Já gritou amor, o muro. Uma vez foi para uma vizinha que morou no apartamento de cima; o nome dela em caixa alta e o "amar como eu amo ninguém mais". Durante três semanas, eu lia frase colocando a vírgula, que supus faltar. "Amar como eu amo, ninguém mais", o muro gritou para a vizinha que se ofereceu para pagar a tinta para calarem o muro. Ela tinha um namorado e ele não tinha escrito a frase; brigaram por três semanas e ele mesmo pintou o muro da casa da frente. Com o muro calado, de novo, nunca mais brigaram. Num outro grito apaixonado, o muro não especificou o destinatário, a vizinha já tinha se mudado. Era só o trecho de uma música muito popular; eu já nem lia, cantava a frase e o resto da música até virar a esquina. Imaginava que era uma mensagem secreta, cujo alvo sabia que era para ele. Essa durou bem mais tempo, sem a indiscrição de um nome, sem ofensas, a frase foi apagada quase um ano depois. O muro ficou branco, de novo.
Pintam de branco o muro, hoje. Cobrem de tinta a violência, que estampada, durou menos de doze horas, e tentam apagar o símbolo lamentável da nossa história, que quanto mais distante, parece latejar mais em alguns; é muito melhor que doa do que deixemos que ele volte.
Acostumamos com as frases desconexas, com as declarações passionais, os seus imbróglios e segredos, conformamos com os desenhos, os protestos, os símbolos e siglas que nem conhecemos, cantamos, inclusive, a música do repertório de um casal secreto, mas não nos habituamos, ainda, às ameaças de violarem qualquer vida. A tinta branca, agora, tenta calar o que nos envergonha ouvir. Três ou quatro demãos de tinta podem salvar os nossos olhos da brutalidade em muro branco, de novo.
Talvez o mesmo homem pintará as paredes de um apartamento antigo e as do novo também. Pinta de branco aquilo do qual deseja se esquecer e também o que queria que acontecesse e não se deu, passará uma demão de tinta nas expectativas que falharam, nos sonhos que escaparam das mãos e nos deixaram órfãs e sem filhos. Comprar um galão de tinta branca e despejar sobre os erros, as escolhas que teimaram em nos desiludir.
Talvez o homem possa salvar a rua das frases ameaçadoras, da ignorância histórica, da demência política instalada sobre nós. Talvez ele salve o bairro todo com galões de tinta, rolos, pincéis e a escada que não terá tempo de emperrar. Ou mesmo salve a cidade, ele e outros vários pintores e outros tantos litros de tinta. Pintarão de branco cada absurdo impresso por um spray que não tem culpa. Nossos muros podem ser melhores, senão brancos mais românticos ou malucos.
E se pintasse de branco o meu rosto, como as gueixas e desenhasse uma bonita boca, vermelha boca em formato de coração? Se eu pintasse de branco as minhas pintas, as sardas, apagasse as marcas de sol e nascença, de praia e família, deixasse mais suave o rosto, sem as marcas dos anos e das duras vergonhas que eu tenho visto, ouvido e sentido?
Se eu forjasse novas expressões, realçasse algumas partes e ocultasse outras, inventasse ser alguém que nunca leu a frase da manhã de hoje? Se eu pintasse de branco a minha memória; não toda ela, mas as partes escritas do muro que não me fazem cantar até eu virar a esquina?
E se a tinta cobrisse as janelas e fôssemos dormir e acordar sem poder ver os muros? E se os olhos de quem as frases machucam, fossem levemente cobertos por uma camada fina de tinta branca? Mas quanto perderíamos.
Podia pintar o papel com a poesia e não com a tinta, pintar de branco os cabelos da jovem e ela amadurecia no instante seguinte, sem os erros muito repetidos e as angústias da inexperiência. Podia pintar de castanho os cabelos da velha e ela repetiria muitos erros bons de serem cometidos e viveria a surpresa do desconhecimento. Podia pintar de verdade as mentiras que os homens contam e de liberdade as vozes que as mulheres não aprenderam a gritar. Podia tentar, com a tinta, um jeito de sensibilizar por uma via menos dura as violências das madrugadas de terça-feira nesta cidade.
Tentar suavizar com tinta, os discursos enganadores ou os que se promovem como imparciais, que não mentem, mas não dizem nada que mude a rotação da Terra; se, por um segundo, a palavra não puder fazer isso, de nada ela valerá.
Se passasse um rolo de tinta sobre o ódio, a desesperança, todas as formas de intolerância, inclusive a invisibilidade, todas as ofensas ouvidas, vistas, sentidas. Pintasse de branco as nuvens cinzas e depois salpicasse um amarelo nelas, quem sabe assim o dia ficaria mais iluminado?
Pinta de branco o muro, as paredes, as portas, as salas vazias. Pinta de branco os protestos da noite, os amores eternos de três semanas, sem vírgula e um namorado ciumento. Pinta de branco a letra da música que criou um coral no quarteirão, o palavrão da porta do banheiro; pinta de branco a faixa de respeito ao pedestre que os motoristas não veem. Pinta de branco o batente da porta da cozinha com as marcas das alturas dos três filhos. Pinta de branco o rosto e oculta a beleza mais genuína, pinta o cabelo, apaga a juventude e presenteia com a maturidade.
No muro, a tinta ainda está fresca e não importa quantas demãos, a sombra do que era ainda é visível para quem chorou hoje pela manhã. Amanhã há de ser um dia novo, com muros a serem demolidos e não mais pintados.
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