domingo, 14 de maio de 2017

Só um ponteiro não se move mais rápido do que eu

  O ponteiro pequeno corre e atravessa a cidade, ninguém o vê; o médio interrompe um ciclo, marca o
intervalo entre uma coisa e outra, deixa alguém na sala por uma espera; o ponteiro grande assinala o evento alcançável por uma única vez, todos temem o ponteiro maior. Dourado, espelhado, de madeira antiga, com algarismos que aprendíamos na escola e depois, quase não usamos mais ou com símbolos que vemos todos os dias, digitais, de plástico, de fibra de carbono, à prova d'água e de vistas cansadas,  todos, absolutamente, marcam essa dissolução, amanhã é outra coisa, esse ponteiro que está sob o meu pé e que me escapa, escorrega, vai embora sem se despedir, uma esteira infinita que não volta, não para. Todos temem o ponteiro maior, porque não vêm que é no pequeno que a maratona começa e termina.

   Alarme, alerta, acorda, mais cinco minutos, passaram-se vinte: atraso, meio pão, sem café, o lixo eu pego depois, bom di.., cortou o "A", amanhã eu o recupero, antes da porta do elevador se fechar.
- Oitavo, por fa...obriga...
  O ponteiro pequeno interrompe a minha voz, sucessivas vezes,  o médio me leva para o trabalho e só no grande eu sou presença visível. 
- Malditos 5 minutos. Amanhã acordo meia hora mais cedo
  O relógio me desafia, não me espera, mas também não me alcança, me ultrapassa sem me tocar, passa correndo e levanta a minha saia e os meus cabelos, não me pergunta para onde vou ou se eu quero ir junto. Eu o sigo, permanentemente, sem querer. Os três ponteiros assaltam a cidade e não os prendem, o trio assassina sonhos e nunca vão a julgamento, os três ponteiros sequestram e escondem as fotos de famílias inteiras, no fundo de uma caixa, mas não encontram o cativeiro.

  No outro dia, prometo ser mais ágil que o ponteiro médio, já que o pequeno é arisco demais e nunca chegamos a trocar olhares. Um raio de luz quente atravessa a cortina, esquenta o lençol e me desperta antes do alarme.
- Hoje eu não preciso correr. Estou em vantagem.
  Arrumo a mesa, entro no banho, enquanto a água do café começa a formar pequenas bolhas no fundo da leiteira nova, saio do banho,  rego o pó com a água quente. Ouço o homem que lava as escadas do prédio, com o dia amanhecendo ainda, ele canta e eu não ligo a TV nem o rádio. Só ouço o homem entoando os hinos religiosos que eu desconheço. No primeiro gole de café, a gata atravessa as minhas pernas, sobe no meu colo, ficamos as duas silenciosas e quietas, escutando os hinos e as nossas respirações. Levanto a xícara cuidadosa, para não afastar a gata, que me devolve o que sou, quando apartada do trio.
- Amanheci antes de ser acordada, tenho tempo.

  Eu e a gata, na sala, tomando o café, subvertendo as ordens do dia, resistindo à agenda, ao controle, aos três maratonistas que nos tiram da cama e da companhia afetuosa e ancestral uma da outra. Eu e a gata libertas dos olhares, dos emails que eu respondo e ela ignora, dos cães que ela provoca e eu não conheço, dos homens que me massacram e ela não me salva, das alturas das quais ela cai e eu não amorteço as quedas com um colchão. Nós duas, nos desconhecendo depois do café da manhã até o jantar e nos conectando durante as madrugadas.
  Os hinos cessam, as escadas já estão limpas, o céu é claro de novo, a gata pula do meu colo e, de novo, o ponteiro pequeno me ultrapassa, o  médio se aproxima e o grande já aparece no final do corredor. Eu e a gata nunca mais tomaremos este mesmo café. A xícara na pia, o lixo na porta da frente, a gata já saiu pela varanda.
- Bom dia.
Consigo uma voz completa hoje

- Oitavo andar, por favor. Obrigada.

  Em cima da mesa, uma bailarina na caixa de música  não rodopia mais, mas não a abandono, ela está há mais tempo na cidade do que eu, o ponteiro grande apaga as luzes, me faz descer o elevador. O ponteiro pequeno já passou sob os meus pés, tento me equilibrar no médio até em casa. Subo as escadas, agora, menos limpas, abro a porta e eu não olho mais para o relógio. A gata está na varanda, chegou, certamente, num ponteiro médio, deixa seu último olhar para a rua, fecho a porta da varanda. Nós duas nos confrontamos, mostramos nossas marcas de quando não estivemos juntas, lambemos cada uma nossas feridas. Ligo o chuveiro, ela mia na sala, preparo o jantar, ela caminha para debaixo da mesa, levo meu prato, ela sobe no meu colo e não abriremos a porta até o trio arrebentar a fechadura. Escutamos nossas respirações. Amanhã, quando o sol nascer, eu e a gata já seremos outras, mais idosas, menos ágeis, mas ainda resistentes aos três assaltantes antigos. Na nossa casa eles não mandam.

  Pela manhã o telefone toca, os ponteiros pequenos silenciaram uma vida, ninguém os viu, só choraram as batidas de um coração emudecido. Não tomo o café, não tenho vontade, porque o trio arrombou a nossa porta. A gata se senta no meu colo, rego seus pelos com as minhas lágrimas,  ela não se incomoda nem se afasta,  escuta o meu coração e talvez, para ela, baste. Dos ponteiros ninguém comentou ao telefone, mas se lembraram de uma caixa com fotografias antigas em que eu sorria, mas que alguém roubou.
- Foram eles!
  Não posso dizer isso ao telefone, mas eu sei que foram eles.

  Ligo o som, porque hoje eu não vou suportar o silêncio. A cantora sussurra a penúltima palavra da canção e silencia na última, que eu sempre canto por ela. A gata olha para a cidade e eu acho que ela acha que é a dona dela, talvez seja e eu também saiba, mas disfarce. O ponteiro menor modifica a cor dos meus fios de cabelo, o médio me deixa na antessala das médicas, dos dentistas, dos astrólogos, das depiladoras. O ponteiro grande me faz convites, marca reuniões, me dispensa, implora minha presença, ora diz que sou imprescindível ora me faz ficar em frente a uma porta de vidro, sem nada para ler. 
  Só um ponteiro não se move mais rápido do que eu, só eu e a gata o conhecemos e sabemos como ele caminha na nossa sala. O ponteiro pequeno, o médio ou o grande não nos assustam de madrugada, porque ignoramos suas batidas desesperadas na porta.


  

2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 19 de maio deste ano maluco de 2017

Amanda,

E o sangue de San Gennaro não se liquefez. Mas como comungar tempo, São Gennaro e a sua gata? Não sei. Mas este sangue não liquefeito prenuncia desgraças exclusivamente humanas, no decorrer do tempo do tempo do tempo. Então alguém sabe que há um continuum temporal neste espaço sem fim? Talvez sim. Talmud, Alcorão e Evangelho falam em profecias, coisas que irão acontecer, haja o que houver. Profecias são atemporais e nós por mais que façamos esforço, filhos e dívidas, somos apenas passageiros de um espaço deste tempo? Nunca vou entender isto.

Estive neste tempo atropelado por coisas que me deixaram sem tempo, mas cheguei a tempo de contemporizar com sua leitura - não resisti à condescendência ...

A filosofia cuida do tempo desde a Grécia Clássica, até que Newton trancou-o numa equação matemática, destravada pela física quântica que devolveu o Tempo à Filosofia. Que confusão, você, sua gata e seu tempo condenadas pelos minutos a serem devotas das horas e sugadas pelos segundos, para no fim do dia curarem sua feridas.

Talvez pudéssemos falar de equinócios, de fases lunares, de solstícios, mas preferimos a regulação mecânica determinada pela materialidade da alma - o mecanicismo humano - feito um relógio cartesiano. Estamos presos neste planeta maluco, com um neo-presodente mal intencionado e uma mídia maluca a querer acumular nosso tempo, nosso bem mais valioso, em seus baús inoxidáveis onde guardam suas maldades pra aos próximos capítulos do jornal marginal.

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 20 de maio de 2017

Que ano, Paulo, que semana, que desacontecimentos!
Eu falando sobre o tempo, a gata, os ponteiros de um relógio...e a vida, do lado de fora, sendo implacável com a nossa história, nossos minutos coletivos.

Mas seguimos...que bom que mesmo na turbulência ainda tomamos nosso café. O que se há de fazer senão resistir? Abraços!