segunda-feira, 29 de maio de 2017

O B.B. King que ainda toca aos domingos

    Era lindo, eu sei. Era bom, não tenho dúvida. Cabia naquela delicadeza de olhar fundo nos olhos, enquanto se despedia - nem todos conseguem mais essa simplicidade - e tinha um coração, do qual  eu ainda não soube me desvencilhar. Igual à casa primeira da infância, nunca nos afastamos completamente do quintal dessa casa, dos desenhos no muro, das primeiras palavras escritas com um resto de tinta roubado do avô, do cheiro do remédio no esfolado do joelho, da mãe chamando para almoçar, tomar banho, o cheiro de boldo, hortelã e da roseira; o coração dele é igual ao quintal dessa casa. Vamos embora, mas levamos o quintal.
  Era blues, eu sei. B.B. King  naquele único disco que ele tinha e que sempre repetia aos domingos, antes do futebol.
- Marido e mulher se separam, mas pai e filha nunca.
E foi embora da nossa casa.

  O B.B.King ele  nunca mais tocou pra gente; não tive coragem de pedir. O B.B. King cantava o que não existia mais e podia ser doloroso para ele. Eu ainda não tinha dez anos e já me acostumava a cuidar das dores dos outros.  Mesmo sem música eu gostava dos domingos, porque almoçava fora, sempre em algum restaurante barato que tivesse banana frita. Ele me carregava nos ombros, perguntava da minha semana e me contava sobre a dele, falava muito sobre o nosso time e me fazia prometer nunca torcer para outro, eu não gostava de futebol, mas fingia, porque ele amava. Até hoje torço para o mesmo time, sei o hino e tudo; já não sei se acabei gostando ou se me fixei tanto à promessa que continuo fingido que gosto, mesmo que nem tenha a quem fingir. Mas o que eu mais gostava no domingo e também,  o que mais doía, era quando ele me deixava em casa e os verdes dos olhos dele atravessavam os meus. Eram dois ou três segundos de uma certeza absoluta:
- Ele não vai mais voltar.
  Eu tentava guardar o que podia dessa imagem, porque eu até poderia vir a não ter um pai, mas a lembrança dele eu estava obstinada a capturar. Guardava os ingressos do cinema, os panfletos dos restaurantes que almoçávamos, os papéis de bala e tudo mais que eu pudesse recorrer se ele não voltasse.

   Mas no domingo seguinte ele vinha e, na despedida, eu voltava a achar que o encontro dos nossos olhos não se repetiria. Depois, numa semana não veio, noutra faltou, voltou na terceira e não me levou para comer banana frita. Minha mãe inventava desculpas pelas ausências dele, que eram mais certas do que as vindas. Eu sabia que minha mãe mentia, ela sabia que não sabia mentir, mas tínhamos um pacto tão íntimo quanto o sepultamento do B.B. King aos domingos. Não precisava de fala, só evitávamos que a dor aparecesse na sala. Era tranquilo, às vezes. Era complicado também; muito. Teve um ano que eu anotei no meu diário somente três domingos de banana frita. Quando eu achava que a ida era definitiva, ele voltava e os olhos dele ainda sabiam se derramar nas despedidas. Nunca amei e odiei tanto fechar a porta em cima de um verde que se esparramava no nosso tapete de entrada.

  No ano seguinte ele vinha quase toda a semana e eu até mudei o cardápio de tão feliz que eu era. O outro ano era bissexto e achei que isso influenciava o desaparecimento dele. Em doze meses eu não ouvi a sua voz, tampouco vi o verde; só soube dele num par de óculos que eu precisei usar, pela primeira vez,  e a minha mãe disse que ele tinha mandado o dinheiro.
- Pode escolher os óculos que quiser; seu pai disse que paga o melhor!

  Voltou no ano seguinte e eu nunca falei sobre os óculos, ele também não. Agora, eu o ouvia. Ele falava, ele sonhava, eu levava o pão. Ele era triste eu não podia ser. Ele tinha problemas, eu pintava as unhas de vermelho e fazia café para nós dois. Ele esteve doente e eu cuidava do que eu podia, assistia ao futebol e jurava torcer para o nosso time. Ele tinha medo, eu nunca tinha.
  Fui perdendo os olhos dele, gostando de fazer outras coisas no domingo, fui deixando de esperá-lo e de achar que era privilégio meu ouvi-lo; passei a pensar que talvez fosse um privilégio dele ser ouvido por mim. Meu pai se casou.
- Um homem se divorcia de sua mulher, mas um pai não se divorcia da filha.

   Não almoçávamos mais fora. Na casa dele, junto com a sua mulher, aos domingos, ouvíamos Roberto Carlos, eu quase não suportei de saudades do B. B. King. Um dia, ele me disse que se mudaria para a terra natal da mulher e dois dias depois eu nunca mais o vi. Minha mãe não inventava mais desculpas, abolimos o compromisso das dores escondidas e a mágoa passou a frequentar onde quisesse.  Não precisei usar mais óculos, aos domingos, em casa, ouvíamos Caetano até na hora do futebol. Só voltei a reencontrar com o futebol, quando antes do velório dele, comprei uma bandeira do nosso time. Minha homenagem possível.

  Meu pai não se divorciou de mim, porque nunca trocamos votos. Quis que ele voltasse, depois não quis mais, mas ainda querendo. Os pais também são homens, os homens são fracos de humanidade. Mas ele me deu os óculos. Nunca terei coragem de perguntar se é verdade, se foi ele mesmo ou minha mãe inventando, desconfio da resposta, mas vou dormir com a dúvida pelo resto dos meus sonos. Uma árvore, um muro com desenhos apagados, os olhos verdes e a banana frita, sempre foram a paternidade dele possível, para mim, da qual eu não abri mão.
- Pai, tá vendo aquela árvore no nosso quintal? Enterrei o B. B. King ali, debaixo dela, para você, a mamãe e eu nunca mais chorarmos nos domingos sem a gente.
  Eu não sabia que as memórias não caberiam, recolhidas, aos pés do limoeiro. Agora eu sei.




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 09 de junho de 2016

Amanda Amanda

Ainda na peregrinação deste deserto, não teve jeito, fugi para seu planeta.

Ocorre que li este texto antes e ficou aquela coisa grande, aquela ausência que aflige - um pai invisível. São tantas memórias não contadas, tantos momentos inesquecíveis inexistentes, tantas lembranças que nunca existiram - enfim tanta coisa para caber na ausência do pai.

Um pai que não existe ainda assim é pai? E a marcha fúnebre solada pelo BB King faz o fundo musical do enterro no quintal. Simbólico, bucólico e resolutivo. La nave va!

É só isto mesmo,

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 09 de junho de 2017 (Portanto, um a sua frente! Garanto que neste ano as coisas não estão melhores, sinto ser a portadora de notícias de um futuro desolador. Mas ainda tenho esperanças. Aguardo uma mensagem de 2018 com melhores narrativas do mundo.)

Caro Paulo,
a travessia é isto mesmo, às vezes, é demasiado duradoura noutras é mais rápida. Mas meu planeta estará ainda aqui para quando os seus pés cansarem.
Sobre os domingos com B.B. King, um pai que não existe é ainda um pai, acho. Uma ausência é também uma história, a falta é um jeito de existir.

Continue, meu caro, só pare para, depois, andar ainda mais.
Abraços,