolução cuja promessa é a de fazê-la acontecer já. Das outras vezes não voltei com um problema, embora soubesse que não era meu, eu o assumia. Para não perder tempo em filas de espera, como faço agora, não passar pelo desgaste das etapas de uma devolução ou troca e, principalmente, só para não ter que repetir muitas vezes, para pessoas diferentes, o intuito do meu contato. Agora não.
Não quero mais colocar no meu colo um problema que deve ser resolvido por outros, não quero mais improvisar aparatos, buscar tutoriais na internet para eu mesma fazer reparos, instalações ou comprar peças que faltaram ou não funcionaram. Não quero mais ser calada e diligente ou preguiçosa e displicente, ao menos como consumidora. Há cerca de quarenta minutos, espero pelo atendimento no hipermercado para manifestar o meu desejo de devolução de um aparelho de celular sem um dos acessórios essenciais e o reembolso do valor pago. Até chegar aqui, recusei o envio do acessório em quinze dias, um outro aparelho em vinte e alguma outra oferta em trinta dias. Está quente e parece ainda mais incômodo quando estou contrariada. Uma mulher, da fila, esbraveja com a atendente, fala alto, reclama desde que cheguei e, eventualmente, procura solidariedade entre os outros consumidores, mas a sua postura agressiva me deixa desconfortável. Um segurança a repreende, ela grita com ele também, uma senhora, na fila, oferece água e pede calma para a mulher, que a destrata.
Quero ir embora, porque me lembro que é o último dia do ano, tenho algumas compras ainda para fazer e de como esses eventos marcam as minhas lembranças, muitos anos depois. Me lembro de um ano em que chorei no chuveiro, na última tarde, para poucas horas depois assistir aos fogos coloridos pelos quais eu permiti que a emoção recalcada retornasse com a desculpa do alumbramento pelo espetáculo; e que dele nunca me recuperei completamente, porque ele retorna sempre que acesso ao meu último dia de cada ano. Me lembro de um outro, esse bastante remoto, cuja felicidade de um breve acontecimento me faz sorrir até hoje. Quem eu serei depois desse último dia? O que eu terei para me fazer feliz ou triste quando me lembrar de um último dia de dois mil e vinte e quatro?
Saio da fila com a senha nas mãos, ainda, porque preciso decidir se permaneço ou adio a minha resolução de fim de ano. Dou voltas entre os corredores do hipermercado à procura de qualquer coisa que não seja grave, estridente ou ameaçadora. Escolho a gôndola de plantas, me abaixo para ver de perto os bonsais e imaginar uma floresta deles em miniatura, por onde eu pudesse passear agora.
É através de uma cerejeira de trinta centímetros que os vejo pela primeira vez. Primeiro uma pérola brilhante em um coque no alto da cabeça da mulher. A pérola se destaca em meio ao cenário colorido, poluído e sibilante das roupas infantis. Entre estampas de Homem Aranha, Bob Esponja, Batman, Moana, princesas nórdicas e emoções coloridas, a pérola se abaixa e se levanta, ondulante, buscando um algo ainda não encontrado.
Ao assisti-los, a poucos metros da minha dúvida, eles devolvem um pouco da minha paz. São gestos simples que me capturam para essa relação. Ele, pequeno e esperto, trançando pelas pernas dela, magra e concentrada. A mulher segura camisetas em promoção, confere a etiqueta e as devolve para a banca, não analisa estampas, não as coloca na frente do menino, só olha o papel pregado na gola e as abandona na pilha. O menino simpático, bochechudo e agitado, com cerca de três ou quatro anos, se concentra em atravessar as pernas da mãe e tentar alcançar cada camiseta que a mãe pega, sem nunca ter tempo de tocá-las.
Abandono as árvores pequenas e me aproximo da seção infantil. A pérola, de perto, é menos esplendorosa do que através da cerejeira, mas o coque no alto da cabeça da mulher é mais robusto e o sorriso do menino muito mais contagiante. Depois de alguns minutos, a mulher deixa a banca de camisetas com estampas de desenhos animados e super-heróis e segue para uma outra com coqueiros, palmeiras e abacaxis bordados. Confere a etiqueta e posta a primeira delas sob o peito do menino, que parece não gostar muito. A mulher de coque faz o mesmo gesto dezenas de vezes, com outras camisetas, e em cada um deles o menino parece menos animado. Ele a puxa para a banca anterior, ela se abaixa, conversam e ele ensaia um choro.
Uma mulher se aproxima, conversa com o menino, que aponta a banca de camisetas de personagens e ela parece tentar convencer a mulher de coque a comprarem juntas a camiseta do Homem Aranha para ele. Ela agradece, com ternura, mas não aceita. O menino se entristece, de novo, a outra mulher não insiste e se despedem.
A conferência das etiquetas na gola, a escolha pela outra banca de camisetas, a desilusão do menino, a oferta da outra mulher; agora entendo a dinâmica. Esse pudor com as ausências, essa vergonha pela falta também era da minha família. Ninguém pedia ajuda, ninguém aceitava ou sugeria que precisasse de ajuda. Essa decisão de enfrentar tudo sozinha, de não segurar a mão de ninguém ao cair, de se equilibrar sem chorar, de assistir aos fogos, depois de um choro no banho; isso também é familiar.
O menino embora choroso, não faz birra, não insiste em ir à outra banca, mas também não escolhe nenhuma das opções que a mãe oferece. Nada de trançar entre as pernas dela, nada de pulinhos para ver o que ela segura, nenhuma ondulação de pérola mais, agora, o coque encontrou o que o seu dinheiro podia tocar: uma camiseta azul claro com uma ilha bordada no lado direito do peito. O menino não quer a ilha e ela parece se entristecer com mais essa negativa que ela precisa anunciar. Serão muitas outras, eu imagino, mas dessa eu preferia que ele fosse salvo.
Enquanto a dupla caminha, amuada, para o caixa, a mulher que abordou mãe e filho chama uma funcionária, entrega uma nota, combina a inserção da camiseta na compra da mulher de coque e o anonimato. De longe, acompanho a conversa entre a dona do coque com pérola e a funcionária e, depois, a comemoração do menino. Seu último dia de dois mil e vinte e quatro com uma camiseta do seu herói favorito. Retorno para a fila dos consumidores desamparados com duas latas de creme de leite. Mais vinte minutos e concordo em espero por mais quinze o acessório não enviado com o produto.
A pérola na flor gasta do cabelo. Ele amando a mãe, ele com o desejo de criança, irritando essa mesma mãe. Eu com o meu produto devidamente reparado, o menino com a sua pequena felicidade e a mãe com o brilho do filho que hoje superou uma falta. Às vezes, alguma justiça no último dia do ano.
Tem um mamute na sala e porque ninguém mais o vê, fico constrangida em cumprimentá-lo sozinha. O mamute está sentado confortavelmente no sofá da sala de estar, como se esperasse por uma xícara de café, mas eu não tenho pó.
Tem um mamute, atravessando a minha solidão e sentado no meu domingo; o mamute me olha com intimidade e eu me constranjo em ser fragmentada e humana. Quero me desculpar por não ser mamute e por não ter pó de café em casa.
Tem um mamute no apartamento de dois quartos e ele não parece maior do que o meu gato. O mamute espera de mim mais do que café na xícara e eu tento me esquivar de qualquer diálogo.
O mamute, na sala, não diz ao que veio e mesmo que eu não conheça o mamute, eu sei o que ele quer dizer e ainda não disse.
Tem um centurião no box do banheiro, me espremo toda para não importuná-lo, mas sei dos pingos de água que molham o seu escudo. O centurião não vê a minha nudez no banheiro, mas antes dele. Foi o capitão quem sequestrou a minha palavra e, agora, debaixo da água, quer me devolver.
No box do banheiro, o centurião insiste em ouvir a minha voz, mas no banho eu sou calada.
Tem um centurião no box do banheiro, que parece reconhecer a minha luta. Mas o capitão não pode me aconselhar. Desligo o chuveiro, enrolo uma tolha no cabelo e o centurião ainda está lá, tomando os pingos da torneira que está frouxa.
Tem uma fenda na minha ilusão, através dela enxergo a realidade. Tento cobri-la com um pedaço de tecido, mas a fenda é mais profunda do que as minhas mãos podem conter. Tem uma fratura na minha fantasia e tudo o que dói é a verdade que não pode ser ignorada por muito tempo.
Tem uma correspondência na caixa de correios, que eu finjo não ver toda vez que a abro para as boas notícias. Na carta que eu não leio está escrito o que eu não gostaria de saber.
Tem uma fissura no meu sonho, disfarço a dor e não olho enquanto ele se despedaça no chão; acordo mais tarde para recolher os pedaços com a pá de lixo.
Tem uma despedida me esperando na esquina, mudo o lado da calçada, procuro um atalho para evitá-la, mas não sei quantos caminhos ainda poderei tomar, antes de finalmente encontrá-la. Tem uma despedida que grita o meu nome quando passo bem longe dela e eu aumento o volume do meu fone para evitar ouvir a voz do desenredo.
Tem uma despedida na quadra onde eu moro e eu evito sair sozinha à noite com medo de que ela me alcance, se eu não puder vê-la de longe; meu astigmatismo faz ela brilhante e colorida.
Tem uma despedida a me perscrutar, ouço seu sussurro, mas ainda me recuso a cumprimentá-la.
Tem uma donzela, ameaçada pelo fogo no meu quintal. Ela segura o vestido, enquanto o fogo trepida na lareira. A donzela está bem penteada e maquiada, mas não há ninguém para salvá-la da fogueira armada no meu terreiro.
Tem uma donzela assustada nos fundos da minha casa e nem mesmo quando o fogo se aproxima, ela grita; mas se mantém educada e quase muda. Ofereço água à donzela e ela aceita só ser for em taça de cristal.Tem uma donzela em perigo no meu quintal e ela não parece escolher a vida que não seja a ideal. A passividade da donzela me perturba. Uma donzela que vai morrer porque não aprendeu a gritar.
Tem uma parte de mim desencontrada no lado oposto da cidade. Um rosto que se parece com o meu, uma voz com o mesmo tom da minha, outro par de mãos longuíssimas, mas com uma história diversa. Essa outra parte desencontrada já tem o que eu procuro, mas não dividiu comigo ainda.
Tem uma parte de mim, perdida pelo continente, que fala a mesma língua, mas usa outras palavras, tem um andar parecido, mas os pés estão sujos de outra terra. Uma parte mais resoluta do que essa que eu abrigo agora. Essa parte me procura, enquanto eu fujo da sua ousadia. A outra parte, alojada na região oposta da cidade, quer que eu a acompanhe, mas eu ainda não descobri o número do ônibus que passa na sua rua.
O mamute, no fundo da sala, agora grita. Já não posso fingir que não o escuto. O centurião, molhado, me desafia. Não tenho medo da batalha masculina. A fenda no meu sonho quer me sugar. A donzela desistiu de esperar e já procura um extintor; a parte de mim se juntou à donzela e, juntas, apagam o fogo e se salvam.
Só a despedida ainda não encontrou seu desfecho. Terei que ouvir o mamute e aprender a só deixar ir.