Eles moram a poucos metros de distância um do
outro, uma casa vazia entre eles e a impossibilidade perpétua de trocarem um
olhar; nunca se viram, talvez jamais se vejam. Vidas que se parecem tanto,
afinidades a se perderem de vista, comunicação diária exaustiva e nunca se
viram. São meus vizinhos os dois, são machos, um pequeno, outro grande, um
vira-latas e outro com pedigree. O vira-latas já estava aqui quando cheguei e
era jovem, cheio de vitalidade, malandragem canina, com a legítima
hospitalidade e ousadia dos cães imaturos, adorava-o ver receber sua dona, o
carteiro, o moço da companhia de energia, para cada um, latido e pulos,
muito específicos. Vi-o crescer; e em um cão a vida corre, visivelmente, muito
mais apressada do que para os humanos e nele eu também envelheci; aprendi,
observando Pedro, que nada dura o quanto gostaríamos: a dona que se
casou, partiu e deixo-o morar com um casal de aposentados, estou certa que esta
falta envelheceu-o mais rápido.
Aos poucos, as subidas ao telhado ficaram cada
vez mais espaçadas, as corridinhas mais lentas e os latidos muito mais
controlados e baixos, tornou-se rouco, triste, pesado e mais ocioso, as visitas
tornaram-se menos comemoradas e do meu apartamento, eu sentia a melancolia
aterradora do cão. Tive pena, mas não encontrei remédio.
Permaneceu macambúzio por alguns meses,
aproximou-se da morte, afastou comida e alegria, até chegarem os novos moradores
para uma das casas vazias. A duas casas de Pedro, chegaram gente e um cachorro
grande, caramelo, labrador. Conheci-o, assim como a Pedro, somente através do
portão. No dia seguinte a mudança, a voz do cão mais infeliz da minha rua, que
parecia perdida, se soltava da garganta e ganhava meu apartamento outra vez;
ele latia forte da sua varanda e recebia a resposta do recente morador. A
certeza de uma companhia, as respostas para os seus latidos, os frequentes
debates, ouvir uma voz semelhante a sua o rejuvenesceu: ele voltou a subir no
telhado da casa, a galopar feito cavalo pelo quintal, até escorregar no tapete
da porta e levar seus tombos cinematográficos. Da minha janela, eu vi uma
vontade renascer, assisti o que a possibilidade de compartilhar algo era capaz
de fazer com uma vida, percebi o quanto a tristeza de uma solidão rouba-nos os
dias, envelhece, apaga as vontades mais cotidianas, cala as vozes mais bonitas
e soterra, ainda que temporariamente, qualquer paixão.
Desde então, os cães compartilham afinidades,
paisagens, veem todos os dias os mesmo carros e pessoas e, mesmo assim, jamais
se viram. Seus bons donos deram a ambos, um quintal bastante grande, comida,
água e atenção, mas os passeios pela rua ainda não couberam na agenda. Queria
ver um encontro, daqui, torço tanto por encontro, mas, vez ou outra, temo que
os meus vizinhos, como no poema da Florbela, tenham vindo ao mundo para se
verem, mas nunca na vida se encontrem. Tenho pena da separação, lamento pelos
muros e portões de ferro que os mantêm degredados um do outro, sinto pelas duas
criaturas que se completam, mas nunca se veem. Mas, por outro lado, vejo a
beleza de uma relação que existe mesmo sem olhares, nem cheiro, mantém-se,
sobretudo, pela voz e vontade. Meus vizinhos nunca se viram, mas é como se
vivessem um para o outro.
O que nos mantêm degredados no mundo, aprisionados pelo cadeado invisível da solidão não são os olhares com os quais não cruzamos, o abraço que não recebemos, tampouco o cheiro que não sentimos: uma solidão existe quando uma voz pergunta e a resposta não chega, quando falamos o que ninguém ouve e os nossos olhos veem o que ninguém mais vê. Nisto cachorro e gente têm em comum, uma voz precisa saber que é escutada, compreendida. Não há paixão sem partilha; entre os muros, dois cachorros sabem bem disto.
2 comentários:
Nós somos aquilo que somos e sabemos e aquilo que não somos, não sabemos e aquilo que não conhecemos, tudo isso nos define.
gostei muito deste teu texto, muito certeiro.
Em relação ao livro Mortal e Rosa, andei a pesquisar e nunca chegou a ser editado no Brasil. Se quiseres um em Português de Portugal, eu posso enviar-te. beijo
Obrigada Ana! Tentarei o livro por aqui, caso não consiga peço para me fazer o favor de mandá-lo. Beijo
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