segunda-feira, 12 de maio de 2025

E é o feixe de luz nas costas do felino que o traz de volta à existência

    A água está no pote, a ração eu acabo de trocar, já abri a porta da varanda e aparei o pequeno trecho de grama da  área onde estendo as roupas, para que fique numa altura ideal para ele afiar as suas unhas. Cuidei da trilha sonora e limpei as angústias no tapete da porta, antes de entrar. 
    No apartamento 201 de um prédio barato numa cidade, que hoje é cinza, inventei o lugar idílico para romper com qualquer sofrimento.
  
    Dei um nome curto a ele, duas sílabas que eu pronuncio suavemente, às vezes ele me olha quando eu o chamo, às vezes continua com o olhar parado para alguma estrela que não posso ver. À ele, invariavelmente, ofereço o que não tive e não sei calcular se recebo o que preciso.
 
    Todos os rituais se expandiram e tornaram-se mais complexos com o passar do anos. São unguentos, regalos e alentos que tentam a cura para uma ferida que não sei onde é. Mas, hoje, nada ainda que o arranque da sua solidão domingueira, de mil manhãs.
    O gato, eu o conheço quase bem, tem dessas maneiras. Às vezes se zanga, às vezes se isola sem nenhuma razão aparente. Não há rotina e afeição que o capture do cativeiro que ele se impõe. Vivemos um dueto dissonante, quando eu ofereço proximidade, ele prefere o isolamento. Quando eu necessito de individualidade, ele invade meu banho, minha cama, minhas páginas com parágrafos iniciados e os meus papéis de razoável importância. 

    Um gato que era para ser breve, repousou ferido no meu tapete, atravessou um corredor de plantas e se apossou da almofada terracota, do colchão de molas, da pia da cozinha, do filtro de barro, que ele abre docemente com uma pata afiada e um pouco torta. Um gato amarelo e levemente estrábico abandonou-se no quarto e sala alugado de um bairro do Centro e parece durar tanto quanto eu jamais imaginei que pudesse, um dia, me suceder.
 
    Depois,  passou a morar nos meus sonhos, no meu ócio, nas minhas dívidas de cartão e dúvidas existenciais, pesquisou minha biblioteca, lambeu as minhas frutas, afundou o meu sofá e eu obedeci a todos os desejos que eu li nos seus sentidos. 
    Preparo a casa para o felino amarelo, desocupo os espaços, podo as plantas nos vasos e o gramado, subo ou abaixo as persianas, deixo mais fresco ou mais quente qualquer ambiente que ele escolha e recolho as pernas para a sua passagem, como se a inquilina fosse eu. Mas nada, nada o resgata do seu torpor resistente.
 
    Então, me afasto. Retomo a vida antes da sua chegada, faço mais barulho, jogo água na cozinha, lavo os pisos e azulejos, falo sozinha, abro portas e bato todas atrás de mim, reclamo do trabalho, das vidas, dos almoços, dos homens e de como as minhas tias me tratavam na infância. 
    Extrapolo, transbordo, sou uma péssima companhia para qualquer um que não seja eu. Gargalho das minhas próprias piadas e procrastino o trabalho mais simples.
    Esqueço a água fervendo no fogão ligado, esqueço de pagar uma conta, de comprar o leite e de me mover sem incomodar. É quando o gato, finalmente, me encara.
 
    Logo ele que não negocia, não aceita prendas, favores, tampouco as conveniências que regam a sua sobrevivência diária, ele que não suspira pelos afagos e persianas suspensas, mas quando me vê, desinquieta e irascível, renuncia o seu altar e me acompanha até a varanda, que eu lavei para ele se deitar.
     Ele toma um lugar ao meu lado, e um feixe de luz alcança suas costas flexíveis e alongadas, o gato se sente novamente conectado à existência de todos os felinos da sua árvore genealógica: se estica, solta um miado e encara o futuro do outro lado do gramado. Eu também me alongo e não medito; ele é o meu espelho nesses dias. Estamos salvos desse domingo.

 



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