quarta-feira, 28 de junho de 2017

Do segundo andar ninguém se mata

  Primeiro era um casal de idosos, no apartamento. Moraram cinco ou seis anos na mesma porta. Gostava de  bater lá, às vezes, para entregar alguma correspondência, avisar da fuga do gato que cuidava deles ou de que alguém que os chamava ao interfone, que esqueciam  fora do gancho, com frequência. Gostava de ser atendida pelo homem disposto e bem penteado, a qualquer hora e muito bem humorado; gostava também de ser atendida pela mulher maior que o marido, de roupa de ginástica que durava o dia todo, depois da caminhada. Gostava de tê-los como vizinhos e de vê-los andar de mãos dadas pelo quarteirão, ela maior que ele. Gostava de saber que tinham o mesmo tamanho, embora as alturas fossem diferentes. Gostei sempre de ver no rosto deles uma família que podia ser minha e eu deles, caso não recebêssemos visitas.

  Entendia a escolha deles pelo segundo andar, porque é um prédio sem elevador. Com o corpo menos jovem, músculos mais frágeis e estabilidade meio trôpega em dias de muito calor, as escadas até o segundo andar não eram obstáculos impossíveis. E a insegurança e o barulho do térreo, ficavam um pouco mais afastados. Tinham muitos bonsais na varanda, onde a luz indireta nutria as folhas e refletiam nas pedras coloridas dos pequenos vasos, um jardim em miniatura. Eu gostava de ficar algumas horas, da minha janela, vivendo da beleza que eles me davam. Mas se mudaram. Chorei como quando minha irmã saiu de casa, pela primeira vez; chorei como quando meu irmão nos deixou; chorei de molhar fronha e travesseiro, como quando meu pai não voltou. Chorei sem me mexer muito, encolhida, resignada, aceitando o abandono inevitável de quando um afeto se alonga noutra direção. Levaram o gato, deixaram um dos bonsais na minha porta, sem bilhete, sem nada, eu já tinha chorado muito no abraço da manhã anterior. É uma cerejeira e eu não sei se ela morrerá afogada ou tostada no sol; minha inabilidade tem muitas facetas.

  Há poucas semanas, chegou  um casal jovem, movem-se com cuidado pelas escadas, com pés que ainda não estão relaxados para se soltarem com força, que ainda não reconhecem as distâncias entre os degraus. São simpáticos, cordiais e muito silenciosos, mas não parecem tristes. Estão há quase quatro semanas no prédio e não fizeram nenhuma festa ainda, acho que não são da cidade. Trocamos cumprimentos, nenhum de nós foi a reunião de condomínio; meus vizinhos antigos, do segundo andar, teriam ido e me contado tudo, no outro dia. Terei que frequentar as reuniões ou estabelecer um vínculo maior com outra porta assídua. Eles não têm jardim, não têm um gato; ela não usa roupa de ginástica e ele não tem um pente no bolso da calça. São jovens e moram no segundo andar; eu não me acostumo. Por que o segundo andar, se a cobertura também está vazia? Será mais barato? Mais tranquilo? Não ver o céu é uma troca justa pelo desconto do aluguel? Não ter mais algumas dezenas de degraus é mais prazeroso do que as noites estreladas de dezembro? 

  Se brigarem não poderão lançar celulares das janelas e terem perda total, porque se caírem no jardim do prédio, nem chegarão a se quebrar; se jogarem peças de roupas num destempero idiota, não perderão nenhuma, todas fatalmente chegarão ao solo, sem telhados, grades ou telas para uma das mangas ou pernas se segurar. Se quiserem ver os fogos de réveillon, não poderão passar as viradas dos anos no apartamento, se quiserem ver nuvem ou secar roupa mais rápido, a varanda não servirá; só a preguiça de um gato e a existência de bonsais cabem naqueles metros de pouco céu, do segundo andar.

   Não estar próxima o suficiente do chão, nem distante demais para achar o céu mais a mão. Não precisar de grades de proteção, mas estar atrás de uma construção que esconde a mata, as montanhas e só receber um resto de vento, já diluído.
  No segundo andar, não se pode ter um cão, porque não tem uma área aberta, mas também não ter não é vantagem, porque o cão do térreo late, como se tivesse dentro do apartamento do segundo andar. O cheiro dele é vivo, o rosnado é alto; quando derruba um objeto é como se caísse no segundo andar também, só os olhos de amor do cão não chegam ao segundo andar. O andar do meio é uma porta aberta para uma parede lisa, sem paisagem ou uma janela fechada em frente ao mar.

  No segundo andar não cabe a liberdade do primeiro, nem a paisagem do último. No segundo andar não é necessário telas, mas também não se pode deixar as janelas abertas numa madrugada quente de verão. O meio do caminho é longe demais para se gostar dele; é deserto demais para nascer afeição. A mão, frequentemente vai querer o alto, porque se parece com o futuro e o coração,  o andar de baixo, porque se parecerá com o lugar de origem, de partida, onde deixamos, fatalmente, uma parte da bagagem, para não pesar demais na travessia. No meio, só há possibilidade de vida partida, fundamentada no enquanto,  alguém dividido. O casal é muito jovem para não subir mais e com uma caixa de tempo cheia de futuro, para não plantarem uma horta no térreo.

  O segundo andar, é um sítio seguro, onde as portas não batem, o sol não desgasta as cortinas e os celulares não param depois das quedas. O aluguel é mais barato, as sacolas do supermercado se rasgam menos, as pizzas chegam mais quentes e para fugir de incêndios, talvez, as chances de não sufocar na fumaça seriam maiores.
  Do segundo andar ninguém se mata, é verdade. Mas  também ninguém vive. No segundo andar eu não moraria feliz. O segundo andar é uma jaula sem chave, da qual não se sai, só porque esquecemos que temos as asas.



4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 11 de Julho de 2017

Amanda Machado
A moça das prosas implícitas

Li seu texto a primeira vez e confesso que deixei prá lá. Achei que não achei muita coisa. Verdade, fiquei com aquilo na mente - qual é a mensagem subliminar desta moça neste texto? Não é um conto da Agatha Christie, mas tem lá seus mistérios.

Como a Amanda sempre guarda cartas e letras na manga, pensei comigo - pense pense pense, mas estes dias têm sido tensos, e outras necessidades foram atropelando o segundo andar. Qual a simbologia ali? O que não vi?

Agora de manhã, sentado aqui no escritório, com tempo, resolvi reler. Hummm ... danadinha esta moça - ela fala de mudanças, do que já conhecemos para o que não sabemos, o medo - sim, fala do medo de mudar na presença do casal velho, como são nossos hábitos, aqueles velhos hábitos, e de súbito a necessidade de mudança para o novo.

Fui fazendo esta analogia, aí achei o caminho. Por quê o segundo andar? Por quê não se morre no segundo andar? É onde habitam os hábitos, em protegida zona de conforto dentro da gente.

Caramba, esta Amanda deve ser meio que pedagoga, meio que psicóloga, meio que poeta, meio que louca. Meio que louca, como todos nós somos, uns se acham piores (quando não excedem são os melhores) e outros se acham superiores (a turma do rivotril com fluoxetina).

Que bom, que bom! Continue assim, vagando, divagando e divulgando a sua loucura tão lúcida quanto interessante.

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, décimo primeiro dia de 2017

Caro Paulo,
não se perturbe com aquilo que não merece segundas vistas, se não foi, não foi! É assim mesmo, esse lugar aqui é bem bagunçado, coisas para todos os lados.

Muita generosidade a sua em voltar, reler e empreender esforços para estabelecer conexões com aquilo que pareceu um nada, a princípio. Esse é um olhar necessário, no mundo, penso. O buscador, que não se conforma com uma olhadela superficial, que muda logo o foco.

O que mais temos aqui é loucura. De muitos tipos e tamanhos, mas nenhuma solução ou cura.
Abraços afetuosos,
Amanda

Paulo Abreu disse...

Amanda,

Empreendedorismo requer sempre a busca de um ângulo novo em qualquer situação. Viciei nisto - preciso esgotar todas as possibilidades, todas as argumentações até perceber de uma forma que eu compreenda o processo. Mas tentarei não rebuscar mais assim com tanta ênfase - não prometo, não não, isto não, nunca prometo, nunca.

Amanda Machado disse...

Ah Paulo...sim, é verdade.
Nos conhecemos há umas cinquenta cartas...não deveria me surpreender com as suas perspectivas variadas e profundas. É claro que isto é uma vocação/fardo/bênção/talento seu.
Empreenda e não prometa, faz muito bem!