Abandonou as hastes consoladoras de fogo quando um amor pediu, quando um amor quis muito que a vida de ambos se estendesse, já que não infinitamente, até quando pudessem. Parou de fumar quando pensou que se poupasse o dinheiro gasto com cigarros poderia investir em um sonho; seu, de alguém a quem quisesse bem ou ainda nem sonhado.
Deixou de aspirar a fumaça do cinema noir quando ser o personagem pareceu menos interessante do que o roteirista. Nunca mais fumou porque não.
Acordou antes das seis da manhã, colocou a roupa de banho com estampa de via láctea, a única do seu tamanho na loja em que comprou no dia anterior, checou se não tinha se esquecido de colocar a toalha de banho e os chinelos de borracha na mochila, que também era nova, e foi para a sua primeira aula de natação, aos cinquenta e sete anos passados em firmeza de solo.
Foi aprender a nadar porque a fisioterapeuta recomendou uma atividade de baixo impacto depois que ele operou o joelho. Foi para a aula de natação para respirar melhor e, para isso, dormir mais profundamente e se sentir menos exausto no meio da tarde.
Decidiu entrar numa piscina coletiva numa manhã de inverno porque ainda quer atravessar o Estreito de Gibraltar, o Canal da Mancha a braçadas ou só terminar algumas dezenas de voltas na piscina da qual está diante agora, sob os olhos de desconhecidos, quando nunca gostou de ser visto pouco vestido. Resolveu aprender a nadar porque sim.
Não é poesia. As frases enfileiradas, dispostas uma abaixo da outra, imitando os versos de um soneto, não fazem a poesia. As palavras individualmente tão bonitas, se espetam uma na outra quando postas lado a lado, geometricamente diferentes não fazem um desenho; são fragmentos de imagens que não ultrapassam o papel, a tela. Mudas e sem braços, as sequências de palavras morrem frias, sem nunca alcançarem ninguém. Ou não têm caminhos inesperados suficientes ou não têm sons que reverberam no oco, que precisa de mais e mais poesia.
Nunca foi poema porque não balançava cortinas, não fazia as pernas ficarem mais leves, o coração sobrecarregado com as batidas, os poros, pelos, os ais nos suspiros que transbordassem alguma coisa da qual não se sabe o nome.
Não é uma poesia porque não é bílis, suor, lágrimas, sangue, não é o desassossego e entrega completa à palavra, em detrimento aos sentidos e sentimentos. Não é um poema, porque poesia é um tabuleiro de xadrez cujas duas mãos do poeta são adversários e autores, numa mesma jogada. Nunca chegou a ser poesia porque não.
Amou porque a fazia sorrir muitas vezes mais do que derramar lágrimas; porque os pensamentos ao longo do dia eram mais felizes do que angustiantes. Amou porque foi correspondida, porque também despertava sorrisos e memórias alegres; amou porque gostavam dos mesmos livros, porque tinham esperanças um no outro, em si mesmos e no mundo desconhecido, ainda, para ambos. Porque eram contra e a favor de uma série de coisas e o que em ambas as listas não coincidiam não feria um certo consenso entre eles. Por exemplo: um gostava de pimenta e outro não, era fácil de resolver a questão pedindo pratos diferentes. Um era contra a pena de morte e o outro também; caso contrário seria difícil o amor não estar condenado.
Amou porque estavam completos, mas não saturados; porque andavam muito, mas não estavam fatigados de estrada, porque se desconheciam algumas horas do dia, mas se descobriam muitas vezes em outras. Amou pela covinha no queixo, pela cicatriz sob a sobrancelha, pela orelha pontuda que era a mais bonita e fria, que a sua mão podia tocar e tentar aquecer. Amou pelos pães franceses esquentados na chapa e pelas xícaras sujas em cima da pia. Amou porque sim.
Nunca leu um manual, apostila, livro de técnica específica da linguagem com a qual se comunica com o mundo. Não participa de cursos, seminários, imersões em grupo ou jornadas de escritas criativas, mas o que faz, ninguém duvida, é poesia.
Não tenta, não se autointitula poeta, não reivindica reconhecimentos, só retira a palavra do vazio escuro e a apresenta à claridade de um outro mundo. Com as mãos firmes e delicadas de um joalheiro ele faz os partos mais difíceis.
Não conta rimas, métricas, quantas figuras de linguagem é capaz de fazer caber num texto, não se inscreve em academias de imortais, não tenta conquistar leitores amansando frases com advérbios e nem enjoa a amada com os seus poemas doces demais para o paladar dela. Mas o que ele faz é poesia, são poemas porque sim.
Foi embora. Não amou porque não chegou na hora certa, porque a cama era de solteiro, porque o trem atrasou. Não amou porque ele implicou com a altura da bainha do seu vestido, porque ele disse que homem era assim mesmo, porque ela não aceita o assim mesmo para nada, desde pequena. Não pode amar porque ele gostava de zoológicos e ela não, porque ele não gostava do Al Pacino e ela sim, porque a pisada dele era pronada, ela notou .
Não ficou porque ele guardava a garrafa de água vazia na geladeira sempre, porque ele não lavava a louça suja se ela não pedisse, porque os filhos e os cães só eram dele nas tardes de sábado.
Foi embora porque ele tinha a língua presa e não sabia mentir, mas tentava sempre. Não amou porque não.
Uma lista de itens explicam um começo, uma disponibilidade, uma chance ou trégua. Um inventário muito bem pensado, escrito com cautela e objetividade, pode descortinar um desejo, uma escolha, uma coreografia sincronizada de um passo que diz "sim" e de outro que responde "com certeza". Mas a razão única de um começo é somente o porque sim.
Um repertório de defeitos, de inconsistências, de desconformidades ajuda a esclarecer a partida para quem fica e não entende o abandono. Um memorial de confrontos pormenorizado tenta responder à amiga que pergunta: por que não? Mas um fim ou um não-começo é ele mesmo a única justificativa.
- Porque não.
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