quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

O inventário dos pequenos medos

  Tranca a porta, desce as escadas e duvida se deu mesmo as voltas na chave ou se só a colocou na fechadura e voltou a tirá-la, retoma os degraus e confere. Já está em frente ao apartamento mesmo, então destranca a fechadura - que sim, tinha sido trancada - e resolve ver se as janelas estão todas fechadas, porque se chover  poderá  molhar o piso de madeira recém trocado. As janelas estão em ordem, confere se o gás da cozinha está vedado e resolve recolher o lixo, porque talvez chegue tarde e cansada, não vai querer descer as escadas de novo. Passa os olhos em cada cômodo com a sacola de lixo numa das mãos e a chave na outra, repara, confere, sistematiza a despedida, nada escapará agora.

  Fecha a porta e desce as escadas, finalmente.

  Os dois instantes que nos separam de um destino duram mais do que a nossa estadia nele, isto é certo. A partida planejada, tantas vezes adiada e minuciosamente conferida, ou a memória guardada, depois de cada passo, são mais longas do que o nosso encontro com aquilo que esperamos. Mas, ainda assim, é no encontro que nunca deixamos de existir. Porque é nele ou mesmo a partir da possibilidade de um visita a ele que a vida toda corre, fareja e saliva, pela busca dessa única visão, desse golpe de cinco miseráveis segundos. É por ele que enfrentamos um rio inteiro.

  As horas aguardadas para que um destino se cumpra ou aquelas que gastamos dezenas de anos depois, pensando neste único instante, nunca darão a dimensão desses segundos de olhar trocado entre nós e o nosso destino, mas elas hão de emoldurar para sempre o segundo precioso do nosso encontro maior. As horas antes e depois do encontro são tempos de aprendizado e perdão. Ensinam-nos a deixar que o desejo latente nos leve pelo caminho e, depois, abre espaço para nos reconciliarmos com as nossas possíveis falhas.

  Mas antes do encontro, o medo, a insegurança de não estar maduro o desejo, de ainda não estar a nossa espera, preparado para o encontro ou quem sabe dele já ter partido, sem nunca nos termos com ele. Será com atraso que saímos tantas vezes? Terá valido a pena deixar a casa sem nenhum sinal de certeza? Qual o tempo exato? Existirá mesmo só um? Ou como reconhecer entre outros milhares aquilo que sonhamos tanto?
 
  Deixa o lixo na garagem, lembra de um boleto que vencerá amanhã e ficou no móvel da sala, sobe os degraus do prédio, que há horas ensaia deixar e antes de destrancar a porta pensa que nunca há treinamento que baste. Antes da última volta na chave, resolve que não pode adiar a partida por medo de não ser o tempo; nunca saberemos dele mesmo.

  Abandona janelas, portas, o lixo, boletos e abre o portão sem saber se haverá ou não um encontro. Se reconhecerá um tempo, um lugar ou um certo destino. Mas rompe provisoriamente com o medo e deixa sua dívida para um outro dia, porque agora vai se ter com o novo. Com o improvável e inacabado devir, porque este sim está em algum lugar lá fora.



 

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