domingo, 16 de setembro de 2018

Já vai ela

- Já vai ela.
  Não foi um grito, mas também não era sussurro, senão não me alcançaria. No intervalo entre o final
de uma música e o começo de outra, a voz me colocou, de novo, com os pés na rua. Porque na caminhada diária de quarenta e cinco minutos, só vejo meus pés no chão por apenas dois, outros oito eu divido entre faixas de pedestre, semáforos e os caminhos entre os carrinhos de compras em frente ao mercado. Tenho trinta e cinco minutos de uma viagem suspensa, entre prédios, pássaros, folhas de árvores e flores de ipês na calçada,  baldes ou jatos de água que escapam das sacadas, rostos novos e os conhecidos, esses com os quais troco cumprimentos e sinto suas ausências, quando mudam de itinerário ou desistem da rotina do exercício.
  Tenho trinta e cinco minutos de conversas ou silêncios interiores que não doem, não saem à janela, não atendem ao telefone, não decoram o CPF ou se lembram de procurar o título de eleitor. Tenho minutos diários em que escapo da maternidade se sim ou se não, da dívida com o banco e do último exame médico; só a dor de dente, se for o caso, é inevitável nesses minutos

- Já vai ela.
  A voz me anuncia a mim. Sim, sou eu quem passo. Sim, sou eu quem já vou. Sim, sou eu a ela do enunciado. Calça de malha justa, boné azul, relógio digital no punho esquerdo e tênis, já bastante gasto, cuja última prestação paga não tem três meses.
  Sei bem o que sou antes da próxima música começar, mas depois da voz, eu deslizo sobre a dúvida. A compulsiva ou a disciplinada dos quarenta e cinco minutos? A calça de malha justa é por que é confortável ou por que escolhe ser mais vulnerável? O boné protege do sol ou inventa invisibilidade? Por que a essa hora na rua? Por que sozinha? Por que todos os dias? Por que na rua?
- E depois não vá reclamar! Não é uma voz de verdade, mas também escuto.
- É o preço que se paga... Ninguém que eu possa ver diz, mas também ouço.
  É que outras vozes que estiveram por aqui há mais tempo, ainda ecoam profundamente, mesmo quando a música é muito alta.

- Já vai ela.
  Eu não sei o quanto ele sabe de mim, além do boné, da calça, do relógio, dos fones e das minhas passadas largadas diárias, às vezes suaves, noutras desesperadas, mas sempre religiosas.
  E eu não sei o nível da nossa proximidade, quero dizer da dele, porque certamente nunca o vi. Quando só um dos lados sabe de algo e o outro é atropelado pela informação de ser visível é um susto, o espanto de estar numa história que eu não escrevi.
  Se ele sabe quantos dias da semana eu venho, se ele sabe a trajetória entre a minha partida e a minha chegada, se ele sabe que eu às vezes abaixo para apertar o cadarço do tênis, se ele sabe que eu passo em frente à casa branca para sentir o cheiro da lavanda no jardim, se ele sabe que eu procuro as duas senhoras da casa verde, com o fusca amarelo na garagem para desejar um bom-dia e, também, receber, se ele sabe que eu sinto muito que o senhor sorridente que usa uma bengala de madeira clara não esteja vindo e que eu desejo que ele não esteja doente de novo, se ele sabe que eu não sei o que ele sabe de mim; eu não sei se ele sabe.

 - Já vai ela.
  Os dois joelhos com cicatrizes, as cinco unhas dos pés vermelhas e a meia, dois números maiores para não ser engolida pelo tênis. A música em modo aleatório, o voo descuidado de plateia, os minutos em que os pés não reconhecem o chão, a nebulosidade do dia, a chuva que caiu a noite inteira e ameaça recomeçar.
  Eu voava, ouvia música, mas não terminei de atravessar a rua sem ouvir a declaração de que eu ia, mas principalmente de que eu era vista e interpelada sobre a minha existência.
A ela, que ele disse, sou eu. A ela que vai não fica. A ela que já vai é porque está adiantada, apressada ou abandona sempre.

- Já vai ela.
  Sou eu, mas também a Maria Capitolina Santiago e a desconfiança da traição, porque tinha olhos bonitos ou porque era só mulher. Era a minha surpresa pela voz, mas também os olhos de Desdêmona esganada pela desconfiança. Era a minha camiseta cinza surrada, de quase dez anos, mas também a moça descabelada de blusa azul, passeando com um cão que não a entende.
  Sou eu e minha irmã, sozinha, arrumando a mala, fechando a porta da desistência e chamando um táxi para a liberdade. Sou eu e a minha amiga, em além mar, com o sonho em uma das mãos e o coração partido na outra, com medo e gargalhando, com coragem e chorando. Sou eu e a moça que trabalha no salão, que me ofereceu um desenho nas sobrancelhas, só porque eu a ensinei a usar a máquina do estacionamento e que não foi trabalhar na terça-feira e que nunca mais irá.

- Já vai ela.
   A voz que rompe a estabilidade dos meus fones de ouvido, atravessa a minha história e me faz aterrissar na dúvida, não é tão clara com o tom quanto foi com a sequência de palavras. O que quer que ela tenha desejado dizer, me trouxe ao chão pelos vinte minutos finais.
  Às vezes eu tento não ouvir a voz, mas mesmo que a música tocasse mais alta, ela ainda estaria lá. São muitos séculos antes de mim, de onde ela fala. Por isso que desistir dos tênis e dos voos não é uma possibilidade, temos muitos séculos para calar.
  Olho para os meus pés por mais minutos do que estou acostumada; às vezes, estar ao chão é só o tempo da decolagem.

- Já vou sim. Sempre vou.
  Viro a última esquina e voz não me abandona, mas não me assusta, prende ou limita. A única frase é a senha; escuto o último clique do cadeado, já não caminho com medo de ser vista. Tenho dois minutos de pés cravados diariamente ao chão e são o bastante para que meus tênis não durem mais do que um semestre. Voar não nos salva da dor de dente, de algumas vozes e de ter que comprar tênis novos duas vezes ao ano; ainda assim, com trinta cinco minutos eu posso atravessar o mundo e desafiar as vozes seculares.




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