sexta-feira, 31 de março de 2017

No tempo que o tempo dá

    Existe um tempo, entende? Se atrasar, perde-se o fio, ele escorrega pela trilha,  corre tão rápido e fluido, que podemos ficar por anos num mesmo lugar a espera do fio que não está mais lá. Podem vir outros parecidos, quase tão esperados quanto aquele perdido, mas nunca é o mesmo, porque não volta, não vem buscar um lenço perdido, um parente esquecido, uma última mala na portaria; não vem. Mas, também, se adiantar, o fio não passa, ele desvia, segue por outra rota, livre das esperanças de alguém ou das mãos muito afoitas que tentam interromper seu itinerário. Há um tempo necessário, preciso, único, do qual  nunca sabemos ao certo, só o que temos são tentativas mais ou menos bem sucedidas, porque certeza não há. Mas há um tempo; isto é fundamental.

  Ele não tinha mais do que dez anos, morava na minha rua, e eu tinha uns doze quando soube dele pela última vez. Era um desses meninos que corria na rua o dia todo, jogava bolinhas de gude, quebrava janelas, com bolas muito bem chutadas e, depois, ia pedir desculpas com a mãe ao seu lado. Tinha olhos claros, dentes pronunciados para fora da boca, possivelmente colocaria aparelho logo e falava muito rápido. Não fui sua amiga, nossos apartamentos não dividiam uma mesma parede, nunca estudamos na mesma sala, mas da minha janela não tinha um dia em que eu não o visse ou, pelo menos, ouvisse sua voz. Ele não era um amigo com quem eu decifrava personagens nas nuvens, não íamos à padaria, à escola ou capturar escorpiões na pedreira juntos, mas ele era a minha rua, acho, porque não soube como me esquecer dele, nunca. Não sei pensar, lembrar, sentir saudade da rua, sem me lembrar, primeiro, dele.

  De todas as habilidades de ousadia que o menino exibia, a mais admirada pelos meninos que o seguiam e a que mais tempo o deixava  de castigo, em casa, sempre que os pais descobriam, era a de subir em caminhões e ônibus em movimento, logo que apontavam na rua, e só descer no final dela.  
  Eu nunca contei a ninguém, mas bastava eu escutar o barulho de algum caminhão, eu corria até a janela, para vê-lo se lançar inteiro a uma coragem completamente inconsequente, infantil, mas tão bonita, que eu tentava aprender, na observação.
  Menino de dez anos, no máximo, subindo na traseira de uma máquina muito maior do que ele, só pelo prazer dos dois minutos de vento batendo no seu rosto e o som abafado  das ameaças das vizinhas, pelo dos meninos gritando o seu nome e correndo atrás do caminhão, ele do alto, com uma das mãos segurando o seu touro e com a outra, saudando a plateia, onde eu também estive.

  Em todos os caminhões que ele subiu, amarelos, verdes, com pequenas carrocerias ou muito grandes, com o logotipo de empresas transnacionais ou com desenhos engraçados feitos a mão por algum "pintor de faixas" profissional, ele sempre esteve agarrado a alguma certeza. Não tinha erro, ele conhecia o tempo de subir e, depois, o de descer; mas quando estava lá em cima, aproveitava o vento, os gritos e a sensação única de plenitude, de desafiar e sempre sair vitorioso. Eu sentia medo, quando o via correndo atrás dos caminhões, mas também tinha uma espécie de projeção, quando ele impulsionava o corpo, pulava e se agarrava a um bicho indomável, do qual ele não tinha medo ou desconfiança. Ele era a nossa coragem liberta da segurança dos nossos quartos com grades na janela, o rebelde que era sempre perdoado no terceiro dia, o filho, o irmão, o amigo, o centroavante no time da rua, do bairro, do clube e da escola, ele era uma infância abundante que ficou no asfalto num dia e que silenciou a rua por anos.

  Com a certeza de conhecer  bem o tempo de subida e descida, foi se descuidando de alguns detalhes, um dia, subiu na derradeira traseira de caminhão com uma bexiga de assoprar na boca, para deixar uma das mãos no caminhão e a outra para acenar. Num sobressalto, o caminhão deu uma pequena ré e depois acelerou, quase desequilibrando, ele puxou o ar, a bexiga vazia atravessou a glote, ele se desesperou e sem conseguir respirar, caiu debaixo do caminhão, que passou por cima da sua cabeça.   Assim, sem  chance de cair e se levantar mais a frente. Sem castigo, sem pedido de desculpas com a mãe do lado. Tudo acabou com uma rapidez impressionante. Nunca mais eu corri para janela.

  O tempo de subida no caminhão não é o mesmo sempre, tem que se estar atento se há algo que possa impedir a respiração. E descer também não nos pertence, às vezes, somos "descidos" de um lugar, muito ou um pouco antes do que gostaríamos.
  Certas decisões só acontecem durante a viagem. Subimos quando pudemos e vamos descer nas mesmas condições, num impulso que nem sempre dará certo. Falar também tem seu tempo, se passar,  e ainda assim, insistir em dizer, as palavras cairão no asfalto e serão atropeladas pelo caminhão, onde deviam seguir. Se falar antes, as palavras podem não estar suficientemente maduras  e despreparadas, também, rolarem pela carroceria. Há um tempo certo em que água não estará tão fria, que não se possa fazer um chá nem tão quente, que não se possa lavar as mãos.

  Ainda me lembro da rua e do dia que ele não chegou ao seu final, lembro também de uma sensação, uma espécie de culpa ou responsabilização que os adultos sentiram por não terem impedido uma tragédia e do absoluto desamparo da plateia quando viu a coragem atropelada pelas rodas que deviam estar submetidas a ela.
   Na dúvida, desisto do caminhão e vou, andando só,  pelo caminho. Minha coragem não sobe em caminhões nem afere tempos. De que adianta o tempo, as palavras certas, jorradas a morno, se eu acabo indo embora antes do dia e da hora? Há um tempo; isto é fundamental. Não conhecemos o tempo do tempo; isto é o que temos.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, quase 02 de abril do ano da graça em curso de 2017

Prezada maestra da aquiescência dos sentimentos cordiais

Que texto lindo! Dolorido, mas tangível, real, e aí é que deveria doer, mas a sua condução nos leva a outra percepção espaço-temporal. Einstein coloca o Tempo como a quarta dimensão, o que parece ser lógico até que a cartesiana matemática na mesma época trouxe à luz um conceito o qual não domino - a quarta dimensão sob a óptica dos "tesseract". esquisito demais da conta. Só sei até aqui por que em priscas eras vi algo neste sentido numa aula esquizoide, à qual fui convidado, de Modelagem Matemática, no mestrado. Até hoje nunca entendi o que fui fazer ali.

Voltando ao tema, a narração está real, como se nossos olhos estivessem ali, vendo o menino. Poucos escritores têm este momento mágico. Imagina, Amanda, você com uma venda nos olhos, vedando totalmente a luz. É levada a um lugar qualquer - a Halfeld, o campus, o Alto dos Passos, sei lá, um lugar legal - e que neste dia esteja com muita luz, sem nuvens e você ali, experimentando outros sentidos, menos a visão.

Ao chegar ao ponto desejado, a pessoa que está com você dirá - pode tirar a venda. Ora, direis ouvir estrelas - todos os seus sentidos estavam aguçados, e no momento do Fiat lux ocorre uma explosão de cores, pois seu cérebro não decodificou ainda o local, os objetos, o ambiente, e só depois de decodificar e reconhecer estas informações, é que aquela tempestade de luz faz sentido.

É uma fração de segundos - é este o tempo que o escritor tem para prender a atenção do leitor, para que ele veja para onde foi conduzido, para o ambiente que o escritor desejou que ele visse. Prolixo demais isto, mas não vou deletar - rs!

Um bom domingo

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 04 de abril (madrugada) de 2017

Caro Paulo, ouvinte das vozes menos audíveis e espectador do que ninguém mais vê

Pode até, ainda, não ter compreendido os "tesseract" (eu não conhecia nem de "ouvir falar"), mas é um ótimo professor e condutor de viagens, vamos indo, indo... sem nem olhar para o relógio ou mapa. Vamos só seguindo, infinitamente.

E, confesso, prefiro conversas mais prolixas do que as concisas demais...assim, temos mais material para pensar.

Ótima semana!
PS: Não delete nunca! Obrigada.