quinta-feira, 6 de abril de 2017

O anônimo de quem só sei o nome

   Passava das seis e ele não ia embora, passava das oito e eu é que não ia. Passava fevereiro inteiro e ele não se movia, passava março e abril e eu ainda me sentia vazia. Ele pedia  café e eu pensava no almoço, eu digitava conversas que escutava, ele colocava tampões no ouvido, tomava uma dose de álcool e dormia. Eu assistia às comédias antigas e o convidava a ser menos sério e ele conversava sobre a flutuação na economia, com alguém do outro lado do hemisfério.
 Enquanto eu encostava a porta e abria as janelas até o final, ele olhava a avenida pelo vidro fumê do carro e se negava a receber os panfletos do menino no sinal. Eu me sentava em uma cadeira com a pintura desgastada, enquanto esperava a rosa crescer e a minha camiseta favorita secar, no varal,  ele tatuava um punhal nas costas e passava hidratante no desenho a cada três horas, cuidando de tinta e arma branca .

   Eu inventava verdades que não lia no jornal, ele contava as mentiras que recebia das suas fontes confiáveis. Eu me levantava todos os dias antes das sete e ele dormia oito horas todas as noites. Eu molhava a cama de suor quando tinha pesadelos, ele nunca me contava com o que sonhava. Eu lia para ele os poemas que fazia para ele, ele não se lembrava de me falar das imagens na sua câmera. Eu jantava com uma taça de vinho ele nunca bebia nas refeições. Eu já não tinha dinheiro na última semana do mês e ele tinha uma poupança, previdência privada e título de capitalização.

   Ele me pediu o telefone quando nos conhecemos, porque não percebeu que eu daria aquela noite inteira de conversa se ele quisesse. Ele me pediu promessa de amor, porque nunca entendeu os meus olhos; esteve tudo sempre lá. Ele testa a  minha lealdade, porque não sabe que o defendo sempre, inclusive dele mesmo. Pediu-me que eu não vestisse vermelho naquele dia, porque nunca soube que minha cor mais cara nunca esteve só na minha roupa. Ele incendiou minha alma, mas não soube o que fazer com as cinzas; perdido, chamuscado, desperdiçou baldes de água noutra direção. Pediu-me urgência, quando eu já estava a sua frente e paciência, quando eu já não estava mais lá.

   Sempre chegava uma hora do dia em que eu tinha muitas dúvidas, ele ia ao analista uma vez por semana. Eu levava o cachorro para passear e o nosso cachorro o levava também. Eu gostava da rua, às vezes, e ele nunca se sentava na calçada se pudesse, eu me sentava sempre. Ele jogou basquete por dez anos, eu montei sessenta e sete quebra-cabeças, até me cansar de encaixar peças. Eu o chamava para ver a lua e ele abria a geladeira, eu o chamava para dançar e ele ligava a TV.  Ele mandava flores no meu aniversário e assinava um lacônico "anônimo", escrevia bilhetes e deixava na mesa só com data e lugar, nunca via sua assinatura. Mostrava suas fotos de família, mas não dedicava legenda a nenhuma delas. Subia alto para gritar palavras de resistência e amaciava a voz para cantar as doces, mas sempre pareciam com as de outra pessoa. Por que o que era dele não era?

   Anônimo por um dia, um mês, três anos, quanto mais camadas eu descobria, menos desabrigado ele ficava. Puxava um fio e, nas minhas mãos, um emaranhado se prendia; nunca eu encontrava a continuação de uma mesma linha.
   O tempo era o certo, os dias não eram mais difíceis, não faltou amor, leite ou gás. Não esquecemos de pagar o aluguel, nem de trancar a porta ou de apagar as luzes. Tivemos planos individuais e em conjunto, música, filme, amigos em comum. Mas sempre faltava um nome, uma assinatura diária, a autoria.

  O que o anônimo nunca me deu, também negou a si. E não era só o nome, faltou sempre uma camada completamente vulnerável de vísceras e memórias. Faltou um segredo seu publicado e assinado, uma história que não terminasse quando o interfone estivesse chamando. 
  Faltou a sua assinatura nos nossos dias e um sentimento para cada nome que ele consultava no seu dicionário online. Do anônimo, de quem eu sempre soube o nome,  nunca vi mesmo a assinatura.



2 comentários:

R disse...

Felizmente, por vezes, fica na memória um rol de momentos nada anónimos.

Amanda Machado disse...

Sim, meu caro, a memória guardará as marcas.