sábado, 23 de setembro de 2017

Meia xícara de chá de hibisco

  Tudo tão ontem, tudo tão calmo, tudo tão ainda não.Tudo casa vazia, móveis para fora, tudo limpeza antes ou depois da mudança. Tudo tão silencioso por dentro e conversas de longe, por fora. Tudo  tão duas da tarde, depois de almoçar e o sol brilhando na janela. Tudo tão alguém vai lavar o carro na rua, buscar carvão no supermercado, levar o filho ao futebol. Tudo tão unha descascada e procura a acetona para tirar. Tudo tão bolsa de supermercado, deixada na bancada da cozinha e uma hora volta para arrumar, tudo tão ainda não voltei, mas não importa porque ninguém vem ver a minha bagunça. Tudo tão uma letra de música que não sai da minha cabeça e uma ideia insistente que faz rir, porque é absurda, mas sempre sigo o seu rastro.
 Acordar é doce. Dormir tem sido difícil, mas o sono chega.

  Tudo tão início, tão sem intimidade,  novo, desconhecimento primeiro, surpresas depois. Tudo tão avenida vazia, cortinas brancas para fora das janelas - alguém colocou ou foi o vento? - tapete tomando sol, sapatos lavados, secando no portal da janela. Tudo tão esse gato amarelo, faminto, de barriga virada para cima, achando que é meu, achando que eu sou dele; gato da rua que só fui colocar um pote com água duas ou três vezes no verão passado e agora me escraviza, fazendo-me atender as vontades dele. Tudo tão uma conversa que nunca termina, que me acostuma, me prende, me faz esquecer da água do gato e, de repente, acaba. E o gato parece erguer a sobrancelha vitorioso - eu já sabia - e eu humilhada.
  Não conheço cada vizinho, mas gosto de ter uma vizinhança, ela é quem me dá bom-dia quando eu me levanto atrasada.

  Tudo tão mãos meladas com calda de sorvete e preguiça de levantar-se e abrir a torneira para lavar, lambe os dedos um a um, mas em algum canto, onde a língua não chega, só a torneira aberta poderá limpar. Tudo tão hoje não veio, deve ter tido um compromisso de última hora, também não me interessa, tenho um dia inteiro para mim. Tudo tão por que não me mandou uma mensagem? Tudo tão eu não ficaria chateada, mas agora quase fico, porque não veio e não avisou, mas não fico, porque tenho o dia inteiro para mim.
  Tudo em mim apavora e depois perdoa. Tudo sacode e faz tremer, depois se assenta ou só balança devagar, em cadência.

  Tudo tão sandália velha, acostumada com o pé, ou a nova bonita que não  sabe se machuca? Tudo tão trabalho atrasado e assistindo a uma série com um cavalo protagonista. Tudo tão a última vez que andei a cavalo eu tinha quantos anos mesmo? Tudo tão uma televisão ligada sempre parece passar o Chacrinha. Tudo tão, mas você conhece o Chacrinha? Tudo tão, eu já vi muito e de tudo. Tudo tão cheiro de almoço da casa vizinha, camarão no apartamento de baixo e batata baroa na vizinha do lado. Tudo tão liquidificador e panela de pressão no apartamento de cima, só pode ser pudim. Tudo tão banho-maria, as sobremesas de sábado.
  Nem o que se repete é igual, o pudim varia sua consistência, mesmo que a receita seja a mesma amarelecida de um caderno herdado.

  Tudo tão manteiga em cima do pão, um resto de queijo e o farelo na toalha de mesa. Tudo tão retrovisor regulado por outras mãos, tudo tão a garagem vazia nos finais de semana e as crianças, contando os degraus enquanto descem e inventado alguma história, enquanto esperam colocarem tudo no bagageiro. Tudo tão infância dos outros que sempre lembra a nossa, em alguma cena. Tudo viagem de vinte minutos, tudo tão, já chegou? Muitas vezes. Tudo tão chinelo de borracha que voltará arrebentado e sujo ou se perderá e os adultos dizendo que é falta de cuidado. Tudo tão andar descalço é único jeito de conhecer o chão e ninguém vê. Tudo tão eu não fico doente porque tomo as vacinas e como salada.
  Eu quase não me lembro do nome do filme, mas fico no cinema até passarem todos os créditos finais e as luzes se acenderem, para eu ver os outros rostos.
 
   Às vezes, uma coisa parece demasiado longe e quando chega parece demasiado tarde, com as costuras muito gastas ou um número muito menor do que se veste agora.
- Por que só agora? Por que tão desgastado, se eu merecia um novo?
  Deixa passar e vê a chegada virando a esquina da partida, não chama, não reclama, não fala nada. A espera longa prepara muito, inclusive para a não chegada ou vinda de coisa outra, não mais aguardada.
  Tudo tão levantar, ferver a água e só encontrar um último sachê de chá de hibisco no armário. Não ter escolhas, colocar em infusão, esperar em frente a água vermelha e linda, na xícara transparente. Não colocar açúcar no chá e levar um susto com o amargo do líquido que eu mesma me dou. O chá de hibisco enruga e colore a língua. O gosto não tenta me agradar.
  Eu nunca mais atendi ao telefone sem saber com quem falaria, a suspensão doía, mas era menos invasiva. O alô era para um desconhecido universal.

  Tudo tão sábado, desordem e louça suja na pia sem pressa de serem colocadas nos seus lugares. Tudo tão sem o gosto doce da camomila, que acabou, mas o hibisco não é tão ruim, com o tempo se acostuma.
  Tudo tão o que é, tudo tão o que não se esconde, mas ninguém publica. Tudo tão cabelo bagunçado, uma camiseta da personagem francesa de um filme romântico e cinco para as onze da manhã, ainda. Tudo tão eu não quero me acostumar com o amargo, viro metade da xícara com o chá na pia e volto para cama mais um pouco. Tudo tão meia xícara de chá de hibisco e já  sei o que não quero mais. O gato amarelo aparece na minha janela, o deus-sol pede a mim em sacrifício, mas não vou me levantar até ser doce acordar. Tudo tão ontem, tão calmo. Meia xícara de chá de hibisco e eu volto a sonhar.


 

4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 23 de setembro 2017

Querida Amanda,

Ainda bem que o mundo não acabou hoje, senão teria perdido este conto.

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 24 de setembro de 2017

Querido Paulo,
Como sempre, muito gentil! É bom quando vem. Mas espero que tenha motivos melhores que este conto para comemorar a desistência do fim do mundo.

Mas parece que vem mesmo, não? Está vindo eu acho... Mas até lá, ficamos firmes por aqui.
ótima semana
Abraços

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 25 deste estranho setembro sem chuva e sem graça de 2017

Querida Amanda

Tempo e espaço, duas coisas que nos confundem a ponto de marcamos o deslocamento de um ponto ao outro pela razão entre as duas grandezas.

Nunca justificamos a necessidade do deslocamento, os motivos, a saudade, os amores, a angústia, nada disto - tudo está embutido na razão distancia/tempo.

O fim do mundo não virá, não da forma que entendemos (o mundo é de uma grandeza geométrica, tangível) - virá o fim destes tempos malucos, locupletados pelos pecados capitais dos que detém todo o capital - a estes será o fim dos tempos. Quando? Ninguém sabe, mas sim, virá, está vindo.

E nós seremos herdeiros da paz! Eu você e todos que entendem a diferença entre ser apenas um vivente e estar vivendo esta história.

Um abraço (sou seu fã - credo, era segredo)

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 25 de setembro de 2017

Querido Paulo,
era bem esse o fim ao qual eu me referia, nenhuma explosão ou profecia...mas este aí das desumanidades expostas. Que tempos doidos, doídos....mas existimos, né? Resistimos.

Abraços (também sou sua fã e nunca foi um segredo. rs)
Amanda