sábado, 3 de junho de 2017

Os cabelos sangram

   Pisam numa ponte, sobre um rio barrento, quase seco a esta altura do ano. O pai de uma delas se afogou neste mesmo  rio, antes dela nascer, foi o irmão da outra mulher, com quem caminha agora, quem o tirou vivo do fundo. Eu nunca ando impassível por essa ponte ou olho essas águas turvas sem emoção, tenho calafrios só de suspeitar sobre as tantas vidas que cabem nesse rio estreito. Passeamos sobre elas; esta é a verdade. Olhamos para o rio, como se ele não fizesse parte do que somos, vemos suas margens se alargarem, seus caminhos de água se tornarem mais e mais finos e  não nos responsabilizamos pelo seu martírio. Aquele rio que é a sua história e você o ignora; esquecemos de honrar quem nos permite a vida. 

  Essas duas que agora pisam nessa ponte, não parecem comovidas, andam sobre o rio como andam em qualquer outro lugar no mundo, num shopping, numa avenida, num dos becos do  bairro onde moraram ou numa alameda de um condomínio, onde nunca chegaram a por os pés. Talvez só caminhem com um pouco menos de pressa, mais seguras, porque não há o trânsito das cidades. A largura da ponte é a história de um rio que já foi grande, com corredeiras que afogavam homens, alguns nunca voltaram, hoje, não cobriria as minhas coxas se eu entrasse nele. É o mesmo rio, mesmo que as suas águas sejam, agora, mais frágeis. E as mulheres passam por ele sem se darem conta de que estarão para sempre ligadas a esta ponte.

   Pentes, grampos, sprays, penteados, escovados ou em um coque alto, tingem de preto, loiro dourado, trigo, manteiga, acaju, castanho. Alisam, enrolam, cortam uma franja em casa, dá errado, colocam presilhas até crescerem os fios. Curto, curtíssimo, médio, longo, trançado. Um vidro de xampu de alfazema, de camomila, hortelã, uma massagem com óleo do Marrocos, de coco, azeite. Os afagos nos choros, na cama quando tinha pesadelos, no amor que derrapou, na primeira demissão; os piolhos, o cheiro de vinagre, o xampu de maçã verde, o pente fino; os puxões para prender o cabelo bem apertado no elástico.
- Não corta muito.
- Corto sim!
- Tá muito nova para tintura.
- Eu quero!

  Cresceram nos cabelos que cortaram, mudam de cor, de corte, se desentendem e se afastam, são duas tranças, cada uma num ombro, mas saem da mesma cabeça; é inevitável o reencontro. Caminham pela ponte e têm um mesmo andar, suas vozes soam parecidas, suas raivas e amores nascem e morrem sobre este rio seco e elas não se entendem. Uma está completamente grisalha e a outra começa a embranquecer agora, dos lábios finos de ambas saem palavras que não podem voltar, descuidam do que falam, mas se prendem com obstinação ao que escutam. Se amam, mas se ferem; são tranças de um mesmo cabelo, mas se negam; são iguais, mas não são as mesmas; se permitem atirar  palavras contundentes, mas não carregam escudos.  

  Há alguns meses começaram a perder os cabelos sem nenhuma explicação médica consistente; exames laboratoriais, consultas com especialistas, medicamentos e os cabelos não param de cair. Os cabelos perdem mais volume a cada dia  porque as mulheres lutam pela mesma razão em lados que parecem opostos, embora não sejam porque não há lados. Quase calvas, porque insistem em amar somente o que acham que se parece com elas. O cabelos ficam nos ombros das camisas, na pia, no chão da sala, no sofá, se almoçam juntas, os fios perdidos de ambas se reconciliam debaixo da mesa, mas elas, ainda, não reconhecem o rio nem a ponte. Os coques perdem a forma bonita, os rabos de cavalo estão minguados e nem o vento faz do balanço dos cabelos delas, algo mais poderoso. Seus cabelos também são o rio em agonia.

  Duas mulheres precisam ver escoar pelo ralo fios finos de vaidade, porque puxam uma corda ordinária, cada uma para o seu lado sem possibilidade de vitória. Quem ganhar, cairá, quem ficar em pé, não suportará o desconsolo da queda da outra e da falta da corda para si e também sucumbirá. As duas passeiam sobre um rio quase seco de água, mas  repleto de memória, olham para suas diferenças e negam as semelhanças que as trazem a esta ponte. Buscam remediar uma possível calvície e  não se lembram de amparar as outras perdas. As mãos da mais velha quase já não afaga mais o cabelo da mais nova, a primeira não lhe dirige a mão, a segunda não oferece a cabeça.

   As duas mulheres, espero, um dia largarão a corda definitivamente e deixarão de perder os seus cabelos. Vulneráveis, debaixo de uma touca de banho, os fios choram, sangram, escorrem e se despedem um a um das duas cabeças que se perdem  em amor e no desconhecimento do que fazer com ele. Um coque alto, uma presilha, grampos, elásticos, escova, ao natural, não tem mistério; o amor também muda e é o mesmo de sempre, era preciso que aceitassem as outras formas e mesmo assim, ainda soubessem que o rio é aquele mesmo; onde o amor afogado das duas foi salvo pelo irmão de uma e pelo tio da outra. Que não fiquem calvas antes de afagarem mais uma vez o cabelo uma da outra.





2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minhas Gerais, 14 de junho de 2017

Minhas Gerais em Linhas Gerais, isto dá poesia, mas fica para outro dia.

Amanda Machado
Maestrina Regente e compositora das palavras sobre coisas tristes e as coisas belas da vida.

Nestes mais de dois anos que vagueio aqui, sempre fico imaginando - afinal o que passou pela cabeça dela quando escreveu isto? Li esta crônica, via a ponte, a simbólica e a real, via as mulheres envolvidas na dor na passagem pela ponte e por vim a enfermidade das duas, concomitante, cujo elo é a dor da ponte estreita pela qual passa a nossa vida.

Foi o que li - aí fico imaginando e se a Amanda estava em outro nível literário? Duas mulheres, morte, vida, caminho a seguir, a projeção do nível pelas coxas molhadas da mulher pela água que passa. Tudo isto em torno do pensamento vivo de Heráclito de Éfeso. Por isto elas seguiram, a dor passa, os cabelos voltarão e a vida segue.

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Nossas Minas, 15 de junho de 2017

Caro Paulo,
a feliz visita que sempre fez leituras muito generosas e não escondeu o nome.

São só dois anos? Achava já tê-lo por aqui a mais tempo...nem me lembro como era antes da sua vinda...imagino que mais pobre o ambiente. "(...) a dor passa, os cabelos voltarão e a vida segue". É isto, a vida segue!
Abraços