domingo, 27 de abril de 2025

Você não era assim quando eu te conheci



    Os dois sobem a rua que eu, agora, desço; começo da noite, as luzes amarelas dos postes acesas, o cabelo vermelho dela fica ainda mais rubro quando ela para sob um dos postes e começa a repreendê-lo:
  — Você não era velho assim não. 
    Ela de vestido solto e estampado, cheiro de colônia de lavanda, cabelos ondulados e andar sinuoso e só solta a mão dele, quando para e começa o rosário de observações.
    — Para já com essa velhice ranzinza! O lugar é bonito, tem música, dança, salão de jogos. Nós vamos sim
 
    Ele parece menor do que ela, embora mais alto. Está vestido com uma calça social bege e uma camisa azul, calçado com um par de tênis cor palha, um pouco mais claro do que a calça; está elegante e parece calmo. Ele a escuta sem intervenções orais, embora a cada observação dela, ele tenha uma expressão facial mais incisiva.
 
    Ele não quer fazer o programa, ainda que para ela pareça ótimo. Mas não ouço nenhuma negativa dele, o que me faz imaginar que elas existiram antes do nosso encontro. 
    Ela está obstinada, cita uma lista de nomes de pessoas que ambos conhecem e que estarão no lugar que ela me faz pensar ser idílico. Música boa, conversas boas, bebidas boas, paisagem bonita, danças e jogos, quem se recusaria? Ele.
    O figurino expansivo dela, o seu perfume marcante, o cabelo desafiadoramente vermelho, a sua voz grave e a determinação em convencê-lo não parecem novos. Ele não se irrita, não responde que não, mas não parece que vai ceder.
 
    Sob a luz amarela e uma aura vermelha ao redor da cabeça, ela alveja o caminhante ao seu lado:
    — Você não era assim quando te conheci!
    Ele é uma figura mais espartana, com gestos menos destacados, é magro, alto, calvo e ouço sua voz somente em duas oportunidades. Segue se expressando, sobretudo, silenciosamente, por meio de expressões faciais e gestos comedidos. O barulho é todo dela. São um casal de meia-idade, ao qual atribuo uma relação longeva — mas também posso estar enganada — muito mais pela postura de ambos do que pela idade aparente.
     Além da frase repetida algumas vezes "você não era assim quando eu te conheci", o arroubo dela que não o afasta e a serenidade dele que não a incomoda, me faz pensar que esse é um imbróglio pelo qual já passaram muitas vezes. A questão do debate é a programação do feriado da próxima semana. Ela quer convencê-lo a ir e ele resiste. Mas o que mais detém a minha atenção é a estratégia que ela usa para fazê-lo mudar de ideia; evocar o que ele foi para ela no passado.
 
    Da primeira vez em que ela usou a frase, senti na língua o amargo da melancolia; alguém que não reconhece mais uma escolha antiga. Ele não era assim, ela também não, mas ele não respondeu a ela, como eu esperei. Meu desalento se desfez porque ele sorriu com doçura. Nenhuma mágoa sob o poste de luz amarela.
    Da segunda vez, já foi menos amargo, ela falou em meio a outros argumentos e eu pensei que era mais uma constatação banal como outra qualquer do que uma acusação. Não somos os mesmos, mas ele estava mais mudado para ela e ele pareceu concordar novamente.
    Mas só na terceira vez em que ela repetiu, é que eu pensei que talvez o enunciado fosse mais sobre si do que sobre ele; e que ele soubesse, por isso, sua resiliência. A tragédia era ela não ser quem foi e, então, enxergar nele esse outro.
 
    Ela ainda é expansiva, barulhenta e colorida, ele ainda é elegante, silencioso e pacífico; mas ambos devem ter abandonado outras partes de si para seguirem juntos e sobreviventes. Eles continuam a subir a rua, enquanto eu desço. Ainda os vejo de mãos dadas novamente, o vestido florido e esvoaçante dela, dominado pelo vento, enroscando na perna da calça de linho dele. Ele passa a mão no cabelo dela, afasta do rosto conhecido a ondulação vermelha. Ela esfrega uma das mãos dele entre as suas. Pequenas ternuras no domingo à noite. Eles eram assim quando se conheceram, não completamente, mas o vestido e a calça, o rubro e discrição. 
    Eles não eram assim quando se conheceram, mas se apresentam diariamente à mesa do café.
     
    Até o feriado, terão muitas conversas e convites controversos para se conhecerem de novo.

 




 

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