domingo, 11 de junho de 2017

As canetas que ele me dá

  Não tem data específica para ele me presentear com canetas, embora em datas específicas ele também traga canetas. Antes mesmo que a tinta de uma se acabe ele me dá outra. São canetas prateadas, que vêm, quase sempre, num estojo de capa transparente, forrado por veludo. Não são tão caras, quanto parecem, mas não são as mais baratas de uma papelaria. São, sobretudo, escolhidas sem pressa, embrulhadas num papel barulhento e, em geral, com um laço pequeno por fora do embrulho. Ele me dá canetas, eu nem sei desde quando, mas quando chega com um pacote brilhante nas mãos, eu sei que é uma caneta.

   Ele poderia me dar chocolates e desejar que a minha vida fosse mais doce; poderia me dar flores e querer que os meus dias fossem mais coloridos; poderia me dar relógios para tentar fazer com que eu me atentasse sobre a transitoriedade do tempo e a dureza dos ponteiros que marcam a vida; poderia me dar perfumes e desejar que eu me sentisse mais sedutora, mas nem sabonetes ele me dá.  Ele poderia me dar um peixe, num aquário com pedras coloridas, para eu colocar na estante da sala e me lembrar de alimentá-lo ou um gato que fugisse todas as vezes em que eu fosse abraçá-lo e que subisse na minha cama quando eu quisesse ficar sozinha, a desobediência do gato me lembraria da minha. Poderia me dar um cachorro dócil de pelo macio e desejar que eu tivesse sempre quem me esperasse na volta para casa; poderia me dar um sofá novo, onde eu passaria metade dos domingos ou uma mesa de jantar, para eu receber meus convidados com mais dignidade. Poderia, talvez, me dar uma mesa de bilhar, para eu treinar e ser uma competidora mais à altura das suas apostas.

  Poderia me ensinar a andar de bicicleta, ele não fez isso em tempo, mesmo que tenha passado a juventude inteira correndo sobre duas rodas; poderia me dar aulas de direção defensiva, mas ele nunca dirigiu um carro. Ele poderia me ensinar a economizar, a calcular os juros abusivos do cartão e a reclamar com o gerente, a fazer contas numa agenda marrom igual as que ele todo ano troca, mas ele só é o modelo, a teoria ele espera que eu pergunte, eu nunca pergunto. Poderia, se ele assim quisesse, me ensinar a rezar de novo, mesmo que eu não tenha esquecido, preferia que a voz de barítono dele invocasse com mais firmeza as divindades, sou informal demais para falar com Elas. Poderia me passar a fórmula do produto que ele fabricava para limpar janelas, as minhas estão tão sujas, que eu já nem olho mais para fora. Ele poderia me dar ingressos para um concerto, um show, uma apresentação de algum circo na cidade, mas ele me dá canetas.

  As canetas que ele me dá se acumulam sobre a minha escrivaninha, os estojos, às vezes, eu dou para alguma criança, porque elas sabem, melhor do que eu, dar utilidade a uma coisa que eu não uso mais. São muitas canetas e há duas semanas ele me deu mais uma, eu não consigo dizer que pare, porque eu gosto de recebê-las, mesmo que  use-as tão pouco. As canetas que ele me dá, eu não deixo que ninguém mais use, só empresto as que eu mesma compro, as baratas da papelaria. E tenho muito, muito medo de perder as que ele me dá, mesmo que todas se pareçam, porque eu ficaria desamparada de mim mesma, se perdesse as canetas que ele me dá.

  Quando ele me dá canetas, ele me diz que eu sou o que faço e que o que faço tem relevância. Mesmo que eu não use canetas, ele sabe que, um dia, eu comecei com elas e que já era ele quem me dava. Quando ele me dá canetas, ele me dá a mim e isto é o que de mais precioso uma pessoa pode dar, no afeto. Ele me dá canetas e algumas vezes bate a minha porta para saber se precisam trocar as cargas e eu não sei se existe presente maior. Ele me dá o seu estímulo, acredita na importância do meu fazer e isso é o melhor que o amor dele poderia me dar.
  Ele me dá canetas, mesmo que eu diga que estou cansada, que escrever às vezes dói. Ele não deseja que eu sinta menos dor, ele não me protege da minha humanidade, das minhas falhas nas regências, do meu choro quando eu digito uma palavra e ela dói. Ele só continua a me presentear com elas em um estojo bonito, que nem sei como descartar.

  Ele me dá canetas e diz que a minha voz precisa ser ouvida. Ele, que foi o primeiro a dizer que a minha voz era bonita e a que a minha desobediência combinava com a dele. Eu não me lembro dele me chamar de princesa nem fada, nem borboleta nem passarinho, nunca me disse que eu era ou estava bonita, porque isso nunca foi interessante para ele. Até hoje não sei o que ele não acha bonito; só sei do que ele não gosta, às vezes: creme de leite, atum, bateria, atrasos, banhos demorados e passear com animais domésticos. Não me deu tiara nem vestido rodado, mas me deu canetas, muitas.

  Ele me dá o que eu já sou, como se eu mesma fosse um presente.
- Não precisa mudar, só seja mais.
  Eu escuto, enquanto ele me dá mais uma caneta.

  Ele não me dá um sofá, uma mesa, um aquário ou aulas de direção, porque quer que eu caminhe;  não me dá relógios, flores ou chocolates, porque não quer que eu me distraia com o que não é essencial. Ele não fala com deus por mim, porque sabe que só eu posso chamá-lo, não me passa a fórmula do produto para limpar os vidros, porque ele mesmo quer limpar as janelas do mundo para mim. Ele me dá canetas porque acredita que na ponta delas está  minha promessa e destino; ele abastece a  gaveta da minha escrivaninha com tinta porque não quer que eu cale nunca quem eu sou. As canetas que ele me dá me enchem de amor e de vida, isto tudo num embrulho luminoso e barulhento.  Não são caras as canetas que ele me dá, mas depois de tê-las, eu não sei mais não ter.



4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 20 de Junho do AD 2017

Prezada escritora das coisas intangíveis
Amanda Machado
MD habitante do Planeta Terra

Que bom que escreve coisas que passam absolutamente desapercebidas de nós outros, mortais incrédulos. Vou citar um exemplo da vida lá fora, e em seguida tentarei retornar a linha de pensamento inicial.

Nota de censura prévia: Melhor que não - censurei o exemplo apesar de ter escrito dois parágrafos (guardei). Motivo - virou um comentário político, que não se encaixa aqui neste blog. Esta Ágora é para as coisas intangíveis.

Retornemos então - gosto do simbólico dos seus textos - alguém nos dá algo sempre, mesmo que não necessitemos - algo que nos faça comunicar com o mundo, existirmos (a que será que se destina, hem Caetano?) com uma pessoa que delineia seu caminho.

Eu tenho captado esta busca e estas questões em alguns dos textos que leio aqui - a busca de algo, de alguém que nos dá algo sem pedir nada em troca, em graça e de graça pela graça das graças.

A olhos nus, este texto é uma oração, uma complexa oração em ação ... de graças. Recorro ao Ferreira Gullar, para explicar o que vejo quando a moça vê o que tem e o que recebeu e o que receberá sem querer abrir mão desta graça:

Uma parte de mim / é só vertigem; / outra parte, / linguagem.

Traduzir-se uma parte / na outra parte /— que é uma questão de vida ou morte — /será arte?

Sim, poeta, será arte, eu ouso responder - sim - será arte!

Um abraço

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 21 de junho de 2017

Caro Paulo Abreu
o humano delicado com quem divido cafés

Jamais deveria se censurar, não aqui. Um lugar, até há bem pouco tempo, sonhado para não ter cercas. Infelizmente já cravamos uma ou duas...com muito lamento. E sobre política então...é uma das minhas três causas de vida e morte.Se não achou pertinente, compreendo e aceito, mas numa próxima compartilhe aqui sim, porque gosto e vivo naquilo que é tangível.

Suas reflexões sobre o texto me enchem de contentamento, porque suas impressões são sempre muito precisas, muitas vezes, mais do que aquilo que foi escrito. Sua leitura ouve os silêncios.

Grata também por essa beleza de Gullar, com quem tive muitos entreveros de cunho ideológico (embora ele jamais tenha sabido, é claro!), mas cuja obra tem meu completo respeito, admiração e encantamento. "Uma parte de mim / é só vertigem; / outra parte, / linguagem".

Abraços, ótima semana!
Amanda

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, inverno, garoa fina e vento gelado deste 21 junho 2017

Amanda machado,

Eu fiquei o dia com esta necessidade de escrever sobre o Gullar. Gullar nunca esteve envolvido nas causas sociais de base, foi contra a ditadura, assim como FHC, Serra, Covas, Tancredo, etc. Nunca nos traiu, envolvendo meus princípios aos seus, apenas ratificou sua linha de pensamento.

Já sua arte, ah! sua arte - esta sim é nossa, como Rodin - quando olhamos suas esculturas não imaginamos o sofrimento provocado (sic) em Camille Claudel, algumas vezes com fúria. Mas a arte está aí!

Também nesta linha temos a Adélia Prado, da elite cultural, apoiadora do golpe, aecista convicta etc - suas obras não diminuiram por isto. Ou Lia Luft que é contra as cotas sociais, com discurso barato, digamos assim.

Era só isto que eu penso que deveria escrever, apesar das incertezas, nunca tenho certeza de muita coisa, o que é bom! Apreciemos o que é bom - a vida não é nada fácil.

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, começo do dia 22 de junho, de 2017

Caro Paulo,
Concordo muitíssimo com as suas considerações. Nem sei bem o porquê do meu comentário sobre Gullar(quer dizer, acho que o cenário atual tem me levado a esta infrutífera e perversa busca de apontar quem são os "meus" e os "outros". Uma bobagem enorme, que só impossibilita o diálogo) já que eu tinha feito essa reflexão há alguns anos e me propus a superá-la.

A obra de Gullar me afeta, me toca, me emociona e, além disso, a humanidade é controversa, anda por caminhos improváveis, não-lineares e demasiado imprecisos; o artista é humano, sua obra é que transcende. Por isso, devemos sim apreciar o que é bom. A vida já é bastante difícil.
Abraços, um ótimo dia. Avante!