domingo, 29 de maio de 2016

Não conte a ninguém

   Casa antiga de muro baixo, varanda contornada por desenhos,  teto alto, portão baixo, a mesma casa de dezenas de desenhos, nunca aprendeu a fazer outra. A casa. A casinha rosa e branca que fazia de conta ser sua. Abre o portão pela primeira vez, afasta o chinelo esquecido na entrada, um único pé azul de borracha e tiras. Passa pelo sofá com almofadas de crochê, tapete esticado,  contorna a mesa de centro com o cuidado de um visitante de museu. É a primeira vez dentro da casa dos sonhos. Passa pelo corredor com os pés de passarinho, nada vai sair do lugar. Vai ser comportada, obediente, prometeu a mãe que seria.

  Na cozinha alguém joga cartas e outro alguém prepara um bolo. Primeiro, senta-se, mas logo fica à vontade para sair do banco e ir ver lá fora, depois da porta da cozinha. Da escada, vê um quintal, rodeado por arbustos, roseiras com rosas amarelas e vermelhas, é a primeira vez que vê rosas amarelas. No centro do terreno dois canteiros verdes, cheiro de manjericão - que nunca tinha sentido, mas o cheiro ficou e só na vida adulta pode dar nome ao verde que conheceu neste dia - e hortelã. Pega a vassoura encostada na porta e começa a varrer as escadas, o personagem agora é completo: na casa dela, na escada dela, a vassoura e os cuidados dela. O quintal é lindo, o cheiro é fresco, vai explorar sem pressa cada canto, lembrou da vassoura nas mãos e foi devolvê-la -  não pode mexer em nada, lembra? Agora, do outro lado, pode ver a porta de onde saiu, parece pequena e tem bebedouros de beija-flor pendurados no portal. Se tiver sorte vai ver os beija-flores. Fica algumas horas na sua floresta particular, achou um pedaço de tijolo e já desenhou algumas estrelas no chão, no cimento entre os canteiros,  aprendeu há alguns dias com o irmão mais velho - um triângulo para cima e outro para baixo, um dentro do outro. Tenta apagar, com batidinhas do chinelo, os vestígios da sua arte, porque podem não gostar das estrelas ali. Mas são bonitas as estrelas e desiste de apagá-las por completo. Afinal, tanto trabalho e agora desperdiçar?

  Alguém chama a menina, ela corre até à porta.
- Quer bolo?
  Querer até quer, porque gosta muito de bolo, mas não sabe se pode querer. Tem vergonha de incomodar, a mãe pediu que não incomodasse. Entendem seu pudor e arrumam um pedaço do bolo morno num pratinho branco com desenhos azuis. Nunca comeu bolo em prato de louça. Em casa, o pedaço de bolo precisa caber nas mãos e nas festas de aniversário, o pratinho é de plástico, nas melhores, ou vem no guardanapo de papel.  Cuida para o prato não cair, está apoiada numa mesa alta demais e os pés não alcançam o chão, que olha fixamente, tem vergonha de olhar nos rostos de desconhecidos, o piso é vermelho, brilhante.

  Acaba o pedaço de bolo. Agradece. Recusa a repetição. Querer até queria, mas acha que não deve querer. Pede para voltar ao quintal, mas antes oferecem uma caixa de papelão gigantesca, agora no meio da cozinha, entende que não deve sair, mas brincar com a caixa ofertada. Entra e sai da caixa dezenas de vezes, a brincadeira é divertida. A caixa-casa, a caixa-nave, a caixa-navio, a caixa-trem e por último, a caixa-túnel. Atravessa o túnel e no final dele, mãos a surpreendem na saída. Susto, o choro chega na garganta.

- Quietinha, menina. Olha, como é boazinha.

  O braço dói, o corredor está com a luz apagada, uma porta abre, o guarda-roupa é de madeira muito escura. Medo, minha mãe. Medo. Quer chorar, mas o choro não sai, quer gritar, mas não vem um grito. Quer as estrelas lá fora, mas elas já devem estar muito claras, se não apagadas. Não pode estragar a roupa, não pode desobedecer. Não quer mais a casa, quer embora e não lembrar do quintal. Não deveria ter aceitado o bolo. Nunca mais deveria ter saído da caixa. Por que o túnel, mãe? Devia ser só casa. Olha para o guarda-roupa odeia o móvel escuro. Odeia. Choro sem lágrima. As cartas devem estar na mesa da cozinha, podia ter pedido para deixarem ela lavar o prato. Só quer que acabe tudo. Acabou. Não. Não acaba nunca.
- Não vai contar a ninguém, viu?
A frase era dispensável. Não conta. A voz morreu.

  A mão a devolve ao corredor, o choro seco começa a molhar a blusa. Volta para cozinha de piso vermelho, senta no banco e espera que alguém no mundo possa tirá-la da casa branca e rosa. Recusa outro pedaço de bolo, não quer a caixa de papelão. Desamassa a saia branca de bolas azuis e não vai incomodar ninguém nunca mais.

- Que gracinha. Parece até uma boneca de tão linda e obediente.
A outra voz.

  Se não contar, ninguém vai saber e nunca terá acontecido. Vai achar que foi sonho, vai fingir que é história que viu na TV, que nunca aconteceu, de verdade. Se ficar invisível, nunca terá sido o que foi. Se não contar, a casa pode nunca mais aparecer num desenho seu e poderá esquecer das rosas amarelas, que nunca tinha visto. Os beija-flores não vieram, não teve sorte. Odeia caixas grandes de papelão, móveis escuros e evita os túneis.

  Tenta proteger alguém que a ama de uma dor que acha ser capaz de fazer menor se for só dela. Esconde a cena do final do túnel, não conta nada a ninguém e não é por medo da ameaça. Não conta, porque se ninguém mais souber, a sua memória será a única a ter cada cena. Espera muito que um dia, como as estrelas que desenhou no cimento entre os canteiros, sejam, finalmente, completamente apagadas. De vez em quando, dá batidinhas nas cenas ruins de um dia de setembro para elas irem se desfazendo com mais rapidez.

- Desculpa mãe, eu comi o bolo que colocaram no prato de louça para mim. Eu não quebrei o prato, mãe, mas eu comi o bolo. Nunca contou nada. O bolo era mais um segredo.
-  Se não falar que comi, o bolo talvez desapareça.
Achou.

  Mais uma notícia ruim, mais uma história triste de alguém que não conhece invade a vida dela e outras tantas ainda virão. Quando isto acontece, o que não contou, volta com a força do pedaço do tijolo no chão. Um triângulo de cabeça para baixo e outro para cima, um dentro do outro. Sabe fazer estrelas como ninguém!Queria que tivesse acabado tudo antes de ir para o corredor.  Mas não acaba. Não acaba nunca.



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