segunda-feira, 27 de março de 2017

O dia 27 não foi feito para você

   E mesmo assim vai se levantar, tomar um banho, vestir roupa limpa - calça jeans e a camiseta de um filme, mangas arregaçadas, porque é final de março, mas ainda sente muito calor pela manhã - vai prender o cabelo e, de chinelos, vai à padaria. No dia 27 as chances serão pequenas, o sonho terá sido ruim e mesmo assim vai dizer bom dia a todas as pessoas, vai comprar quatro pães e 200 gramas de muçarela. Vai desviar das pessoas, mas não dos seus cães, se abaixará para passar a mão em alguns deles - nos que a conhecem, obviamente, detestaria ser inconveniente com os cães, as criaturas mais sociáveis sobre a terra -  não vai ser alegre, mas vai sorrir por costume dos lábios, por delicadeza e respeito com aqueles para quem o dia 27 não for um dia ruim.

  Vai voltar para casa e preparar o café, descalça. Custará a calçar os sapatos, porque depois deles terá mesmo que sair. A inevitável vida não chegará enquanto estiver descalça, aproveita o piso frio da cozinha e adia qualquer urgência do dia 27; não é médica, não sabe fazer curativos, ressuscitações, nem saberá abrir um peito e afastar as costelas;  não faz maquiagem e cabelo de noivas, de última hora, quem se casaria numa segunda pela manhã? Não tem uma cena para decorar, personagem para interpretar, nem cena alguma para estudar, nunca vai fazer novelas; não é bacharela em direito, não tem ninguém para tirar da cadeia. Nem pai,  mãe, ou filho doente; todos estão com saúde. Não precisarão dela na recepção de um consultório, pedindo que por favor priorizem o atendimento. Não sabe abrir portas sem chaves, não salva ninguém de afogamentos ou incêndios nem tira gatos de árvores; não prende, nunca mandou prender. Não faz discursos, não se candidata nem se elege, nenhum povo acredita, mas também não se desilude. Pode atrasar vinte minutos e continuar descalça.

  Descasca o mamão e salpica a granola, para uma fome sem apetite, refeição burocratizada; o dia 27 lhe tirou o paladar. Vai se sentar e assistir a TV que alguém ligou, distraída assistirá, até o fim, uma reportagem na TV sobre a falta de tornozeleiras eletrônicas para presos brasileiros. Tem dias que a gente não sabe como chegamos a isto, tem dias que a gente não quer saber de pessoas com tornozeleiras.
-  É demasiado distópico, minha gente.
  Ninguém a ouvirá, no dia 27.O comentarista da TV faz a crise da tornozeleira parecer uma crise pela falta mesmo. Para quem ligar e dizer que a crise é da existência dela?

  Acabará o mamão,  tomará seu gole de café doce, porque errou a medida. Escovará os dentes, lavará o rosto e se lembrará de passar o filtro solar com cor, que nunca se parece com a sua  e um batom, um em cada bolsa sempre e a qualquer hora para afastar a palidez do dia 27. O ônibus não vai vir muito cheio, vai se sentar perto do sol - o único lugar - a cabeça vai doer, não vai querer falar com ninguém, mas a moça simpática que conheceu na última semana está sentada ao lado dela e vai querer conversar; não se pode negar nada a ela, ao que parece. Vai tentar não parecer desanimada.
  No dia 27 queria dormir, vinte e sete motivos para não sair da cama, vinte minutos de atraso, um pão de sal com muçarela na bolsa; quatro e vinte cinco, deu a conta da padaria.

  No dia 27, três boas palestras e não irá a nenhuma, dor nos dois joelhos, três unhas descascadas, vai esquecer palavras e parecer idiota na entrevista.
- Porque não a fazem por escrito?
  Não articula bem no dia 27, não vai passar; não tem certeza, só desconfia; mas adianto o final: não vai passar.
  Entrará na sala dois e não conhecerá ninguém. Os slides vão demorar a abrir e quando abrirem, ficará envergonhada porque agora não parecem tão bons. Não estará segura, a voz sairá trêmula, não vai passar e não sabe ainda, só desconfia, por isso segue o plano, mas vai ser reprovada, por que ninguém se levanta e já diz? Por que mentem?
  O dia 27 não será bom, mas, ao menos, não vão assaltá-la, o dinheiro para o dentista será entregue a ele, no fim do tratamento, no final do dia. No dia 27, uma vontade de chegar em casa logo e chorar no chão da sala, mudar de vida antes dos 36, ter amigos que não entendam a sua língua nem achem que sabem muito sobre ela, porque não sabem! No dia 27 uma vontade de nunca mais assistir à TV, não colocar açúcar no café e ser estrangeira.

  No dia 27, arroz integral, abobrinha, feijão e salada de lentilhas, duas taças de suco de uva e um brinde com uma companhia imaginária, para o dia completamente esquecível. Enquanto o prato esfria, sonhará com uma viagem, um lugar distante para colocar os pés e tomar uma outra chuva, talvez tão ácida como a daqui, mas de uma água que não conheceu ainda. Ninguém deveria passar uma vida toda, tomando a chuva de um mesmo céu, acha. Daqui a pouco saberá que não passou, vai desligar o computador, apagar a última lâmpada e suspirar porque acabou agora, mas não para sempre.
- Que teimosia.
 A avó falava e sorria.

  No dia 27 vai deitar na cadeira do dentista e dormir, ele vai repreendê-la algumas vezes, porque precisa dela acordada para o trabalho dele. Ele nunca sorri, porque os dentistas - os especialistas em tratamento de canal, que fique claro - são sérios demais e compenetrados demais e não conseguem perceber a marca de um dia ruim numa paciente, só veem os dentes dela.
  No dia 27 vai descer os dez andares de escada, com meio rosto anestesiado e não vai nem poder   comer pipoca da carrocinha da esquina.
  No dia 27 não vai ter atestado nem férias, nenhuma desculpa que a deixe em casa. É só um dia para não se apaixonar por nada,  por ninguém, lugar nenhum. Para ninguém se apaixonar por ela, ler o que ela escreveu ou ajudá-la a atravessar o dia, sem risco de acidente. Um dia que não descobrirá poesia, que depois do efeito da anestesia vai sentir o peso das mãos do dentista e conferir na carteira se acertou o pagamento.
- Ah, ainda bem que não esqueci.

   O dia 27 passou e quase nada deu certo, exceto pela tentativa desesperada de fazê-lo passar sem ser percebida em erro; os pães, os cães, a conversa no ônibus, as palavras em falta, o brinde de vinho simulado, o sonho do meio-dia, o dentista no final da tarde; pequenos esconderijos que a levaram para casa.
  A noite se deitará, depois de ter certeza de não ter passado e de um suspiro que eu não sei sobre o que é, se resignação passageira ou desistência de caminho. Vai fechar o circuito ou abrir uma estrada? Quer ouvir Tracy Chapman, chorar no escuro e pensar na crise das tornozeleiras eletrônicas. Meia hora para o fim do dia 27. Quantos passos ainda faltarão ser cerceados? A  tornozeleira dela sempre apita se ela se afasta, como resolver essa crise, senhor comentarista da manhã? Quantos calcanhares a serem perseguidos para um país finalmente estar seguro? Quais os caminhos eles não podem rastrear ainda?








3 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, neste quase findo e triste março de 2017

Prezada escritora das percepções atávicas e/ou peregrinas deste mundo,

Numerólogo eu fosse, diria que o 27 é o TAO, o ponto da mutação. Segundo quem vive dos números, ele significa a transição de mais um estágio e/ou marca uma passagem em nossas vidas, o amadurecimento da alma.

Atingir o TAO não necessariamente é o ápice do amor, pode também ser uma pedra no meio o caminho, e no meio do caminho temos o 27, temos o 27 no meio do caminho. 30 anos já se passaram desde meus 27 - 30 anos ... tudo passa.

Enfim, como canta de uma forma poética e dura a Tracy Chapman - mesmo com tudo isto, mesmo com o 27 - Poor people are gonna rise up, And get their share - melhor impossível.

Um abraço

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 29 de março de 2017 (um ano de revoluções, aqui ou noutro lugar)

Caro Paulo - leitor de números,poemas e escrivão da vida,

Se 27 é o TAO e se TAO é mutação, talvez o mau dia seja muito bom. Ainda que as mudanças nem sempre pareçam positivas, elas rompem com o estado de inércia, modificam rumos e planos, fazem a vida ser mais vida; desacomodam.

E as pedras no caminho, ora são resistências, ora nos fazem impulsionar, ainda que para uma queda. Podemos também amar pedras.
Talking about a revolution...será? Não sei. Tomara!
Abraços

Paulo Abreu disse...

e viva a resiliência da resistência