quarta-feira, 12 de abril de 2017

Faça uma tempestade azul

   Se o fogo arde demais e se ele se espalha queimando, num incêndio interminável e doloroso, durante o dia. Se chega a noite e o gelo parece insuportável, congelando as articulações, cimentando vazios e endurecendo sentimentos. E  se difícil for, encontrar um lugar ao meio, numa temperatura amena. Se dormir e não se mover parecer uma tentação irresistível, se falar for imensamente desgastante e improdutivo, então invente.
  Crie uma borboleta de asas negras, salpicadas de lilás e não a aprisione, nem tenha medo dela, não a classifique, não a fotografe, não dê um nome, nem origem, crie e a deixe solta pelo mundo. Crie um rouxinol com um canto melancólico e derrame lágrimas quando ele cantar, não evite o som que vem dele para você. Crie um lugar em que a sua tristeza não incomode, não desperte compaixão ou faça as pessoas insistirem num sorriso que não é para agora.

  Crie um novo dicionário, itinerário, mapa astral e geográfico, invente regras e quebre-as, incentive os outros a também infringi-las. Desmonte as peças, desorganize-as e tente construir outra coisa com os mesmos pedaços.
  Invente um estado, um governo e não negocie o seu amor, não aceite os testes nem tente prová-lo a ninguém. Faça concessões se achar que deve, mas se for doer na sua alma, para além da carne, não faça, fique na chuva, no escuro, no frio, sozinho, doente, mas não faça, segure a sua lança até o último suspiro: - Eu acreditei nisto. Seja firme, ainda que solitário. Não se corrompa para ser aceita, nem use de persuasão para aceitar as outras.
  Conheça um mistério, qualquer um, tire suas capas, coloque-o para tomar sol, tire toda a nódoa do esconderijo. Abra caminhos e não tranque as portas.

  Desenhe uma meia lua no céu encoberto, encha de estrelas um tanque de água barrenta, limpe as lágrimas de uma desconhecida, deixe cair as de alguém que você admira muito; sua heroína se desmancha em líquido humano; veja.
  Construa um forte, cheio de escudos, posters e símbolos inspiradores, divinos ou não, religiosos ou não, místicos ou não, profanos ou não, humanos ou não, capitalistas ou não, mas saia de lá sempre que possível - não se esqueça que sempre é possível - e deixe o que você não conhece, ainda, impregnar seus gostos, sua derme, seu relógio biológico. Não duvide da biologia, mas não se prenda a nenhum determinismo, nem genético, nem hereditário, nem filogenético.

   Vá à Roma e não conheça o papa, se não quiser; vá ao Louvre e não veja a Monalisa, se não tiver vontade; vá ao Egito e ignore a pirâmide de Quéops se não quiser vê-la;  vá à Lisboa e não tome um vinho verde no Chiado, se não quiser beber, nem conhecer o Chiado. Vá ao purgatório e não peça redenção, se sua alma não estiver arrependida; vá ao mais fundo de si e se traga de lá, se achar que ainda pode ou afogue definitivamente o que não quiser mais trazer à superfície. Mas se, por um acaso desses, for ao interior de Minas, não deixe de tomar um café numa xícara esmaltada, isso vai te fazer ir a uma outra dimensão, se for ao cerrado tome banho de cachoeira e ande descalço na terra rachada, pelo menos uma vez, por favor.

  Invente um automóvel supersônico, um trem de energia solar que não polua e a viagem dure um instante, apenas um milésimo de saudade e a leve a qualquer lugar a qualquer hora do dia ou noite, que esteja disponível numa estação itinerante e a ausência se cure ao descer as escadas e o abraço da procura esteja estendido, quando abrir a porta automática.
Elabore um método infalível de prolongar a vida dos animais de estimação, porque sempre morrem antes de podermos dizer adeus, antes de conseguirmos levá-los até a porta para a despedida que merecem.

  Inaugure dias que não caibam na semana, semanas que não fiquem limitadas aos meses e horas que não sejam escravas dos ponteiros de um relógio dourado. Estacione os sentidos em vagas largas e fáceis de manobrar, não acumule multas, não ultrapasse os sinais,  não brigue nesse trânsito,  viva-o abertamente, sem querer chegar a um lugar determinado.
  Crie um elevador de éticas, de altruísmos, de empatias e gentilezas, para todas as vezes que a insensibilidade quiser deixá-lo no piso mais rasteiro ou, até, abaixo dele. Imite uma garça, um cisne, uma andorinha ou coruja, os pássaros são seres cujas mentes voam antes de suas asas; abrigue um João-de-barro no oco do seu coração e nunca mais ele ficará completamente vazio. Abrace um ninho, abra-se para os ninhos.

  Faça uma tempestade azul quando ventar muito no sítio mais íntimo que você carrega. Crie liberdades, faça os passos de dança completamente autorais, componha músicas no compasso que escolher, escreva poesias sem métrica, rima ou sentido possível e passe a tinta da sua aquarela mais subversiva onde quiser, como quiser, não se limite a uma tela num cavalete. Assuma sua autoria. Seja o autor de cada invenção.
    Antes de dormir, não tome remédios, nem banho morno, nem desligue a TV, se não alcançar o controle remoto, não medite, nem entoe mantras, mas invente uma história onde eu te visite, nos sentamos numa elevação qualquer e assistimos o dia acabar e a noite subir na sua plenitude mais bonita. Faça o que ninguém mais pode por você nem por mim. Faça uma tempestade azul, quando o frio da indiferença e da desesperança alcançar seu forte. Não se proteja, mas reaja, lute e a tempestade azul, depois de brilhar o quanto deve, vai embora. Assista da sua janela, tudo aquilo que você criou para partir e seja o adeus.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Tapuia, quinta feira santa do Anno Domini 2017

Prezada contempladora das montanhas de Minas, Amanda Machado,

Gostei do seu jeito tapuia nesta crônica. Falo assim desta maneira baseado no fato de que quando os gajos por cá aportaram por ordem da rainha dos ingleses aliada do Napoleão, o legítimo, o outro foi genérico, encontraram os tupynambás (que entre outras peripécias, degustaram o Frei Sardinha), os tupys e os guaranys, que seriam aí os apaches e sioux caipiras.

Os tupynambás, pela sua dieta pouco convencional, foram logo logo dizimados, a começar pelos que habitavam o Paraíso Celestial entre Prado e Ilhéus, e receberam os patrícios na praia.

Anchieta e sua prole jesuíta adotou os guaranys e de quebra os tupys, com ressalvas. Aqueles outros que resistiram à dominação foram chamados de Tapuias (inimigos em Guarany), e residiam nas Minas Geraes, logo onde, meu Deus - o berço da Inconfidência (com direito a delação premiada) já era contestador antes de ter nome.

Assim disse Amanda - "Mas se, por um acaso desses, for ao interior de Minas, não deixe de tomar um café numa xícara esmaltada, isso vai te fazer ir a uma outra dimensão, se for ao cerrado tome banho de cachoeira e ande descalço na terra rachada ..."

Ato falho? Nada disto - Amanda é fiel aos princípios tapuias, não se entrega fácil!

Feliz Páscoa!

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Berço dos Tapuias e dos Inconfidentes, 14 de março de 2017

Caro Paulo, escafandrista das boas e importantíssimas histórias da humanidade,

Gostei (para não variar) dessa história!
Tapuias...isto aí! Não nos entreguemos com facilidade! Obrigada pela conversa e por mais este episódio tupiniquim... suas histórias são demasiado boas!

Ótima páscoa!