quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Da jugular ao siso, a dor é de quem sente

   Do tapete da porta de casa ao deserto do Saara, atravessar qualquer um dos dois, às vezes, é difícil às segundas-feiras. Nem tanto pelo calor do dia e frio da noite, nem pelo elevador que  sempre sai enquanto fechamos a porta. Ir para o outro lado é mais difícil quando nada lá parece nos chamar. O tapete gasto da porta, o deserto inóspito do norte da África são transponíveis mais pela resistência física do que pelo desejo, em algumas segundas. O tapete e o deserto só os pés sentem, o coração parte de outra geografia.

  Da caixa  na parede com a frase "em caso de emergência quebre o vidro" às assinaturas para requisitar um visto de permanência num país, tudo tão claro para quem escreve as instruções e tão sem sentido para quem, agora, está diante do vidro, com a frase vermelha ou segurando os papéis que asseguram uma permanência limitada. Queria quebrar o vidro a qualquer hora e chegar ou ir embora de qualquer país quando quisesse. Mas há as emergências e as nacionalidades a serem respeitadas.

  Da primeira memória que se tem da casa da mãe ao último rosto ou objeto antes de fechar os olhos, agora, cada fragmento de imagem que fica, nos constitui um pouco. Mesmo àquelas das quais fugimos, elas também sussurram nos nossos silêncios íntimos.
  Da foto do bebê no álbum da família ao reflexo do adulto insone que escova os dentes, nesta manhã, ambos são as pessoas que habitam o mesmo nome. Ainda que circulem por espaços diferentes por todo o dia, vão para cama juntos no meio da noite, com um feixe de luz aceso para espantar o medo.   
  Em todo nome mora uma comunidade, enquanto um abre a porta, outra dezena varre a varanda, esquenta a água para o café, ensina o filho a resolver os fatos com frações, descansa no quarto e chora no banho por um Eu que não encontra pela casa.

  Da repetição da gota de água na colher dentro da pia à música clássica entoada pelo coral, todo som pode ser a música a acessar um lugar que não conhecíamos: uma saudade adormecida, um sonho negligenciado, um choro represado. E depois da sequência harmônica, uma enxurrada desenterra sonho e saudade, que flutuam, esperando salvação. A saudade segura as pernas do nadador para baixo, os sonhos puxam sua cabeça para a superfície. Algumas horas flutuando em lágrimas, até elas  começarem a secar e o nível dar pé ao quase afogado.
  De uma casa de tijolos sem pintura na periferia mineira ao edifício antigo em Palermo Viejo, ambos podem guardar uma riqueza inestimável, fora dos cofres, visível apenas a quem as tem sem  saber. Porque é na perda que descobrimos o que só é nosso quando já não é mais.

  Do balcão de uma loja de instrumentos musicais ao palco cheio de luzes, os anos passados em um, sonhando com o outro. A duração estendida do provisório que distancia, primeiro, o artista dos aplausos, até não se reconhecer mais em arte.
  Mas todos os dias, em uma nota, em uma venda, em um acorde, em um atendimento a arte circula em volta do artista e o espera na porta, pronta para fugirem para o destino em comum. A arte insiste, mas o balcão da loja ainda tem sido mais forte. A arte, de vestido verde, parada na porta à espera; sem pressa, com os olhos de amante compreensiva e apaixonada.

  Da mão que acende a primeira vela àquela que incendeia um campo, tudo começa por uma pequena faísca; às vezes a medida para o controle é do vento e não da mão, como costumamos achar. Da chama da vela cuidada ao incêndio inesperado no campo; ambos são vida e risco.
  De uma pista de corrida ao longo da orla ao consultório médico, dois tempos, duas durações distintas. Correr nunca foi seu exercício, mas pensar em correr, era. Os joelhos não suportam, antes dos pulmões, o diagnóstico é a perda que avisa que não tem o que já teve sem saber.
É mais difícil enterrar uma ideia morta do que um corpo morto. A insistência da corrida é o apego à ideia do que é correr.

  Da jugular ao siso. A maior dor não é a da partida é ter que ficar com a bagagem pesada com tudo aquilo que não foi. Não dói o amor que vai embora, dói ter que receber de volta tudo aquilo de que o cercamos: boia, piscina, viagem internacional, dois filhos, o voo, o ócio de domingo, as massas al dente, as fotos no provador da loja, os elogios no meio da tarde, a cumplicidade da piada do outro lado da mesa.
  Da jugular ao siso, a dor é mesmo de quem sente; parece matar, alguns dias, mas pode ser só uma extração simples. Gelo, sorvete, gelatina e analgésico no caso de dor. Três dias e tudo acabado; o sangue nem chegou a manchar a camisa.




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais em chucas de 18 de setembro de 2018

Querida Amanda
Potencializadora do sentido da vida

Serei breve, ou não, nunca se sabe. O que é o tempo? Aqui nesta prosa há o espaço da dor que atravessa a vida. Você, meio bruxa, meio visionária, vai tecendo a rede com a qual nós outros, mortais apedeutas vamos aprendendo a encontrar o fio da meada.

na hora que você designa a ambientação do eu-dor no mundo dentro de um espaço físico razoavelmente tangível e atemporal, explicita que a dor mata o sentido da vida. Perdoemos nossos pecados, traumas, fracassos, erros e amores crassos e assim nos conduziremos ao Monte Olimpo do gozo eterno.

Tenho vindo aqui sempre rapidamente, tenho não ido ao reino, o tempo ... o tempo ... o tempo chronos do tic-tac tic-tac é tenso e perverso. É isto aí!

Um abraço

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, dezenove de setembro, do demasiado confuso 2018

Querido Paulo,
o leitor generoso dos tempos urgentes

Compreendo, meu caro, perfeitamente as requisições cotidianas, sempre nos pedindo mais e em menor tempo...embora sinta sua ausência aqui e no vosso Reino, é completamente compreensível.

Sim, Paulo, a dor atravessando os caminhos e amargando o que poderia ser mais doce. Perdoemos, perdoemos sempre, mesmo que o Olimpo não seja nosso nunca e o gozo eterno tampouco.

Grata pela visita, ainda que rápida, é um privilégio!
Abraços,
Ótima semana