quarta-feira, 1 de junho de 2016

Desocupada. Desde muito antes de saberem de mim.

  Pode não durar. Pode não passar de hoje. Pode, até mesmo, nem ir além deste minuto último desde a resolução. Possivelmente não é o fim de nada, sei. Mesmo que eu quisesse. Os fins acontecem sem serem postos; colocar um fim é só o desejo dele, porque a linha tem continuação própria, para além das mãos, segue o curso do seu próprio comprimento e não obedece aquele que a segura. Mas é vontade nova, resolução que parece mudar a vida de rumo, que faz nascer outras possibilidades de novas linhas.

  Já desmarcou três vezes nestes últimos dias, já me deixou esperando no lugar do encontro sem avisos, já mandou minutos antes uma mensagem - tarde demais para eu não ir - já escreveu bilhete e deixou com o porteiro, já me mandou flores com pedido de desculpas e já, até, não me deixou esperando, mesmo com a data marcada, porque acostumada às mudanças de planos, nem me movi, sabia que não viria de novo. Agora me chama ao telefone, não vou atender, diferente de todas as outras vezes.

  Porque sou eu a que responde na hora, que não deixa suspense; sou eu a que não gosta de jogos, que está mesmo sempre disponível, sem disfarce, sem escudo, sou a que sai em campo aberto sob a ameaça de bombas, tiros ou chuva de papel. Sou eu quem digita a primeira letra, logo depois da última que você me envia na mensagem. Sou eu quem não espera o telefone tocar três vezes, antes de atender; sou eu quem não espera o outro dia para responder ao email. Sou a desocupada do mundo que se ocupa sempre de quem me chama. Sou  a primeira da chamada, que nunca precisa de uma segunda vez nem voz - presente, professor!

  Mas hoje quis experimentar estar ocupada, nada de retaliação, de fazê-lo sentir-se mal pelas respostas demoradas, pelos encontros desmarcados. Quis fazer parte deste mundo que demora a ouvir, que protela respostas, que não atende, que não espera, mas deixa esperando. Deixei-o chamando até a ligação cair. Deixei que experimentasse, ao menos uma vez, o chamado com eco. Depois desci e fui até a minha própria portaria e deixei recado, caso alguém me procurasse respondesse que não estava. Não menti, não estava mesmo, onde sempre fico. Viajei.

  Ocupei-me dos chamados de dentro. No banheiro, cortei as pontas do cabelo, eu mesma, sem ter que esperar o cabeleireiro me atender, sem entender os quinze ou vinte minutos do atraso da sua tesoura. Guardei o telefone na gaveta e desliguei a internet. Escolhi as músicas que há muito eu não ouvia inteiras, sem interrupções, e cantei junto. Limpei a pia dos restos de cabelos e estendi os cuidados à casa. Limpei janelas, persianas, chão, móveis, paredes. Fiz meu almoço, na hora que a fome pediu, nada de meio dia em ponto. Não respondi emails, não fui ao banco, não conferi o extratos, nem atendi ao interfone. O homem do gás falou sozinho, a correspondência ficou na portaria, testemunhas de Jeová chamaram três vezes e foram embora, o síndico, a vizinha, o chefe, a professora,  amigos, todos experimentaram um pouco da minha ocupação inesperada.

   Ocupada com os armários, com a louça, com as leituras paradas e uma nova começada. Ocupada com um álbum ainda não ouvido, com o artigo que salvei nos arquivos no ano passado. Ocupada com as minhas escolhas, com  a perseguição às rodas dos carros e das bicicletas, latindo, correndo atrás sem nunca alcançar. Ocupada com as minhas próprias histórias, os demônios todos, os anjos que são meus e eu nunca faço um pedido, olhando nos seus olhos. Ocupada, desocupando o que eu não quero mais vestir, nem roupa nem sentimento, com as esperas que não quero mais e para as que ainda serão inevitáveis, me alimentando de paciência. Ocupada com os mantras, os incensos, com os lugares que quero livres para receber o novo. Ocupadíssima com a minha desocupação, despreocupação e desobediência. Ocupei sozinha os meus espaços vazios.

  E depois de um dia inteiro de compromissos urgentes e ensimesmados, vou me ocupar de um jantar, de uma conversa mais intima com o gato, com as marcações nos livros e com as estrelas, elas são meu compromisso final da noite, sem anotação na agenda, sem espera; nós. Amanhã talvez, eu volte a ser a desocupada de sempre,  a de muito antes de saberem de mim, sem remorso, sem culpa. Mas é que hoje, o dia foi mesmo muito cheio de grandes ocupações. Das inadiáveis decisões de vida. Decorei a letra da música que agora é a minha favorita; salvei a minha alma, tenho achado. Os anjos e demônios parecem concordar com a linha que acabo de estender no labirinto, se vai ser só mais um caminho ou meu encontro, ainda é muito cedo para saber. Outro dia me ocupo de uma possibilidade de resposta.





2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Querida Amanda,

Nesta carta de hoje navegarei em águas turvas - a força dos outros sobre nós.

Sempre doce, sob o foco feminino (fantástico). Há neste universo feminino, que percebo ser muito maior do que o nosso, uma ação meiga, sensual e dura, em concomitância.
Sei que não será fácil aqui uma correlação, afinal a protagonista isolou-se como se isolavam os loucos, segundo Foucault. Havia até uma receita de conduta para isto:

1 Assegurar sua segurança pessoal e de sua família;
2 Libertá-los das influências pessoais;
3 Submetê-los à força a um regime ;
4 Impor-lhes novos hábitos intelectuais e morais;

Então, seria o isolamento, a priori, um desejo pessoal ou uma condução coercitiva (palavra em moda na atual circunstância política da pátria amada tupy-guarany) invisível aos olhos e ao coração?

É isto. Hoje estou só buscando respostas, então nada de textos prolixos - será que tudo que fazemos pelo livre arbítrio, entre anjos e demônios, é do nosso livre desejo que o fazemos? Ou há sempre um processo nos empurrando por um labirinto? Não sei,mas hoje tenho estas dúvidas, e ao ler seu texto, elas quase sedimentaram.

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Caro Paulo, a carta de fato, não foi das maiores (toda vez que me sento aqui para ler suas participações, já me preparo para as boas voltas - ótimas sempre!). Mas então, trouxeste Foucault...e que bela aproximação! Pois aqui, gostamos muito dele e das suas investigações, entre elas, a tentativa de delimitação, enquadramento, o poder que não compreende, mas subjuga, tenta a todo custo a dominação.

Não sei, Paulo. Não sei até em que lugar as mãos alcançam as costuras, não sei se seguimos mesmo escolhas ou somos um tanto empurrados aos caminhos que achamos que escolhemos. Também sigo sem as respostas. Abraços, amigo!