quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Ele fazia cadeiras

  Enquanto o homem mais velho fazia cadeiras na marcenaria do quintal, o homem da casa de cima, levava a
comida numa marmita de inox, que ela preparava - muito feijão, menos arroz - a menina circulava as palavras que não conhecia no livro que sempre acabava antes do final do ano, o menino deixava o cabelo crescer e cantava as músicas do rádio; a pequena assistia ao programa de auditório da TV com dançarinas que sorriam para a câmera.

  O homem mais velho cerrava madeiras e o cheiro de madeira cerrada é tão bom.
 - Só o pó que não.
 Reclamava a mulher, enquanto estendia as roupas no varal - meias brancas, alvíssimas. Ele fazia as contas na sua calculadora cinza e ela descascava beterrabas para o suco, a menina brincava com o elástico de dinheiro, o menino comia um ovo cozido e a pequena ouvia Elis Regina na rádio AM.

  O homem mais velho lixava, pintava e colocava as peças no tabuleiro de xadrez e o menino assistia, a menina perguntava e a pequena segurava um cavalo, que acabou ficando com ela de tanto gostar. O homem assobiava para os três irem almoçar, a mãe colocava a mesa. O homem mais velho se despedia, o menino corria. - Quem chegar por último é a mulher do padre. A menina gritava que ele iria cair e a pequena já aceitava se casar com um padre.

  O homem mais velho acordava cedo, ligava sua lixa, empilhava madeiras e o menino já pulava da cama, a menina resmungava que queria dormir mais e a pequena só dormia ou fingia, demorava a levantar. O outro homem já tinha ido à fábrica, a mulher ligava sua máquina de costuras e a pequena, depois de sair da cama, se encantava com o vestido vermelho que nascia pelas mãos que ela amava.

  O homem mais velho colava azulejos no fundo da bandeja de madeira, o homem da casa de cima consertava o chuveiro, a mulher limpava o ferro de passar roupas com a esponja de aço, a menina coloria a flor de um cartão para o dia das mães, o menino colava figurinhas com os rostos de jogadores de futebol no álbum que ganhou de aniversário e a pequena morava debaixo da mesa de madeira, com janelas de lençol.

  O homem mais velho aspirava o pó da madeira e tinha tosse toda noite, o outro homem temia ser dispensado do trabalho e, por isso, a mulher dizia:
- Não vão incomodar seu pai.
  O menino torcia para o Vasco, a menina era Flamengo e a pequena só achava bonito o gramado verde e a pintura branca do campo de futebol.

  O homem mais velho fez sua última cadeira e a lixa se calou. O homem que morava em cima se mudou, a mulher levou a samambaia no caminhão de mudança, a menina uma mochila azul, o menino levou a bola e a pequena ninguém sabe se foi . O homem fazia contas no papel com um grafite grosso, a mulher  fazia bainhas, a menina lia livros da biblioteca do bairro, o menino quebrava vidraças com a bola e a pequena inventava o mundo. Hoje, só ela continua inventando o mundo. Ela nunca parou o ofício, porque é o seu cheiro de madeira, às vezes aspira o pó e tosse uma noite inteira, mas pela manhã a madeira chama. A vida não se explica, só dá a madeira de cada um. Serrar, lixar, pintar, esperar secar e montar cada peça em seu lugar.

  Ele fazia cadeiras, mas nunca as usava para sentar. Ela inventa o mundo, mas não sabe como chegar lá.



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