
Chego com sorrisos no prédio de sempre - não sofro de mau humor matinal - converso amenidades com o porteiro, enquanto aguardo o elevador, que chega, mas dispenso-o quando um burburinho na portaria me faz ficar. Um choro de menino, num túnel de maus conselheiros adultos, que não o confortam em nada: - Ah, mas nessa cidade já não pode dar esse mole!; - Com a próxima tenha mais cuidado!; - A rua aqui até parece tranquila, mas isso aqui é centro da cidade, menino!; - Agora não adianta chorar, né?
Eu me aflijo com cada frase, porque sei que não são minimamente acolhedoras para quem chora; choro precisa de lugar para desaguar, reprovação alguma cabe num momento desses.
Mais tarde, entendemos, eu e o porteiro, que somos os últimos a chegar, o caso: o roubo de uma bicicleta. O garoto, de uns 10 ou 11 anos, saía de casa com a bicicleta, quando lembrou que não levava o cadeado dela e se precisasse? Voltou ao apartamento correndo e quando desceu, a bicicleta, sem o cadeado, já não estava mais lá.
- Mas foi um segundo. Um segundo que eu subi, subi correndo e levaram a minha bicicleta. Repetia entre um soluço e outro, o menino.
Inconsolável, de coração partido, com medo dos pais pelo descuido com o presente recente, de ego ferido pela perda material, criancice, muita raiva e um cadeado inútil, agora, nas mãos, o garoto sofria a desilusão dos poucos minutos. São eles que definem uma perda grande, os poucos.
O voo marcado, a última vaga da carona, o início da sessão de cinema, o último par de sapatos daquele modelo e naquela cor de número 37, o melhor lugar para assistir à palestra ou ao show, o ídolo que acabou de seguir em um táxi, o amor da sua vida, a melhor garota, o emprego dos sonhos, a vaga no curso pela qual estudou um ano inteiro, o encontro entre seu sonho e você, o primeiro andar do bebê, a última palavra antes do silêncio definitivo, o aceno, o derradeiro olhar antes da viagem, a tudo perdemos por muito pouco.
Os desencontros lamentados, as grandes perdas definitivas ou separações irreparáveis são dolorosas porque acontecem por pouco, por quase nada. E a sensação de não ter impedido um descaminho por um mísero intervalo de tempo, ter a imagem de uma nuca ou alguns fios de cabelos desaparecerem numa porta recém fechada é a dor de ter, por alguns segundos, um tesouro nas mãos e antes de podermos fechá-las um vento passa e surrupia nosso bem tão cobiçado.
O que quase sempre separa um amor de outro, a sorte de um necessitado, a esperança de um desacreditado, a desejada mudança de uma ação, são mesmo os segundos. As grandes separações se escondem naquilo que todos os dias enxergamos como irrelevante, mínima e desconsiderável. A subida e descida de dois andares e a dor alucinante de um menino.
Poucos minutos depois e a revelação de um mal entendido: a irmã do menino não viu mal algum em dar uma volta no quarteirão com a bicicleta do irmão mais velho. Alegria instalada, voltamos cada um às suas perdas e desencontros. Chamo o elevador e aguardo. A cidade não é tão desalmada quanto dizem. Mas continuo morando num deserto e chegando atrasada aos compromissos; quem sabe num atraso desses não me encontro.
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