quarta-feira, 13 de setembro de 2017

O silêncio não é oco

  O silêncio não atravessa, não atinge um alvo - nenhum círculo vermelho, coração ou presa - é uma flecha atada para sempre ao arco,  não chega a lugar nenhum nem em ninguém. O silêncio é um pedaço de couro duro que demora demais a se desfazer; é uma pedra muito pequena, escorregadia demais para ser esculpida, é uma água parada em alguma parte da estrada, que não mata a sede, não molha os pés e nem lama é capaz de gerar.
   O silêncio  morre no instante mesmo em que nasce, às vezes mata alguma coisa de quem sai, mas não faz eco. Não se sustenta, não se propaga numa amplitude de penhasco, abismo ou caverna, também não cria um túnel. Só termina onde começa, o silêncio é maciço, intransferível, incomunicável. O silêncio é uma chamada invisível no telefone, um email sem assunto nem corpo, com um remetente anônimo.

  O silêncio é uma bagagem insuportável de carregar e difícil de despachar em serviço seguro. A voz que não vem é incômodo instalado no corredor de embarque, na estação de trem, no vão entre o elevador e o piso. É a viagem isolada de cenários, sem passagens, sem check-ins; é a experiência máxima de existir só em si para si; sem espectadores. Ele revive o instante da despedida, ilimitadamente. Ele não é fluido como a tristeza num choro; não é libertador como um soco, chute ou tapa; não é arrebatador como a palavra difícil de ser dita. O silêncio é o adeus máximo, sem possibilidade de diálogo, réplica, tréplica; é um argumento muito sólido, definitivo e pontiagudo. O silêncio é a insistência na despedida.

  Gestar um silêncio já é uma maternidade, porém íntima, não compartilhada. Não se chega a carregar um filho nos braços, o parto é uma dor sem grito, é  uma haste fina permanente entre as pernas, escondida, que ninguém pode ver. Ele só sobrevive em um útero quente e molhado, se sair morre.
 Sobre o silêncio ninguém disserta. Porque as palavras são ricas, polifônicas, frutíferas e ocas. E o silêncio é fincado na sobriedade, evita qualquer relação com o que é próspero. O silêncio reparte meu cérebro em quatro, a primeira parte me faz cega,  a segunda me emudece,  a terceira me faz desmemoriada e na quarta, uma bruta. A quarta parte do meu cérebro me insensibiliza para um assunto ou nome para sempre. Cega, muda, sem memória e embrutecida, só escuto o silêncio que carrego, expulso todo o resto da sala, sem pedir licença, sem formalidades de educação.

  Hoje à tarde o silêncio não saiu pela janela, não pode ser colocado dentro de uma carta, endereçado a alguém do outro lado do Atlântico. Não apareceu na transmissão de vídeo nem nas fotos para as quais eu fiz pose. Não foi buscar pão, para eu prendê-lo do lado de fora; não se animou em tomar sol, uma cerveja ou fumar um cigarro; o meu silêncio é muito contido, sério, não tem vícios. O silêncio atravessado na garganta não desceu nem com os dois litros de água que eu já tomei no dia, também não respondeu as perguntas que eu fiz, enquanto estivemos só nós dois.

 O meu silêncio é uma lâmina cega, não corta, não fere, não sangra, mas dilacera, justamente porque só fica. O  silêncio me decepa, me finaliza no ringue, me humilha, não me liberta, me atordoa, mas não me deixa no chão por muito tempo, porque me faz querer ultrapassá-lo.
  O silêncio me distancia de mim e me mantém mais próxima do inimigo. Treina os meus músculos para se manterem retesados, sem relaxamento ou frouxidão. Contamina minhas outras vozes, ainda não caladas; me desafia a ter que carregá-lo sem o querer. Mas não o abandono, espero, paciente, a gestação se completar, a natureza  retirá-lo de mim.

  Depois das seis, sentei-me com ele na minha cafeteria favorita e tomamos um expresso; não conversamos, nem tentei. Mas acolhi suas impossibilidades, a sua vida em ausência, sua angústia de nascimento e morte muito próximas. Sou sua mãe, também sentirei as duas dores, sem intervalo, sem anestesia, sem que nenhuma mão segure a minha; ele sabe, e também por isso sente. O silêncio se afeiçoou a mim e não quer que eu sofra com a sua ocupação infértil, mas essa é a sua essência possível. Gosto dele também, porque é meu e o reconheço cada vez mais, enquanto ele cresce, antes de sair. Mas é um ciclo que precisa acabar; gosto mais quando o definitivo se afasta. Preciso viajar com palavras, com términos que não acabam com um argumento, um lado, um adeus. Preciso de partilhas e o silêncio me afasta delas.

  Terminava a terceira xícara de café e com a precisão, que só o silêncio tem, ele escorreu pelo meu ventre, minhas pernas e desapareceu antes de se espalhar no chão. Ninguém mais viu quando  o meu silêncio nasceu e se despediu hoje, antes das sete da noite. Ele foi muito duro durante toda a sua existência, mas no último minuto de convivência foi afável, generoso e pareceu querer me amar. O meu silêncio maciço, rígido, implacável e completamente frágil, no final, acabou mesmo. O meu silêncio doloroso, instalado desde a última tortuosa palavra desencontrada teve seu fim. Não está mais no vão do elevador, numa estação ferroviária em Berlim, não pertence mais ao Aeroporto Viracopos. O meu silêncio, depois de manter-me desconfortável por meses, apaziguar nossas querelas no fim, terminou com uma xícara de expresso.
  E do seu silêncio eu nunca vou saber. Esteve também em uma gravidez indesejada? Já acabou? Não me responda. Nossos silêncios estarão enterrados numa mesma cova, espero. Eu estive gestando um silêncio, pari enquanto tomava café. Este é mesmo um fim; e agora não dói, porque não existe mais nada.





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