segunda-feira, 31 de março de 2014

Degredados

  Eles moram a poucos metros de distância um do outro, uma casa vazia entre eles e a impossibilidade perpétua de trocarem um olhar; nunca se viram, talvez jamais se vejam. Vidas que se parecem tanto, afinidades a se perderem de vista, comunicação diária exaustiva e nunca se viram. São meus vizinhos os dois, são machos, um pequeno, outro grande, um vira-latas e outro com pedigree. O vira-latas já estava aqui quando cheguei e era jovem, cheio de vitalidade, malandragem canina, com a legítima hospitalidade e ousadia dos cães imaturos, adorava-o ver receber sua dona, o carteiro, o moço da companhia de energia, para cada um,  latido e pulos, muito específicos. Vi-o crescer; e em um cão a vida corre, visivelmente, muito mais apressada do que para os humanos e nele eu também envelheci; aprendi, observando Pedro,  que nada dura o quanto gostaríamos: a dona que se casou, partiu e deixo-o morar com um casal de aposentados, estou certa que esta falta envelheceu-o mais rápido.
  Aos poucos, as subidas ao telhado ficaram cada vez mais espaçadas, as corridinhas mais lentas e os latidos muito mais controlados e baixos, tornou-se rouco, triste, pesado e mais ocioso, as visitas tornaram-se menos comemoradas e do meu apartamento, eu sentia a melancolia aterradora do cão. Tive pena, mas não encontrei remédio.

  Permaneceu macambúzio por alguns meses, aproximou-se da morte, afastou comida e alegria, até chegarem os novos moradores para uma das casas vazias. A duas casas de Pedro, chegaram gente e um cachorro grande, caramelo, labrador. Conheci-o, assim como a Pedro, somente através do portão. No dia seguinte a mudança, a voz do cão mais infeliz da minha rua, que parecia perdida, se soltava da garganta e ganhava meu apartamento outra vez; ele latia forte da sua varanda e recebia a resposta do recente morador. A certeza de uma companhia, as respostas para os seus latidos, os frequentes debates, ouvir uma voz semelhante a sua o rejuvenesceu: ele voltou a subir no telhado da casa, a galopar feito cavalo pelo quintal, até escorregar no tapete da porta e levar seus tombos cinematográficos. Da minha janela, eu vi uma vontade renascer, assisti o que a possibilidade de compartilhar algo era capaz de fazer com uma vida, percebi o quanto a tristeza de uma solidão rouba-nos os dias, envelhece, apaga as vontades mais cotidianas, cala as vozes mais bonitas e soterra, ainda que temporariamente, qualquer paixão.

  Desde então, os cães compartilham afinidades, paisagens, veem todos os dias os mesmo carros e pessoas e, mesmo assim, jamais se viram. Seus bons donos deram a ambos, um quintal bastante grande, comida, água e atenção, mas os passeios pela rua ainda não couberam na agenda. Queria ver um encontro, daqui, torço tanto por encontro, mas, vez ou outra, temo que os meus vizinhos, como no poema da Florbela, tenham vindo ao mundo para se verem, mas nunca na vida se encontrem. Tenho pena da separação, lamento pelos muros e portões de ferro que os mantêm degredados um do outro, sinto pelas duas criaturas que se completam, mas nunca se veem. Mas, por outro lado, vejo a beleza de uma relação que existe mesmo sem olhares, nem cheiro, mantém-se, sobretudo, pela voz e vontade. Meus vizinhos nunca se viram, mas é como se vivessem um para o outro. 

  O que nos mantêm degredados no mundo, aprisionados pelo cadeado invisível da solidão não são os olhares com os quais não cruzamos, o abraço que não recebemos, tampouco o cheiro que não sentimos: uma solidão existe quando uma voz pergunta e a resposta não chega, quando falamos o que ninguém ouve e os nossos olhos veem o que ninguém mais vê. Nisto cachorro e gente têm em comum, uma voz precisa saber que é escutada, compreendida. Não há paixão sem partilha; entre os muros, dois cachorros sabem bem disto. 



2 comentários:

Ana disse...

Nós somos aquilo que somos e sabemos e aquilo que não somos, não sabemos e aquilo que não conhecemos, tudo isso nos define.
gostei muito deste teu texto, muito certeiro.
Em relação ao livro Mortal e Rosa, andei a pesquisar e nunca chegou a ser editado no Brasil. Se quiseres um em Português de Portugal, eu posso enviar-te. beijo

Amanda Machado disse...

Obrigada Ana! Tentarei o livro por aqui, caso não consiga peço para me fazer o favor de mandá-lo. Beijo