segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Da caminhonete ainda não me recuperei

  Acabam de apagar as luzes do ônibus, é noite, mas não quero dormir, guardo o livro no meio do segundo capítulo, não quero incomodar os outros quatro passageiros  com a luz da minha poltrona, procuro o celular e calculo que só poderei ouvir mais duas músicas, antes de desligá-lo para poupar a bateria. Olho pela janela, a estrada escura e as minhas duas músicas ficam ainda mais bonitas, a primeira canta o céu e as estrelas e a segunda a estrada e a fuga; desligo o celular e terei a paisagem, até os olhos desejarem se fechar. Faz frio e chove lá fora, é tudo tão quieto, tão silencioso e numa solidão tão calma; o asfalto molhado, largo e longe dá vontade de ficar para sempre na estrada, nunca mais parar. O ônibus vai rápido e as paisagens recortadas vão se colando em retalhos improváveis: uma vaca, um homem vagando na beira da estrada, uma pedreira, uma igreja com reboco rosa e seus fiéis confraternizando na porta, uma mulher com uma criança numa bicicleta amarela, um casal pedindo carona, largos espaços verdes, escuros, vazios e o cachorro solitário, vencendo distâncias, chuva, frio e a dureza da sua existência de um cão só. Os cães sem dono são vigilantes de qualquer itinerário; espalhados pelo mundo,  cães tristes e viandantes nos enchem de ternura, quando passam sob as nossas janelas de paisagem. Visto daqui, nada é feio, perigoso ou urgente. A estrada dura tanto, que eu quase sinto o vento no rosto, como se eu estivesse lá fora. É esse sentimento que me comove e lembra o meu peito da saudade da vida e do risco, quando moram juntos e não sabemos como desatá-los.

  Há três dias eu vi o homem que me ofereceu essa mesma sensação, que sempre volta em cenas repassadas pela memória. Cruzei com ele numa das esquinas do centro, depois de mais de vinte anos e eu soube que era ele, porque não pude esquecê-lo. Ele não se lembra de mim, não me reconhece quando eu passo e emocionada quase choro quando olho nos olhos dele. Ele não sabe, não se lembra, não imagina que para sempre inscreveu em mim a sensação do vento, do coração acelerado, da  respiração ofegante pelo excesso, do som que passa tão rápido que se mistura numa profusão que  pressiona os tímpanos.

  Eu estudava em outro bairro, tinha nove ou dez anos e ia para escola de ônibus com alguns vizinhos, encontrava com uma amiga no final da minha rua e nós duas seguíamos os mais velhos até o ponto de ônibus. Até que os profissionais do transporte urbano entraram em greve, eu passei alguns dias sem ir a aula e um vizinho, pai de uma colega, ofereceu para nos levar e buscar na escola. Nos primeiros dias, íamos no carro comum, que ele utilizava com a família, éramos cinco ou seis crianças, sem cinto, sem medo. Era divertido e mais confortável, andávamos menos e viajávamos sentados. Mas no terceiro dia, o meu vizinho apareceu para nos buscar numa caminhonete aberta, ele e as duas filhas iam embaixo, no banco do motorista e passageiro e três de nós, em cima, mochila nas costas, cabelo ao vento e a única preocupação de não soltar as barras que garantiam que não rolássemos pelo chão da caminhonete ou que caíssemos no asfalto. Tive um pouco de medo e me senti desconfortável nos primeiros minutos em cima do automóvel, mas, depois, era libertador, divertido e novo.

  O vento forte, por causa da velocidade e da falta de proteção, era uma sensação extraordinária, não conseguíamos conversar ou nos olhar, na maior parte do trajeto, mas dividíamos muito mais: o vento, a vista de cima, aberta, sem os enquadramentos das janelas e o segredo da viagem, tínhamos a intimidade de quem compartilha um prazer e uma mentira. Nossos pais não podiam saber da insegurança das nossas viagens. Depois de alguns dias, os ônibus voltaram a circular, mas o vizinho continuou a nos levar, voltávamos na caminhonete uma ou duas vezes na semana, mas aos poucos, nossas voltas passaram a ser mais frequentes nela. Era a minha melhor volta.

  Mas um dia, não sei a razão, eu estava na caminhonete, já em cima, apertando o elástico no cabelo para não soltar quando o vento forte batesse e um pensamento chegou antes da nossa partida. Lembrei do dia anterior, quando uma das minhas mãos não aguentou uma curva e eu só voltei a ficar em pé, porque a minha amiga pressionou as suas costas contra o meu corpo meio solto. Senti mais medo, um desconforto, não de corpo, mas de alma, um medo de não estar certa nesse pacto, de outra das minhas mãos também se soltar numa outra curva e as costas da amiga não me encontrarem. Lembrei do meu pai e pedi para ir na frente pela primeira vez.

  Minha amiga sentiu-se traída, o motorista surpreso e a filha mais velha dele, contrariada, por ser obrigada a ceder o seu lugar para mim dentro da caminhonete. Na volta, eu chorei, pela covardia, mas ainda mais pelas vezes que eu gostava do vento e que ele ameaçava a minha vida. Lembrava do meu pai, mais do que da minha mãe. Porque ela é uma mulher que não se recupera de muita coisa, aliás, minha mãe jamais se recuperou de coisa alguma. Mas meu pai não, meu pai nunca mais se levantaria se eu soltasse as minhas mãos e, numa curva, ficasse pelo asfalto para sempre. Meu pai se recuperou de cortes profundos, que ele jamais me contará; superou ausências desde que veio ao mundo, de comida, cobertor, livros e, principalmente, afeto. Mas de uma viagem que eu não voltasse, ele também não teria pernas para voltar.

  Parei de tomar o vento no rosto, por gratidão e amor ao homem que não saberia mais da vida se eu o abandonasse pelo vento. Às vezes o que nos prende a um lugar, a alguém ou a própria vida é exterior aos três. Não ficamos no lugar por ele, não nos atamos a alguém somente por ela e à vida, quase sempre, são os outros que nos chamam a mantê-la, mesmo quando os custos parecem demasiadamente altos. No lugar, permanecemos por gratidão, por medo de perdermos as lembranças que achamos que estão plantadas nele; às pessoas, nos mantemos, porque estar com elas faz emergir em nós o que gostamos, o que queremos ser ou podemos ser, a partir  dos laços que trançamos com elas; à vida, o que, frequentemente, nos encoraja a lutar para estendê-la e fazer dela profunda e mais humana é o olhar de desamparo do outro, quando ameaçamos ausência.

  O amor, é isto, abandonamos as viagens que nos trazem o vento no rosto, porque somos gratos e cuidamos de uma vida que para outro alguém faz tanto sentido. Eu não suportei suspeitar do sofrimento do meu pai. No dia seguinte já fui para a escola de ônibus e enfrentei alguns dias de isolamento dos meus amigos de carona.
  Quando virei a esquina e vi o homem da caminhonete, lembrei do meu pai, do vento no rosto e das viagens que eu não serei capaz de continuar, porque um sentimento é ainda maior que uma sensação. Olho para a estrada escura e só quero, de novo, que a viagem termine bem. O asfalto  molhado passa por mim e eu durmo leve, sou esse clichê inscrito no para-choque do caminhão que vejo antes do sono me levar completamente: "Viajo porque preciso, volto porque te amo".



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