terça-feira, 26 de setembro de 2017

Todos os cacos ainda brilham no chão da cozinha

   A última vez que nos vimos eu o amava, eu sabia e ele também, porque deixei muito explícito, não disfarcei em nada. Não varri os cacos para debaixo do tapete, não embrulhei em jornal, com rapidez e precisão, para deitá-los fora o mais rápido possível. Deixei-os  brilhando como pérolas delicadas espalhadas no chão da cozinha e arriscando os meus próprios pés em cortes que podiam sangrar muito e nem cicatrizar; não os recolhi. Sem mistérios, sem segredos, sem orgulho de dizer que não é amor, quando é. Amor-pergunta sem esperar resposta igual. Eu o amava, a última vez que o vi, atravessando o corredor, ajeitando o cabelo, desenrolando a alça da bolsa, não olhando para trás, mesmo que ele soubesse que eu o amava. O meu abraço era amor, as minhas pupilas saltavam na direção do sentimento e de todas as minhas últimas  palavras, no diálogo imaginado, também escorreram amor. Eu não jurei que não era; não embrulhei num saco preto e coloquei no poste o que ainda era o que sempre tinha sido, mesmo que arrebentado, quebrado ou amontoado em pedaços cortantes no chão da cozinha.

  A última vez que estivemos juntos eu o amava e também me ressentia um pouco, porque tinha uma viagem, que era dele e não era minha. Porque a nossa jornada acompanhada já tinha aterrissado em um destino último meu e penúltimo dele.  Não disfarcei o choro, não o deixei recolhido na garganta, ao contrário, rompeu livre, barragem aberta, inundando o caminho ressequido da estiagem do inverno. Não enxuguei o rosto, não detive soluço ou me resignei em discrição. Atravessei o instante derradeiro, em desespero de despedida, com as cortinas e portas da casa abertas. Se os vizinhos ouviram, se os outros moradores da casa souberam, continuaram calados, por elegância ou medo, mas abriram espaços para que o gritos fossem só meus. Não pedi que não embarcasse, mas também não deixei a estação livre de lágrimas. 

  A última vez que nos falamos  eu o amava, me ressentia e sabia sentir saudades, dele, porque ia, mas também de mim, que ficava um pouco vazia,  desocupada da confusão dos últimos anos. Não abri uma garrafa para brindar a paz, ao contrário, senti-me mais afastada dela, porque um costume meu acabava de deixar a cópia da sua chave em cima da mesa e na hora seguinte eu já não poderia ser surpreendida com uma chegada brusca permitida. Continuei olhando para a porta, esperando que viesse dela a resposta para ausência que eu não sabia como ocupar. Não me levantei para lavar a louça, ligar para alguém ou rasgar qualquer lembrança do meu vazio, fiquei bem junto à porta, como um cão que não entende que o dono não volta. 

  A última vez que cruzamos nossos olhos eu o amava, me ressentia, sentia saudades e  ficava em silêncio por dias, depois da partida. Tiveram pena os que souberam, me ofereceram muitas músicas, algumas ligações que precisei recusar e áudios de assuntos que não me interessavam naquela semana. Tudo para que eu não estivesse por muito tempo atenta às minhas vozes, submersa nelas. Há quem tenha medo de ouvir o que se passa dentro de si, a escuta interior pode revelar mais do que poderíamos suportar. Por sete dias eu assumi o silêncio do mundo, estranhei, acolhi e organizei a balbúrdia  instalada em mim e ignorada por um tempo que eu não sei precisar.  Mas eu quis ouvi-las, poder traduzir-me para mim, interpretar-me e finalmente ser capaz de colocá-las de novo no mundo. Não deixei o meu silêncio na cadeira vazia da sala, carreguei-o comigo e deixei-o a todo tempo aparente. 

  A última vez que dividimos um mesmo copo eu o amava, me ressentia, sentia saudades, ficava em silêncio e matava a nossa sede de nos descobrirmos mais. Embriagada de solidão, fui a pé para casa, correndo os riscos, atravessando fora da faixa, errando o tempo dos semáforos, aceitando a ajuda de desconhecidos; não me tranquei em casa. Todos me viram cambaleando pela rua, avenida, bairro, cidade. Também não me poupei da ressaca do dia seguinte, dor de cabeça, sede, enjoo,  exalando álcool no quarto fechado, nos lençóis que perderam seu cheiro, lavei o cabelo, tentando enxaguar toda a bebida da noite anterior. Todos me viram, nadando em mágoas e flutuando entre garrafas vazias, que eu não escondi. 

  A última vez que mostramos nossas cartas, guardadas nos punhos, eu o amava, me ressentia, sentia saudades, ficava em silêncio, matava a nossa sede de nos descobrirmos mais e pedia desculpas por nunca ter varrido os cacos do chão da cozinha.
- Eles também são as partes do que eu sou.
  A última vez que falei sobre os cacos, ele também me pediu desculpas por não ter sabido como pisar neles, sem me machucar e por não ter podido ficar. Foi o que de mais íntimo e último nos sucedeu. Ninguém nos ouviu, além de nós. Ninguém nunca soube que nos perdoamos pelo que não pudemos um pelo outro. A derradeira sinceridade foi a nossa melhor partida. Nosso abraço intervalado, que nunca acabou.   

  Todas as vezes eu o amei e, em algum lugar, ainda o amo; não tenho controle sobre isto também. O amor não acaba quando os cacos se acumulam no chão, tampouco quando uma viagem nos distancia ou uma quase histeria de fim se revela; só vira mais um pedaço de vidro brilhante que fica para trás. Na minha cozinha, um mosaico de cacos se constroem no chão. Não embrulho em jornal, não recolho com a pá e vassoura. As cores por aqueles pelos quais eu me parti, organizam-se num tapete pontiagudo, colorido e brilhante; eu continuo andando descalça por sobre o piso da cozinha.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 07 de outubro de 2017

Querida Amanda,

É sábado de primavera, a manhã tão bonita manhã está nublada, meio chuva, meio nuvens preguiçosas com poucos ventos pelas montanhas das minas daqui.

Dia destes estava voltando para casa, e deparei com uma mulher, bonita, no auge dos seus 30/35 anos de juventude, andando sozinha, elegante, em lágrimas e expressão de tristeza. Nos olhamos, e desviamos o olhar - sua tristeza era sua marca patente de um todo, que não cabe descrever. Lembrei do Tolstoi - A tristeza pura é tão impossível como a alegria pura. Quantos cacos foram espalhados pelo chão da vida? Quantos fatores promoveram aquelas lágrimas?

Enfim, não estenderei - parabéns, Amanda! Mais uma vez coloca em palavras o sentimento real.

Paulo


Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 07 de outubro de 2017

Querido Paulo,

É sábado, primavera, tarde quente, talvez venha chuva nas próximas horas, talvez não...

Que bela imagem essa sua, da mulher e a sua tristeza na rua, uma amparando a outra.
É, também entendo assim, como Tolstói e Saramago :“A alegria e a tristeza não são como o óleo e a água: elas coexistem”. Que bom isso, não?

Obrigada pela visita nesta manhã/tarde de sábado, Paulo! Ótimo final de semana!
Abraços,
Amanda