sexta-feira, 26 de maio de 2017

Uma porta aberta que não se abre com uma chave

  Não era a fechadura emperrada, a chave perdida no molho de outras possibilidades de abertura, tampouco o andar errado, o prédio, a rua, o bairro ou a cidade; o país também era esse. Era, para mim, uma porta que sempre esteve fechada, surda para todos os meus gritos, ignorante da minha presença, intransponível para a minha insistência. Não cedia, nunca se abria, mesmo que eu estive desamparada, comovida e sangrassem as minhas mãos. Era um edifício alto, no centro, que eu não sabia nunca por onde subir, os elevadores estiveram sempre em manutenção e a escada era secreta demais para mim, eu nunca encontrava alguém que me mostrasse o caminho dela. Foi, desde o princípio, uma montanha muito alta, num inverno que eu não saberia como ultrapassar. Mesmo que eu insistisse em ficar lá fora mal agasalhada, em algum momento a baixa temperatura me levava para dentro.

  Os dois descem juntos, eu os vejo de relance, não precisaria de mais tempo, porque já decorei os seus rostos. Ele é alto, magro e caminha com o queixo meio inclinado, um tipo que não olha para o chão. Ela é mais baixa, um pouco mais corpulenta e olha para frente enquanto anda, o queixo é reto. São grisalhos, os dois, ele é calvo, ela ainda não, mas o cabelo dela já é bem ralo. Hoje os dois estão vestidos de cinza, vão não sei para onde, voltam antes de ficar muito tarde, porque já ouvi ela dizer que tem medo de andar pela cidade depois que escurece. Vejo-os quase sempre juntos e se, um dia, um deles sai só, procuro em volta o outro que não está. Acostumamos os nossos olhos com as composições, depois de algumas vezes repetidas, porque achamos que sempre estiveram lá: a mulher e o cachorro, o homem e a sua pasta, a mãe e o bebê, o adolescente e a mochila preta, a adolescente e o namorado com a camiseta da banda de rock, meus pés e o caminho errado.

   Eles nunca saem de mãos dadas, mesmo que eu gostasse que saíssem, às vezes parece que nem estão juntos, andam próximos, mas não há uma sincronia nos movimentos deles, ele anda rápido, tem passos largos e ela tenta acompanhar. Ele caminha na frente e olha um horizonte acima daquele em que anda, ela apressa os passos e olha exatamente para linha onde pisa. Ela vê vitrines, ele não olha para os lados. Ele está doente, uma vizinha me disse, e ela o acompanha ao hospital, eu tenho visto. E hoje, pela manhã, ele estava especialmente mais magro e pálido, os dois estavam de cinza e, pela primeira vez, achei-os muito parecidos. São um casal bastante idoso. Não sei se têm filhos, netos ou mais alguém com quem possam dividir as dificuldades de uma doença grave entre os dois, mas sei que saem juntos e mesmo que ele vá  sempre a frente dela, é ela quem dá o ritmo dos dois. Porque se ele se afasta alguns metros, logo para e espera que ela esteja tão próxima quanto esteve a vida toda.  Não se distanciam muito e parece que o espaço dessa distância sempre esteve muito calculado.

   E antes, como terá sido? Antes dos cabelos grisalhos, das mãos afastadas, desse compromisso da velhice de se ampararem, antes dos médicos, das pílulas, do emagrecimento progressivo dele, dos moletons cinza de ambos, antes dos cabelos ralos, da aposentadoria, do inverno que faz as articulações doerem mais, das bolsas de água quente, do expectorante de menta. Antes dos medos: de pneumonia, das quedas no banheiro, do assalto à casa ou do golpe por telefone. Antes dos tapetes antiderrapantes, das revistas com palavras cruzadas, feitas pelo meio, das meias grossas com chinelos de dormir, dos pijamas de flanela, do medo constante do esquecimento, da sombra na visão, do copo com água balançando na mão que não é mais tão confiável. Quem eram os dois antes de serem dois?

  São onze da noite e eles ainda não chegaram. Perguntei ao porteiro do prédio deles, quando procurava minha gata, se ele tinha notícias do casal ou da gata. A gata ele não tinha visto, do casal, sabia que o homem estava muito mal no hospital e a mulher não voltaria para casa esta noite, pediu que ele deixasse uma jovem subir e buscar algumas roupas dela no apartamento. Pelo menos não passariam a noite com os moletons cinza. Despedi-me do porteiro, segui meu caminho com o queixo inclinado, será que me afeiçoei demais ao casal que já imito o andar do homem? Chamei a gata, fomos para casa, ela sempre vai a frente, mesmo que sejamos uma composição para os outros. Eu sou a mulher com a gata.

  A porta não se abriu ainda. Tenho dificuldades com a chave, sento na soleira  e começo a chorar, faz tanto frio, os dois velhos no hospital gelado e se ele morrer esta noite? E se eles estiverem com medo, há alguém que poderá ajudar a mulher quase calva a enterrar seu marido? Quem ela será sem ele?
   Meus avós casaram-se aos vinte anos, minha avó morreu aos oitenta e cinco, enterraram meu avô cinco anos depois; por sessenta e cinco anos eles foram uma mulher com o seu marido e um marido com sua mulher. É muito difícil ser por muito tempo alguém e, de repente, não poder ser mais. Meu avô não soube.
  Penso em alguma oração, mas cada frase parece muito distante. Não sei se estou certa em repetir frases que eu nunca mais falei. Não tenho fé, mas tenho medo. A gata ronrona.
- Está frio aqui fora eu sei, mas estamos vivas e somos jovens, sua egoísta.
  Choro mais um pouco, a gata não se assusta. Já se acostumou. Um vizinho abre a porta, me vê chorando e oferece ajuda. Digo que a porta emperrou, que a chave não abre, que se puder chamar um chaveiro eu agradeço, porque saí sem celular.
 
 Ele passa a mão na maçaneta da porta, devagar torce o metal brilhante e a minha casa está lá dentro, quente, iluminada e aberta. A porta nem havia sido trancada. A gata já estava sobre o sofá, eu chorava menos e o vizinho me achava louca. Quanto mais eu gritava em frente a porta, quando mais eu forçava a chave na fechadura, quanto mais feria as minhas mãos, mais eu me afastava do que era meu.
  Eu tentava abrir uma porta que esteve sempre aberta,  repetia orações para a saúde de alguém de quem eu nem sabia o nome completo, chorava pelos moletons cinza e pelos cabelos grisalhos, tudo isso para me afastar do medo das ausências, das portas que se fecharam atrás de nós e nunca mais poderão se abrir. Da solidão deles, da minha, do meu avô, da gata, do vizinho, do porteiro do outro prédio. Só o que me fez dormir depois do medo, foi pensar que a mulher, finalmente, segurava a mão do seu marido hoje à noite, que ela não tinha medo do escuro mais e que ambos olhavam para uma mesma altura, agora. Se a porta não abre, talvez  já estejamos do lado de dentro e a chave só sirva para fazer barulho.



4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 29 deste maio difícil de 2017

Amanda Machado
M.D. tradutora das dores do mundo

A crônica toda é uma oração, das mais poderosas - Amai ao próximo como a ti mesmo. Então a protagonista, de fé inabalável, não tem como ver o que já está em si. Encantador isto aí!

Dito isso, assim desta maneira, nada a acrescentar, falar ou perceber - linda a sua oração do dia.

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 29 de maio do 2017 que não sabemos no que acabará

Querido Paulo - coautor dos devaneios deste bloguezinho - ,

Tudo que traz aqui é sempre motivador e muito, muito delicado. Muito obrigada pelo tempo precioso que investe nas nossas conversas; curtas ou longas, alegres ou não, são sempre muito prazerosas.
Abraços e uma ótima semana (ainda que as perspectivas sejam tensas)

Paulo Abreu disse...

Ato contínuo pós-escrito

Prezada Amanda, doce Amanda

Manifestação deste que escreve em atendendo a uma crise de consciência:

1 - Este não é um bloguezinho. É um espelho da alma de uma mulher que descreve a urbanização de uma forma humanizada. Então não é um bloguezinho - já disse isto, mas precisava frisar.

2 - Eu não sou coautor, falta cacife e esta sensibilidade de perceber as dores do mundo. Talvez seja isto, venho aqui buscar o que não tenho.

3-Não perco meu "tempo precioso" vindo aqui. Eu venho enquanto você não me expulsar, eu venho. Tenho uma empresa, tenho sócios, questões graves, questões interessantes, reuniões tensas, jantares enfadonhos e estas coisas que a vida da gente carrega junto - família, problemas, contas, etc. Mas aqui é um refúgio, um lugar de se ler coisas que traduzem o que vejo e não percebo.

4 - Então é isso aí.

Paulo

Amanda Machado disse...

Caro Paulo,

Imagina só se eu expulsaria as felizes visitas! Teremos sempre café para você. Que bom que aqui é um lugar onde vem buscar o que não tem, espero que possa encontrar ou, pelo menos, sinta vontade de vir sempre buscar.
Abraços,
Amanda