quarta-feira, 29 de março de 2017

A quem permitir o sol agora, se não a mim?

   Os primeiros dois meses não doeram, não faziam pensar. Nos primeiros dois meses, era correr, estender o braço, pegar o bastão, correr mais e entregá-lo logo a frente,  sem olhar para  as mãos que o entregavam ou para as que o recebiam, sem olhar para a competidora ao lado e muito menos para os próprios pés. Entre o tiro da largada e a faixa de chegada, nenhum pensamento escapava; era só corrida e respiração. Nos primeiros dois meses, tudo o que fazia era manter-se em pé e desperta.
   E no exercício de correr o mais rápido que podia, sem deixar que o bastão escapasse, foi se acostumando a ser indispensável na pista, a não ouvir as instruções do técnico, os gritos das companheiras; e das vozes do público, só saberia depois de cruzar a linha de chegada.

  Quando chegava, abria as persianas, se estivem fechadas, e deixava o sol entrar no quarto, era ela quem iluminava a mulher na cama, pálida, descansada e silenciosa. Pelas suas mãos de atleta velocista, os raios luminosos se projetavam na roupa de cama verde clara. Depois, ajeitava o lençol, mesmo que não estivesse atrapalhado, regulava as pontas, cobria ou revelava partes do corpo que ela nem viu envelhecer. De um dia para o outro, enxergou de muito perto as rugas, a flacidez e achou bonito o corpo feminino que parecia ter voado uma vida inteira e, agora, pousava lentamente. Que pouso delicado!
   A mãe que teve o cabelo preto azulado, acaju, loiro, agora, pela primeira vez, tinha-os completamente grisalhos, branquinhos, uns cabelinhos finos, que pareciam de criança. Ela não se lembrava de ter passado as mãos na cabeça da mãe muitas vezes antes, por isso agora, fazia-o diariamente.
- Uma cabeça quente, minha mãe. Uma cabeça macia, minha querida.
  E como ficava pequena, a mulher, na cama daquele quarto. A cada dia parecia diminuir. Ela que fez dieta uma vida inteira e sempre  pareceu muito forte, grandalhona, de ombros largos e cabelo volumoso. Agora era uma pena, pousando mais, a cada dia,  num lugar sólido.

  Tudo o que tinha que fazer agora, era amar, ser a filha que esperavam dela e se aproximar, ao menos, fisicamente do que lhe restava da mãe. Nunca tiveram grandes brigas, nenhum rompimento longo, mas essa possibilidade de  demorar nos instantes, acarinhar e ficar em silêncio, só olhando, lembrando, amando, era uma primeira oportunidade. A mãe a vida toda falou muito, a filha toda a vida teve dificuldade de paciência; até tentava, mas os pés sempre chamavam para pistas mais distantes; a mãe não alcançava as raias que a filha trazia consigo e ela não sabia esperar.

  Durante dois meses, saía do trabalho, passava no apartamento da mãe, buscava ou deixava alguns pertences dela que poderiam deixá-la mais confortável enquanto estivesse fora, recolhia correspondências, dava notícias aos vizinhos e alimentava o gato, que passava os dias na rua ou em casa, fazendo o que quisesse, sempre. Depois ia para o hospital e orquestrava as últimas horas da tarde da mãe, até a noite chegar, a acompanhante entrar pela porta como se fosse a locatária e fechasse as persianas, ligasse a luminária, mudasse o lençol que ela delicadamente havia ajeitado e roubasse dela a mãe que há pouco ela ganhara de novo.
  Quando não estava com a mãe ou entre as coisas dela, dava notícias sobre o seu estado de saúde para os irmãos, que não puderam vir para acompanhá-la
- Não precisa, né? Muita gente atrapalha nessas horas.
  Ligava para as tias, amigos e repetia, do seu jeito, o que ouvia do médicos, combinava com o chefe algum dia de saída mais cedo, ausências no escritório, para um exame ou transferência de unidade ou quarto.

  Durante dois meses, conheceu a mãe e acessou alguns dos seus segredos no armário do apartamento ou na chapa dos pulmões. Fluidos corporais, medicamentos, punções, higiene em cima da cama, caixas de papelão com fotos e dedicatórias, os boletins dos filhos, os dentes de cada um em saquinhos de musselina com o nome escrito de caneta hidrocor, as cartas do pai, os pedidos de desculpa, as declarações, os poemas que não tinham a letra dele, mas eram dedicados a ela, roubou os poemas e toda noite lia até dormir - sentia um amor imenso por essas folhas - e até um diário da mãe, que ela não ousou ler. Tudo o que descobria dela guardava para si, não tinha a quem contar e nem vontade. Queria só chegar do outro lado com o bastão ileso.

  Mas depois do final do segundo mês, as condições da mãe não se alteraram, os médicos pareciam menos confiantes dos seus saberes e abrir as persianas começava a doer suas mãos. Não tinha mais o que descobrir, sem a permissão da mãe. Os irmãos faziam festas que ela não ia, não cortava mais o cabelo, não conhecia mais ninguém novo, os amigos cansavam de chamá-la para qualquer lugar, não se apaixonava, tampouco era promovida ou  incluída em algum projeto inovador no trabalho e até a acompanhante da noite começava a fazer pequenas mudanças no quarto, cansada do silêncio e estado único que a mulher, cada vez menor, permanecia. Três meses, quatro, um semestre, nove meses, doze, um ano e três meses e os colegas de trabalho mudavam, os médicos tiravam férias, iam a congressos, a acompanhante noturna mudou duas vezes e a mãe nem envelhecia mais.
  E se no início as enfermeiras a estimulavam a falar, fazer massagens e tocar no corpo da mãe, porque ela poderia sentir alguma coisa; agora, insistiam para que a filha ficasse menos tempo, faltasse alguns dias, porque a mãe de nada podia dar conta. Mas na primeira vez que ficou em casa, sentiu tanta saudade, que foi de madrugada no hospital, porque não conseguia dormir sem sentir a quentura da cabeça da mãe nas suas mãos.

  Toda a vida acontecia para o resto do mundo, deu-se conta disso depois de mais de um ano de corrida e revezamentos. Não ficou frustrada,  raiva também não teve, mas pela primeira vez pensou que talvez a mãe nunca mais a olharia nos olhos e isto sim doeu mais que as mãos. Todos os dias ela ia ver a mãe, o apartamento e o gato, este último a única incerteza de encontro.
  Num dia, ela chegou, abriu a persiana, ajeitou o lençol verde claro e  quando passou a mão na cabeça da mãe, já não era quente.
- O bastão caiu, mãe, me desculpa...
   Chorou completamente sozinha, antes de chamar as enfermeiras.

  A corrida não é tão cansativa quanto parece, os treinamentos doem o corpo, mas logo ele se acostuma, a concentração também pode ser treinada, os gritos do técnico não abalam mais do que a possibilidade da derrota, nem a derrota é tão dolorosa assim, mas a precisão da entrega e do recebimento do bastão, este sim, é o mais trabalhoso. E quando ele cai na pista, quebra-se imediatamente a força de uma crença. É como se por imprecisão nossa, o mundo acabasse, rompesse uma represa e, ao levantar a cabeça, só vemos que a onda de água virá ao nosso encontro e ao de toda a gente que nos assistia na pista.

  Os irmãos vieram, os amigos, o amante, o porteiro, os vizinhos e ela recebeu os abraços de um ano inteiro de uma só vez, mas não conseguiu se sentir confortada nos braços de ninguém. Foi ao apartamento da mãe que nunca mais estaria lá. Cruzou a chegada e só o gato, sempre tão livre,  a esperava, passou a mão na cabeça dele, tirou o poema da bolsa e, finalmente, ouviu as vozes do estádio. A vida acabada que apaga a cabeça da mãe, a vida recém começada que abre as persianas e permite que um fio de sol atravesse a cama dela.
- As minhas mãos, o que eu faço com elas agora, minha mãe? E o seu poema, quem o dedicou a você, se não você mesma? A letra era sua, eu sei. Só nós duas saberemos carregar nossos bastões e não desistir da pista antes da hora. Eu abrirei as persianas para mim, como você enviava poemas a você mesma.





2 comentários:

R disse...

Soberbo. Soberba!

Amanda Machado disse...

Obrigada pela leitura e partilha da sua impressão. Que bom que gostou, fico feliz.