E se descobríssemos numa manhã de quarta-feira, que a ciência constatou o fim do mundo, num dia muito mais próximo do que os quatrocentos e oitenta meses que esperávamos viver? Que tipo de amantes seríamos depois dessa revelação? O casal que termina na véspera do carnaval para aproveitar os cinco dias sem compromisso romântico ou os dois jovens de vinte anos que se casam urgentemente para não terem o coração mais vezes partido?
Abandonaríamos a casa ou nos trancaríamos nela? Que casal de namorados seríamos se uma hecatombe se aproximasse dos nossos planos e dos futuros que poderiam ou não se realizar?
Nos dispensaríamos da angústia partilhada dos últimos meses de nostalgia ou mergulharíamos nela?
A quem perdoaríamos ou pediríamos perdão? Qual arrependimento teríamos, por azar do fim do mundo decretado? De qual decisão equivocada nos orgulharíamos, por sorte da destruição completa revelada?
E essa derrocada anunciada nos levaria para uma análise sociológica do nosso romance até aqui ou nos afastaria de nós para nos entregarmos à humanidade agonizante? Militaríamos por um fim digno para todos ou beberíamos taças de vinho em todos os jantares?
Se o fim do mundo fosse anunciado amplamente, com quem faríamos contato primeiro, se não estivéssemos em frente à mesma tela? Se escolhêssemos um ao outro, quem de nós falaria as primeiras palavras e quais seriam elas?
Além do futuro, o que mais perderíamos se o nosso e todos os amores do mundo tivessem os seus términos iminentes? É mais lamentável por ser amor ou só os amantes pensam nisso? Com que palavras enterraríamos os nossos mortos ou a nossa própria morte? E o que teríamos para inventariar para um outro mundo que substituísse esse nosso?
Um dente ferrado, um amor inventado, uma febre não explicada, um parente sem rumo. Uma porta aberta, uma entreaberta e uma ignorada. Uma janela quebrada, uma lateral do quarto de dormir.
Um experimento, um verso ingênuo, uma musa de pescoço em riste no camafeu que compramos na feira de antiguidades da Praça XV.
Um balde de tristezas, uma paixão não correspondida, um litro de aguardente intocado debaixo da pia. Uma caipirinha, uma pizza, uma igreja, um restaurante, um cinema, um museu, um pedaço de calçada favoritos no mundo.
Um experimento, um verso ingênuo, uma musa de pescoço em riste no camafeu que compramos na feira de antiguidades da Praça XV.
Um balde de tristezas, uma paixão não correspondida, um litro de aguardente intocado debaixo da pia. Uma caipirinha, uma pizza, uma igreja, um restaurante, um cinema, um museu, um pedaço de calçada favoritos no mundo.
Uma fogueira a ser feita, uma amizade que escorre por uma fresta invisível, uma esperança de mochila e tênis, que aprende a ler e a abaixar a tampa do vaso.
Um homem cordial e outro que grita. Uma mulher submissa e uma mulher. Uma mãe sem memória, uma certidão de nascimento com paternidade desconhecida e dois ingressos para o show do Gilberto Gil. Um apartamento financiado, uma carreira que não se consolidou, uma via que ainda não tomamos, uma dúvida, várias dúvidas.
Qual o livro, a música, o filme, a peça, a obra de arte ou a dança que repetiríamos na despedida? O que levaríamos e o que ficaria de nosso para que os arqueólogos de um outro tempo nos descobrissem? E se ele achar uma colher, um talher que nunca escolhemos com cuidado, porque foi sempre o mais barato e prático, mesmo assim ele poderá saber de nós? E se ela achar um livro nosso com dedicatória minha ou sua ou as duas, com qual delas a arqueóloga desavisada se emocionaria mais?
Guardo com cuidado as cartas e os livros que me mandou e, mais, escrevo com cuidado as missivas e os textos nos livros que te dedico, talvez isso nos salve para a eternidade ou talvez as colheres é que nos mantenhará vivos.
Se o mundo acabasse antes dos quatrocentos e oitenta meses que calculamos ainda ter, o que pensaríamos de nós, da vida que compartilhamos até aqui? Essa vida entraria nas nossas prestações de contas como algo fundamental ou um recorte mais aprazível do que determinante nessa existência em risco?
Nós vamos à terapia, atravessaremos o Atlântico de novo e definitivamente ou nos despediremos na esquina. Só não vamos mais esperar pelo fim do mundo sem tentar existir um pouco mais ainda.
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