domingo, 13 de outubro de 2013

Do que eu não posso

   Eu gosto dela. Nos conhecemos há décadas, daquelas amizades tão antigas quanto a própria vida. Vez ou outra, penso que a amizade nasceu antes de nós, outras vezes, duvido da sua existência para o mundo e chego a pensar que talvez ela seja uma criação minha e viva somente dentro de mim. São daquelas relações que já não cabem formalidades e mágoas, já nos odiamos várias vezes ao dia e na mesma proporção nos perdoamos todas elas. Não há distância que nos tenha afastado, minimamente, não há arestas a serem aparadas, tudo se resolve no mesmo instante em que começa; nunca deixamos para amanhã algum o que podemos hoje acertar. Nisto somos tão iguais. 

  Na última semana, ela pareceu-me triste, de uma tristeza mais persistente que o comum, preferi não tocar no assunto. Não sei se por covardia ou na tentativa de não valorizar seu estado. Talvez se não falássemos sobre sua tristeza, ela logo iria embora. A semana passou-se mal para ela e, por isso, para mim também. Vê-la tão desanimada, com os olhos tão distantes e evitando a tudo e a todos, me causava mais que uma simples preocupação, senti-me culpada, responsável; não tanto pelo desânimo, mas por não conseguir fazê-la se apaixonar novamente pelas coisas cotidianas.

  Consciente da responsabilidade que uma amizade requisita, decidi afrontar sua intimidade. Franca, me lancei no terreno da indiscrição, como um guerreiro entra em um campo de batalha, disposto a tudo, em nome da afinidade tão remota que compartilhamos. Seus olhos distantes e frios voltaram-se para mim, mas não tinham o afeto costumeiro, não me desafiavam, não compartilhavam, não estavam abertos para este mundo, só olhavam, me olhavam, muito embora não me enxergasse mais. E bastou um primeiro piscar de olhos, para uma enxurrada quase interminável jorrar deles. Passamos algumas horas sem nos dizermos nada, ela chorando tudo o que podia e eu segurando cada lágrima minha, cada medo meu, calando a revolta pela injustiça que eu assistia (Por que esse sofrimento para uma pessoa tão boa, Deus?), tentando não pensar no futuro, no passado tão promissor ou, pelo menos, tão sonhado por nós. E eu que sempre fui o lado mais fraco, agora refreava as minhas emoções e equilibrava as dela, barragem recém-construída para suportar as chuvas mais intensas. 

  Depois do choro, do colo, uma voz ainda embargada me confessava o medo, o estranhamento, a busca incessante por algo que talvez não existisse. "Eu não sei continuar", foi a primeira frase que ela me disse. Depois: "Eu não consigo entrar nas coisas que eu sei que se acabarão antes do fim." e, finalmente, "Eu não quero me comprometer com aquilo que eu não sou". Eu a entendia em cada frase desassossegada, em cada soluço depois do desabafo, eu poderia ter dito cada uma daquelas frases. Mais tarde, em casa, enquanto eu repassava na memória cada lance daquele encontro, eu ainda delirei: e se aquelas palavras fossem minhas? E se ela tivesse aprendido-as comigo? E se eu tivesse dado voz a minha amiga inventada? Também não invento paixão onde não existe. Ou é ou não é. Não me entrego para coisa pouca, cuja passagem não me afetará. Sou afetada por coisas que duram até dois segundos, mas que modificarão minha vida para sempre. Eu só aprendi a ser "pra sempre", mesmo mudando tanto. Não correspondo às expectativas, ou supero ou decepciono. Não conto com ninguém, começando por mim, que falho, desisto e me traio.

  Ontem eu me despedi, temporariamente, da minha amiga mais constante. Alguém considerou-a doente, alguém, além de mim, perscrutou sua alma e achou-a insana; alguém, diferente de mim, não a compreendeu completamente. E a mim, não coube muito além de dar-lhe um beijo, um abraço e desejar-lhe uma recuperação rápida e definitiva. Antes de entrar no carro ela olhou-me demoradamente pediu desculpas e um livro de poesia antigo que compramos juntas no sebo: - Leve-o quando for me visitar. Minha amiga deseja ler poesias e isto bastou-me para ter certeza do seu rápido regresso. Nada pode ser mais restaurador do que palavras, porque elas chegam aonde nem um amigo mais antigo pode ir.




Um comentário:

Carla Machado disse...

"Vê-la tão desanimada, com os olhos tão distantes e evitando a tudo e a todos, me causava mais que uma simples preocupação, senti-me culpada, responsável; não tanto pelo desânimo, mas por não conseguir fazê-la se apaixonar novamente pelas coisas cotidianas."Às vezes é assim que me sinto em relação a você, me culpo, tenho medo, mas sei que você tem as palavras e a vida volta a se animar.