
Antes do almoço, íamos brincar no campo de futebol do lugar, quem gostava do esporte assistia - era um time inteiro de tios - quem não gostava, fazia barquinho de folha de palmeira e depositava no riacho atrás do campo. - Vou mandar o meu para o mar, ele vai na minha frente, depois, quando crescer vou eu! Se tivesse vendedor de balões, a gente descolava um, com um tio ou outro, desajuizado, que gastava mais dinheiro do que ganhava, as crianças adoram os tios sem juízo e com algum dinheiro. Nós comprávamos para logo dar-lhes o céu de liberdade, igual a passarinho. Meu balão sempre ia para Paris, da minha irmã para Brasília, da minha prima voava para o Rio. Os balões e os barcos eram a personificação dos nossos sonhos. Ir embora. Tudo que a gente queria, era outro lugar.
Voltávamos do campo e comíamos o frango do quintal, ninguém era vegetariano naquela época. Eram panelas grandes e pratos esmaltados, eu escolhia o de rachadura no fundo esquerdo, começava meu repertório de manias. As conversas na cozinha duravam manhã e tarde adentro, nessas horas, criança só escutava e não era ruim, conversas de adulto eram também engraçadas e as vozes faziam a gente dormir nos bancos mesmo, depois do almoço. O silêncio, às vezes, atrapalha o sono diurno.
As horas do domingo duravam um ano inteiro: a gente brincava, caía, fazia curativo, brigava com um primo, voltávamos às boas, cicatrizava o machucado, dormia, acordava, voltava a brincar, não fazia nada, comia, corria, encontrávamos um passarinho ferido, um cachorro perdido ou uma cascavel no quintal e sonhávamos em ir embora. Ver o mar, morar num prédio bem alto e dirigir.
Nos domingos crescíamos mais do que nos outros dias, nos domingos, casavam, arrumavam um trabalho e as crianças viravam adultos. Minha irmã foi embora, minha prima também, nem Brasília, nem Rio e eu ficava sem Paris. Os barcos e os balões se chegassem ao seu destino seria um consolo, mas a escola ensinava que eles não podiam chegar. Eu não acreditava na escola. Minha dezena de balões e centena de barcos estavam em Paris.
Larguei a igreja, os padres passaram a gravar CD e escrever livros e as moedas não eram mais suficientes ao dízimo, parei de ir ao campo, meus tios não jogavam mais futebol e perdiam o juízo com outras pessoas e coisas, não fiz mais barcos de folhas de palmeira, nem comprei balões. Os cabelos foram domados, as conversas silenciadas e os domingos passaram a correr. Não cabia mais deitada no banco da cozinha e o prato esmaltado foi substituído pela louça intacta. As cascavéis não frequentam mais o quintal, as galinhas estão no supermercado e eu só queria o domingo comprido e as montanhas sem fim.
O primeiro lugar do qual cismamos em partir será sempre o lugar com o qual vamos sonhar, quando crescer não parecer tão bom.
Debaixo do limoeiro da estação. Eu só queria mais um dia lá. Debaixo do limoeiro, seria como o colo da mãe. Eu pequena de novo soltaria meus balões para buscarem os céus de Paris. A minha estatura, a distância de casa, a vida depois de lá, nada foi capaz de me separar do limoeiro da estação. Deito na cama do apartamento e sinto o cheiro do limão galego, ele impregnado em mim. Eu nunca fui embora. Era tempo de sonhar com o lugar de onde partimos e, por isso, todos sonhávamos.
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