domingo, 23 de abril de 2017

Só queria um cigarro


   Ele se senta tranquilamente com as pernas para fora da janela e fuma um cigarro. É ele. É ele de novo. Já o vi na mesma janela esta semana, ao menos, mais duas vezes. Na primeira vez achei inusitado um homem estar numa janela no centro antigo com as pernas ao vento, fumando sereno; na segunda vez fiquei curiosa pela repetição da cena e até quis fotografar, mas pensei que talvez fosse uma invasão do seu momento sublime de fumar um cigarro na janela, do alto do quinto andar; já na terceira vez me encantei por completo com o homem, o cigarro, os pés balançando no alto e a fumaça do cigarro dele se dissolvendo no infinito. Nas duas primeiras vezes, já o tinha levado um pouco para minha existência. Parava o trabalho pelo meio e me lembrava dos pés dele no alto, lia um parágrafo pela metade e me lembrava do solado dos sapatos dele sobre a minha cabeça, escrevia alguma coisa e pensava no olhar distraído do homem no seu horário de almoço, respondia a uma pergunta e me interessava em saber se o cigarro era antes ou depois do seu prato; aperitivo ou sobremesa? Separava papéis coloridos e me lembrava de que talvez o cigarro fosse o prato principal. Meus dias se mudaram temporariamente para o apartamento do centro, especificamente para a janela, para o homem, para o cigarro que ele fuma pacificamente.

   É  um prédio velho no centro antigo, mas não é um prédio de estilo colonial,  art-déco ou moderno; é só um prédio com linhas retas, janelas de correr, em cima de uma lavanderia e uma loja de molduras. É um prédio ordinário, não é bonito, mas é pequeno, baixo, são cinco modestos andares, não corrompe a paisagem, talvez eu nunca o visse, se não fosse a fumaça e, depois, pela sola dos sapatos que eu vejo quando passo por ele. Deve ter três quartos, um banheiro e um lavabo, copa e cozinha, a copa vão chamar de sala de jantar, depois da reforma e na cozinha um basculante com vidros diferentes, cada um quebrou numa época e não encontraram igual, talvez troquem o basculante. As paredes do cômodo que eu vejo, são verdes. E o  homem que fuma, sem afetação, trabalha lá. Da janela ampla de onde ele fuma, não é só ele quem observa a paisagem, eu também vejo o apartamento, já vi outros homens lá dentro, um guincho na janela ao lado e containers na calçada; por isso sei da reforma.

   E ele tranquilo, aspirando fumaça e soltando-a com generosidade, olhando profundo para o céu da urbe, deve ver alguns telhados, pessoas passando a todo tempo, o trânsito caótico do meio-dia e ele incólume com o seu cigarro e as pernas soltas ao vento. E daí,  se há alguma lei que proíba um homem de fumar um cigarro com o corpo para fora de uma janela no centro? E daí, se o funcionário da segurança do trabalho chama sua atenção todos os dias? E daí, se o síndico acumula reclamações sobre um fumante suspeito na janela do apartamento de um prédio de família? E daí, se uma mulher passou e ficou olhando-o por alguns minutos nessa última semana? O homem fuma, eu vejo, eu invejo. 

   Não é porque fuma manso numa janela num prédio absolutamente comum e modesto, mas como ele fuma; existe uma intenção, entende? Ele  sai de casa pela manhã com o maço de cigarros num dos bolsos, um isqueiro no outro e sabe que ao meio-dia ninguém o impedirá.  Fuma absolutamente livre e despreocupado em meio ao caos do apartamento e do centro. Ele premedita a sua liberdade.
   Fuma e é capaz de parar uma guerra com esse gesto, fuma e interrompe um golpe, suspende  as ordens de desocupação de um conjunto habitacional abandonado, que deixaria famílias completamente desassistidas e desesperançadas, fuma e apressa a chegada de um filho, poupa uma mãe de horas de trabalho de parto num hospital frio com um médico absolutamente negligente, fuma e amortece as batidas descontroladas do coração antigo de um idoso que quer muito continuar a vida, fuma e dispara uma revolução, fuma e balança os pés sobre as nossas cabeças, fuma e desafia o capitalista com a sua improdutividade passageira, fuma e resiste a toda precariedade do apartamento, fuma e expõe sua própria precariedade e por isso, me salva.

  Quis fumar, não vou. Não pelo meu histórico familiar terrível ligado ao cigarro, não pelo cheiro forte e permanente que se espalha  nem pelas propagandas que não passam mais na TV, não pelos documentários e reportagens com seus dados alarmantes, não fumarei pelo câncer. Resisti ao cigarro mesmo depois de todos os filmes da Nouvelle Vague, resisti à Bardot, Anna Karina e Belmondo mas quase não resisto ao homem do centro antigo.
  Divide um cigarro comigo, homem? Deixa eu me sentar do seu lado na janela e durante um cigarro sejamos fumaça.

   Somos precários, tanto quanto ou até mais que esse prédio antigo reformado. Não tenho medo da precariedade, só queria um cigarro hoje. Queria ser a fumaça que cerca a cabeça do homem, que enche os seus pulmões de um veneno pacificador, que o retira da materialidade da sua vida de operário e o faz alçar voos de liberdade e descanso pela cidade; o soberbo homem que pisa sobre as cabeças do asfalto. A fumaça que afasta os alérgicos, os pudicos, os veganos, os mórmons e que atrai os ébrios da madrugada, que pedem um trago ou um isqueiro emprestado; que impregna nos tecidos, poros, nos cabelos de quem fuma ou se aproxima do cigarro. A fumaça redentora do meio-dia, que começa e termina numa ausência, flutua, se esvai,  mas que por alguns instantes ocupa os vazios do homem.

   Ontem  o mundo me pareceu completamente organizado, depois da fumaça, eu que não era. O caos fora é sempre mais fácil de ser superado. E se eu filasse um cigarro, se faltasse ao trabalho? Quem me impediria de dividir um maço e uma janela no centro? Que lei eu infringiria? Qual o sossego eu perturbaria? Quem me veria?
   O caos de fora, me organiza dentro. Tenho que estar bagunçada para saber encontrar as minhas coisas. Eu só queria um cigarro, um tempo de fumaça e voo, mesmo não temendo cada vidro diferente que eu carrego no basculante da minha cozinha.



4 comentários:

Pavê Ipoví disse...

"Ele premedita a sua liberdade"; "Deixa eu me sentar do seu lado na janela e durante um cigarro sejamos fumaça". Separei só duas, mas são tantas as pétalas de humanidade que, despretensiosamente, você deixa cair na tela do meu monitor.

Amanda, tenho sido um voyeur de sua criatividade, de sua sensibilidade e de seu olhar. Em minha opinião, seus textos são necessários. São sacos de areia ao contrário; dentro do balão nos empurram pra uma espécie de céu de humanidade.

Sinto gratidão porque você tem dedos e um teclado, e por sua generosidade em nos presentear com bordados de trama sutil que joga de passagem sobre esse buraco de fechadura por onde bisbilhotamos essa coisa fantástica e desafiadora que é ser gente.

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, dias melhores virão neste outono de 2017

Prezada professora das artes humanas Amanda Machado

Serei breve, prometo. Psicanalista fosse, mas não o sou, acharia impossível não recorrer a Lacan lendo seu texto. É uma aula sintetizada sobre o desejo – O desejo é o desejo do outro. Já que estou no arenoso terreno da psicanálise, Freud acaba sendo inevitável – quando a moça fala do homem fumando, acabo sabendo mais da moça do que do homem.

Reparo nela o simbólico, já que é por meio dela que o sistema de representações, baseado em significantes que ela aponta, determina o seu desejo à sua revelia. É por meio desse sistema simbólico que ela refere-se a si mesmo ao usar a linguagem do deslumbre, da fumaça, do homem visto e inatingível, etc.

No campo do imaginário, ela busca no homem da janela a sensação de completude, de unidade. No entanto, deixa claro que ele não existe (ele não está ali para isto) para desenvolver a imagem com que o seu ego (eu) quer ser sustentado.

E no campo do real, a nossa protagonista trabalha no campo do impossível, do caos, aquilo que não pode ser simbolizado e que permanece impenetrável. Salta às vistas um Fernando Pessoa, entre sua genialidade e sua loucura. Cito-o aqui terminando este nosso bate-papo com este café bom, por que há um transe de amor romântico dela para com ele, um amor cortês, aquele sentimento nobre e impossível entre dois amantes separados pelo destino:

“ O amor romântico é como um traje, que, como não é eterno, dura tanto quanto dura; e, em breve, sob a veste do ideal que formámos, que se esfacela, surge o corpo real da pessoa humana, em que o vestimos. O amor romântico, portanto, é um caminho de desilusão”.

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Absolutamente emocionada e grata pela generosidade e delicadeza de cada palavra sua.

Não sei como e me sinto completamente incapaz de agradecer à altura. A gratidão também é minha, pela sua leitura afetuosa e pelo tempo precioso que se dedicou a cada linha por mim escrita, pela visita tão feliz e, especialmente, por compartilhar aqui suas impressões. Se não dissesse eu nunca saberia. Grata mesmo, com toda a profundidade da alma.

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 25 de abril (aguardando o benigno vento de maio), de 2017

Caro leitor das profundezas humanas e contador das histórias do mundo

Sim, até eu, que também não tenho a psicanálise como profissão, embora a tenha como uma curiosidade profunda, diria que tem muito de Lacan e Freud por aqui. O desejo da moça em ser outra coisa que não moça: o homem, a janela do apartamento, o basculante da cozinha ou a transitória e impalpável fumaça?

Caro Paulo, seu Pessoa também é um achado, como tudo que traz a este blog. Obrigada pelo café, ao qual só consegui chegar mais tarde hoje, e pela conversa sempre tão significativa.
Um abraço e uma semana fabulosa
Amanda