quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Muro branco de tinta lacrimosa

  Cheiro de solvente, barulho de lata, alguém abre uma escada de alumínio na calçada, ela agarra um pouco no começo, mas logo sobem os seus degraus, e é quando a escada se acomoda, de verdade, no chão. Abro o portão e vejo a mão que mergulha o rolo no caldo espesso de tinta branca e a esfrega sobre a primeira letra de uma das palavras, mas ainda não a apaga. A letra fica mais clara, mas continua visível. Pintam o muro da casa da frente de branco, de novo. Há uma dezena de anos que eu vejo o mesmo muro gritar por algumas semanas até virem calá-lo.
   Já gritou amor, o muro. Uma vez foi para uma vizinha que morou no apartamento de cima; o nome dela em caixa alta e o "amar como eu amo ninguém mais". Durante três semanas, eu lia frase colocando a vírgula, que supus faltar. "Amar como eu  amo, ninguém mais", o muro gritou para a vizinha que se ofereceu para pagar a tinta para calarem o muro. Ela tinha um namorado e ele não tinha escrito a frase; brigaram por três semanas e ele mesmo pintou o muro da casa da frente. Com o muro calado, de novo, nunca mais brigaram. Num outro grito apaixonado, o muro não especificou o destinatário, a vizinha já tinha se mudado. Era só o trecho de uma música muito popular; eu já nem lia, cantava a frase e o resto da música até virar a esquina. Imaginava que era uma mensagem secreta, cujo alvo sabia que era para ele. Essa durou bem mais tempo, sem a indiscrição de um nome, sem ofensas, a frase foi apagada quase um ano depois. O muro ficou branco, de novo.
 
  Pintam de branco o muro, hoje. Cobrem de tinta a violência, que estampada, durou menos de doze horas, e tentam apagar o símbolo lamentável da nossa história, que quanto mais distante, parece latejar mais em alguns; é muito melhor que doa do que deixemos que ele volte.
  Acostumamos com as frases desconexas, com as declarações passionais, os seus imbróglios e segredos, conformamos com os desenhos, os protestos, os símbolos e siglas que nem conhecemos, cantamos, inclusive, a música do repertório de um casal secreto, mas não nos habituamos, ainda, às ameaças de violarem qualquer vida. A tinta branca, agora, tenta calar o que nos envergonha ouvir. Três ou quatro demãos de tinta podem salvar os nossos olhos da brutalidade em muro branco, de novo. 

  Talvez o mesmo homem pintará as paredes de um apartamento antigo e as do novo também. Pinta de branco aquilo do qual deseja se esquecer e também o que queria que acontecesse e não se deu, passará uma demão de tinta nas expectativas que falharam, nos sonhos que escaparam das mãos e nos deixaram órfãs e sem filhos. Comprar um galão de tinta branca e despejar sobre os erros, as escolhas que teimaram em nos desiludir.
  Talvez o homem possa salvar a rua das frases ameaçadoras, da ignorância histórica, da demência política instalada sobre nós. Talvez ele salve o bairro todo com galões de tinta, rolos, pincéis e a escada que não terá tempo de emperrar. Ou mesmo salve a cidade, ele e outros vários pintores e outros tantos litros de tinta. Pintarão de branco cada absurdo impresso por um spray que não tem culpa. Nossos muros podem ser melhores, senão brancos mais românticos ou malucos.

 E se pintasse de branco o meu rosto, como as gueixas e desenhasse uma bonita boca, vermelha boca em formato de coração? Se eu pintasse de branco as minhas pintas, as sardas, apagasse as marcas de sol e nascença, de praia e família, deixasse mais suave o rosto, sem as marcas dos anos e das duras vergonhas que eu tenho visto, ouvido e sentido?
  Se eu forjasse novas expressões, realçasse algumas partes e ocultasse outras, inventasse ser alguém que nunca leu a frase da manhã de hoje? Se eu pintasse de branco a minha memória; não toda ela, mas as partes escritas do muro que não me fazem cantar até eu virar a esquina?

  E se a tinta cobrisse as janelas e fôssemos dormir e acordar sem poder ver os muros? E se os olhos de quem as frases machucam, fossem levemente cobertos por uma camada fina de tinta branca? Mas quanto perderíamos. 
  Podia pintar o papel com a poesia e não com a tinta, pintar  de branco os cabelos da jovem e ela amadurecia no instante seguinte, sem os erros muito repetidos e as angústias da inexperiência. Podia pintar de castanho os cabelos da velha e ela repetiria muitos erros bons de serem cometidos e viveria a  surpresa do desconhecimento. Podia pintar de verdade as mentiras que os homens contam e de liberdade as vozes que as mulheres não aprenderam a gritar. Podia tentar, com a tinta, um jeito de sensibilizar por uma via menos dura as violências das madrugadas de terça-feira nesta cidade.

  Tentar suavizar com tinta, os discursos enganadores ou os que se promovem como imparciais, que não mentem, mas não dizem nada que mude a rotação da Terra; se, por um segundo, a palavra não puder fazer isso, de nada ela valerá.
   Se passasse um rolo de tinta sobre o ódio, a desesperança, todas as formas de intolerância, inclusive a invisibilidade,  todas as ofensas ouvidas, vistas, sentidas. Pintasse de branco as nuvens cinzas e depois salpicasse um amarelo nelas, quem sabe assim o dia ficaria mais iluminado?

  Pinta de branco o muro, as paredes, as portas, as salas vazias. Pinta de branco os protestos da noite, os amores eternos de três semanas, sem vírgula e um namorado ciumento. Pinta de branco a letra da música que criou um coral no quarteirão, o palavrão da porta do banheiro; pinta de branco a faixa de respeito ao pedestre que os motoristas não veem. Pinta de branco o batente da porta da cozinha com as marcas das alturas dos três filhos. Pinta de branco o rosto e oculta a beleza mais genuína, pinta  o cabelo, apaga a juventude e presenteia com a maturidade.
  No muro, a tinta ainda está fresca  e não importa quantas demãos, a sombra do que era ainda é visível para quem chorou hoje pela manhã. Amanhã há de ser um dia novo, com muros a serem demolidos e não mais pintados.






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