sexta-feira, 16 de junho de 2017

O último hoje é o primeiro amanhã

  O letreiros já não são acesos há meses, mas mesmo assim a boca vermelha da xícara verde, antes luminosa,  sorri para mim; ela sempre me sorrirá. O cheiro do café não é mais sentido pelo bairro inteiro, pela quadra, nem a rua toda se impregna do aroma que, hoje, está restrito ao olfato de quem o pedir. Caladas estão as colheres nas xícaras, os copos na bandeja, a água no fundo da pia de alumínio, as risadas na cozinha, as moedas na caixa registradora, as mesas com os senhores de paletó na cadeira e os estudantes de apostilas que sempre eram perdidas, esquecidas ou acidentalmente molhadas com suco ou chocolate quente. As moças com toucas de pano xadrez sorridentes, foram desaparecendo ao longo dos cinco últimos anos; voltaram para a terra de moças sorridentes de toucas xadrez e o balcão se tornou um lugar extenso demais, solitário demais, um deserto escuro, com cheiros que não ultrapassam a meia porta aberta.

  Hoje é uma despedida, então eu peço sete. Ela coloca um a um no saco de papel e deixa uma abertura:
- Estão quentes, se fechar, eles murcham.
  Nos últimos meses o meu consumo de pão foi quase insano. Comia-os pela manhã, antes de sair de casa, comia-os no final da tarde e, também,  à noite. Com manteiga, geleia, queijo, maionese. Fiz torradas, rabanadas em pleno junho e até um pudim de pão eu testei, ficou bom. Tudo porque eu queria que a padaria não fechasse as portas. Mesmo que isso já acontecesse um pouco por vez há muito tempo. 
  É uma padaria antiga, tradicional, esteve aqui antes que eu conhecesse o bairro. Minha infância está do outro lado da cidade, mesmo assim fantasiei um passado onde esses pães estivessem à minha mesa, desde antes de eu nascer.

  Eu conheço os finais, quase nunca fui completamente surpreendida por eles, mas esse é um tipo de conhecimento que não suaviza dor alguma. Saber de um fim, antever uma despedida, sonhar, vislumbrar, prever o final de alguma coisa não nos prepara para a subida do avião assistida através de um vidro bonito do aeroporto; saber da ida, antes do dia, não segura as lágrimas quando a porta se fecha brusca ou suavemente; o horário marcado, o dia exato, o motivo inadiável nos consola, mas não ocupa o vazio do depois. Saber que é efêmero nunca fez de mim alguém mais forte nas despedidas, ao contrário, a cada indício de final, vou perdendo as camadas até estar completamente vulnerável quando olhar para as costas de alguém que eu já sabia perdido. Não ignorar que tudo acaba só me tornou sobrevivente da minha própria vulnerabilidade.

  Todos os outros já foram embora, ela soube de algumas partidas antes do dia e imagino que tenha sofrido muito a cada deserção, mas foi se adaptando heroicamente às inevitáveis baixas no contingente. Algumas despedidas devem ter sido especialmente dolorosas; a do marido que teve um infarto, enquanto fumava na calçada e que nunca mais conseguiu voltar ao trabalho - morreu no semestre seguinte -  e a de um dos filhos, o terceiro mais velho e segundo mais novo, que não se levantou mais do asfalto sozinho, depois de ser atropelado bem em frente a mãe que trazia uma dezena de pães frescos do forno. Para cada partida para muito longe, um dia de portas fechadas e muitos outros de semblante abatido, eu mesma não assisti a nenhuma delas, porque ainda não havia atravessado a cidade. Mas a história da mulher é pública e já impressa num caderno especial do jornal da cidade.

  A história da padaria é um recorte importante da memória do bairro e também da cidade, embora seja quase a vida toda de uma só mulher. Nas fotos da parede que amanhã eu não verei mais,  a mulher ainda jovem e o seu marido vivo, ambos espremidos e felizes no balcão diminuto desta mesma padaria, numa outra, os quatro filhos em cima de uma bicicleta velha, três deles descalços, o único de sapatos é o que morreu antes dos quinze, fotos de bolos que não fazem mais, de homens elegantes levantando a xícara, mulheres sorrindo ao lado de uma máquina de café expresso - a primeira da cidade - e muitas fotos das mulheres de avental e touca xadrez. Mas a foto que eu sempre olhei primeiro é a imagem em P&B de uma mulher com o cabelo preso,  o cabo de uma vassoura numa das mãos, postura esguia, que não sorri, mas tem um olhar altivo, como de alguém determinada a sair vitoriosa de uma batalha; só sei da vassoura pelo contexto, senão pensaria numa escopeta. 

  Todos os outros já partiram,  exceto ela que, cautelosa, deixou uma abertura no saco de papel para os meus pães não murcharem. Essa é a última fornada. Ela embrulha os últimos pães e eu vou embora antes do fim completo. Um filho e uma neta estão com ela no seu último dia na padaria. Quando já saía , olho para o fundo e ela segura a vassoura tão destemida quanto a jovem da foto. A neta chora, o filho também e ela varre, como se amanhã tivesse que abrir a padaria e ter o chão limpo.
 
  Eu sempre soube que a padaria da xícara luminosa e sorridente, na fachada, era um lugar  do qual eu sentiria saudade quando acabasse. A minha despedida foi extensa, o meu esforço de adiamento foi infrutífero. Eu nunca gostei só do pão ou do cheiro do café, eu sempre me nutri da constância da mulher e a sua vassoura, sempre comi o sentido de continuidade dela, mesmo que não soubesse disso no começo. Não era o pão, era a moça da foto armada de força, coragem e da sobrevivência a cada despedida. O retrato do homem que  foi embora há muito,  as crianças apertadas numa bicicleta só, o único menino de sapatos, perdido sob os olhos da mãe destemida, mas incapaz de salvá-lo. É a padaria mais bonita do mundo, porque nas suas paredes, quem foi ainda ficou. Mas depois da fornada do final da tarde,  algumas histórias ficarão no escuro, exceto a da mulher armada do amanhã que desconhece. Depois que apagar essas luzes, vai buscar o interruptor de uma nova parede. O final de hoje é o início do amanhã.




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais 30 de Junho de 2017

Prezada moça das dores do mundo que não saem nos jornais
Amanda Machado

Nome forte - Amanda Machado - tem sonoridade altiva. Digo isto por que há mais que imagens na crônica de hoje, há a tradução de imagens, a foto da mulher, a imagem do filho no sangue das páginas dos jornais da cidade. A cidade é assim, ela nunca dorme.

Passei uns dias vagando por terras outras que não a Pitangueira, e isto bastou para encontrar umas cinco postagens da menina que parece louca, mas é de uma sanidade fantástica, com a sensibilidade da loucura. Num destes processos de deslocamento, deparei com uma amiga dos tempos de Juiz de Fora, e ela me disse - olha Paulo, eu irei visitar o Santuário da Serra da Piedade em agosto.

Senta que lá vem história. Achei interessante a forma empolgada dela se manifestar pelo passeio - quase como ir a Disney, tamanha era a sua alegria. E ao ler sua crônica e ver o retrato na parede, lembrei deste vínculo com a amiga de faculdade, a Serra da Piedade e uma foto na parede.

Há na Serra da Piedade, além do Santuário, um antigo orfanato de meninas, administrado por uma ordem religiosa de irmãs de caridade da Igreja Católica - as Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da Piedade. Hoje este orfanato não existe mais e deu espaço a um confortável e aconchegante hotel, ainda administrado pela mesma ordem religiosa. (http://www.recantomonsenhordomingos.com.br/)

Durante uns vinte anos eu passei por ali pelo menos uma vez ao ano, quando ainda era um orfanato. Vivi experiencias místicas (de outra vez explico, mas estas experiencias geralmente são pessoais, quase inexplicáveis) naquele lugar. Havia um quadro com o retrato de uma mulher, na cantina onde as irmãs vendiam produtos elaborados por elas e as meninas - geleia, doces, compotas, colchas, toalhas, tudo feito em tear e bordado a mão. Só eu e alguns poucos visitantes, a maioria estrangeiros, visitávamos aquele ambiente. Por causa disto passei a divulgar entre os amigos, parentes, que acabaram conhecendo o local.

Bem , desde o primeiro dia, na primeira vez, que o acaso e o destino me levaram ali, eu me senti ligado à história de uma mulher num quadro escondido num canto da parede - Numa das passagens, tomado de interesse pela história, perguntei sobre ela - a missionária espantou-se, olhou para mim, para o retrato e fez sinal com a mão para que esperasse e foi chamar a madre Superiora. Pensei comigo - mas o que eu fiz de errado?

A Madre veio, perguntou quem eu era, de onde vinha, para onde ia, etc. Até que sentindo-se segura revelou que aquela mulher fora uma guerreira pela vida humana, contra o sofrimento e a desigualdade, aí foi tachada de comunista e louca e ficou "presa" ali, comendo com os porcos. Falar dela era proibido, daí o susto - ninguém jamais perguntou sobre ela. Existiu um movimento em Lavras-MG para resgatar sua história, mas só a parte que interessa, mas não sei como terminou, não vou a Lavras há muitos anos - houve uma moça lá, uma destas paiões eternas da juventude, deixa prá lá.
Bem, voltando ao tema - Até hoje sua história está escondida (não mais para você)- Irmã Benigna (http://www.irmabenigna.org.br/site/pt/14) é a mulher da padaria na foto da minha vida.

Um abraço,
Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 01 de julho de 2017

Paulo - o contador (de causos)encantador

Que bela história, Paulo!
Quantas vidas incríveis se apagam e nem sabemos das suas existências? Quantas mulheres sem os retratos nas paredes nunca conheceremos? Há muito a descobrirmos ainda, especialmente sobre mulheres, negros, pobres, que da história oficial são apagados.

Enfim, sorte a minha em tê-lo aqui para me apresentar mais essa preciosidade. Muito obrigada por trazê-la e, desta maneira, como você sempre apresenta, com a riqueza que só um ótimo contador de histórias poderia fazê-lo.

É claro que, prontamente, visitei os links que você gentilmente indicou, o da Irmã e o do hotel (que beleza de lugar! Não me espanta sua antiga conhecida estar tão empolgada com a viagem.)

E o meu nome é uma segunda sorte, porque o adoro, mas só o tive porque foi rejeitado para a filha mais velha. Destas coisas que acontecem para ser da gente o que já era, antes de ser.

Muito obrigada, Paulo! A sua história iluminou o meu sábado.
Abraços, ótimo final de semana e regresso!