sexta-feira, 6 de março de 2015

Foi por pouco, dizem.

  Início da semana, calor num céu reluzente, a previsão de chuva que cada vez mais não se realiza, no relógio da praça do bairro ainda são 6:40, no termômetro são 22 graus e uma mensagem de texto no painel, que alerta para o desperdício de água, leio a mensagem e a temperatura, sempre aguardando as horas - atrasados crônicos jamais deveriam banir os relógios de pulso, mas são os primeiros a fazê-lo. O caminho é feito a pé, porque é curto, urgente e sujeito a mais possibilidades assim, fatalmente, o sonho das grandes coisas que podem acontecer na caminhada banal. Sob um céu de janeiro, em pleno março, acho que vivo num deserto físico também, agora. 

  Chego com sorrisos no prédio de sempre - não sofro de mau humor matinal  - converso amenidades com o porteiro, enquanto aguardo o elevador, que chega, mas dispenso-o quando um burburinho na portaria me faz ficar. Um choro de menino, num túnel de maus conselheiros adultos, que não o confortam em nada: - Ah, mas nessa cidade já não pode dar esse mole!; - Com a próxima tenha mais cuidado!; - A rua aqui até parece tranquila, mas isso aqui é centro da cidade, menino!;  - Agora não adianta chorar, né?
  Eu me aflijo com cada frase, porque sei que não são minimamente acolhedoras para quem chora; choro precisa de lugar para desaguar, reprovação alguma cabe num momento desses.

  Mais tarde, entendemos, eu e o porteiro, que somos os últimos a chegar, o caso: o roubo de uma bicicleta. O garoto, de uns 10 ou 11 anos, saía de casa com a bicicleta, quando lembrou que não levava o cadeado dela e se precisasse? Voltou ao apartamento correndo e quando desceu, a bicicleta, sem o cadeado,  já não estava mais lá.
  - Mas foi um segundo. Um segundo que eu subi, subi correndo e levaram a minha bicicleta. Repetia entre um soluço e outro, o menino.

  Inconsolável, de coração partido, com medo dos pais pelo descuido com o presente recente, de ego ferido pela perda material, criancice, muita raiva e um cadeado inútil, agora, nas mãos, o garoto sofria a desilusão dos poucos minutos. São eles que definem uma perda grande, os poucos.

  O voo marcado, a última vaga da carona, o início da sessão de cinema, o último par de sapatos daquele modelo e naquela cor de número 37,  o melhor lugar para assistir à palestra ou ao show, o ídolo que acabou de seguir em um táxi, o amor da sua vida, a melhor garota, o emprego dos sonhos, a vaga no curso pela qual estudou um ano inteiro, o encontro entre seu sonho e você, o primeiro andar do bebê, a última palavra antes do silêncio definitivo, o aceno, o derradeiro olhar antes da viagem, a tudo perdemos por muito pouco.

   Os  desencontros lamentados, as grandes perdas definitivas ou separações irreparáveis são dolorosas porque acontecem por pouco, por quase nada. E a sensação de não ter impedido um descaminho por um mísero intervalo de tempo, ter a imagem de uma nuca ou alguns fios de cabelos desaparecerem numa porta recém fechada é a dor de ter, por alguns segundos, um tesouro nas mãos e antes de podermos fechá-las um vento passa e surrupia nosso bem tão cobiçado. 

  O que quase sempre separa um amor de outro, a sorte de um necessitado, a esperança de um desacreditado, a desejada mudança de uma ação, são mesmo os segundos. As grandes separações se escondem naquilo que todos os dias enxergamos como irrelevante, mínima e desconsiderável. A subida e descida de dois andares e a dor alucinante de um menino.

  Poucos minutos depois e a revelação de um mal entendido: a irmã do menino não viu mal algum em dar uma volta no quarteirão com a bicicleta do irmão mais velho. Alegria instalada, voltamos cada um às suas perdas e desencontros. Chamo o elevador e aguardo. A cidade não é tão desalmada quanto dizem. Mas continuo morando num deserto e chegando atrasada aos compromissos; quem sabe num atraso desses não me encontro.


Nenhum comentário: