terça-feira, 3 de outubro de 2017

O filho de cada uma

  Não somos amigas antigas, mas também não tão recentes. Não veio aos poucos se instalando com o tempo, como outros chegaram, já carregava na mochila a intimidade alegre da qual eu nunca fugi. Dividimos sanduíches,  livros, pequenos vícios, muitas músicas, confidências  e opiniões sobre um universo que não se esgota; de coisas que eu sei e ela não, que ela sabe e eu não e de coisas que nós duas aprendemos sem saber. Trouxe seus traumas, sonhos, lembranças vividas e algumas imaginadas, dramas, coração partido, ironias, paixões platônicas e outras não, rebeldia, subversão, tudo sem pudores, sem medo de ser julgada pela interlocutora desconhecida. 
   Ela ressignificou a rota da minha confiança, não encontrou barreiras, placas de proibições, avisos ríspidos ou senhores sérios, solicitando os documentos. Passou tranquila por fronteiras abertas e ocupou o que sempre pareceu ser dela. Não somos parecidas, complementares ou qualquer outro clichê sobre amizade. Somos duas mulheres de idades, estilos, referências, experiências e caminhos diversos; quase opostos, mas dispostas a conhecermos os lados  distintos de cada uma.

  Algumas vezes, cumpro um exílio voluntário das palavras faladas. Prefiro ler, escrever e ouvir, a ter que emitir o que desejo manter calado ou em voz muito baixa e ela entende. Não se afasta, mas também não me convoca a falar. Traz, para os meus dias de silêncio, as vozes de poetas, músicos, escritoras ou das sábias das ruas. Compartilha notícias do mundo do qual eu me afasto, traduz a balbúrdia que eu não compreendo, ilumina as páginas que eu escrevo, rega a minha sensibilidade com os seus gostos e me estende a mão, quando eu decido atravessar a ponte.
  Da mochila vinho de veludo, ela saca as cenas que eu não pude ver, enquanto eu descansava minha alma das imagens, tira a receita de algum bolo que eu vou gostar de fazer, quando estiver com fome e os cartões postais de algum amigo dela que viaja pelo mundo. Ela divide o que é dela e também o que ela é.

  Eu também já sei lê-la, percebo quando seus olhos ficam distantes, quando a velocidade das palavras fica muito amena e quando o seu coração comprime o estômago, deixando-a afastada do apetite habitual. Reconheço suas luzes se apagando, seus pés apontado para direções diferentes um do outro, suas mãos inquietas e unhas na boca.
  Sei quando ela vai se ausentar e continuo esperando-a no lugar de sempre; não meço seus atrasos, não me apego às impontualidades de quem custou muito a vir. Sinto falta da sua energia, mas também admiro sua recolha ensimesmada, olhando o mundo, paciente, numa cama de desilusão, em frente a uma janela escancarada para o amanhã.  Temos nos conhecido mais, nestes dias estranhos de uma e da outra; temos nos reconhecido mais, cada uma com os seus sacos de pão, suas sacolas com detergentes e sabão em pó e sonhos embrulhados em papel pardo reciclável. 

  Nos últimos meses temos nos despedido, um pouco por dia, porque ela vai viajar e ficaremos por algum tempo em geografias descoincidentes. Estranhamos no começo, mas não lamentamos demasiado. Os encontros nunca nos abandonam. Mas na despedida de ontem teve choro, surpresa e algumas vidas em suspensão. Descobriu-se grávida, pediu-me segredo e conselhos. Não contei a ninguém, mas não me pediu que não escrevesse, acho que ela sabe e até deseja que eu escreva. Tem medo e eu a entendo, tem olhos brilhando e eu quase entendo. Tem medo de não entender a maternidade, de ter que ser e não saber ser responsável por outra vida. Medo de dar a luz a alguém de quem desconhece gostos, escolhas, tipo sanguíneo e necessidades futuras. Apreensão de partilhar com o mundo o que certamente será a parte mais importante dela.
- Mas se os nossos filhos fossem nossos, seria uma destruição, um tédio.
Eu disse.
-  Que sejam dos outros, que discordem do nosso bom gosto e tenham o próprio deles.
Tentei um consolo.

 Mas, para além dessa inquietação de aventura nova, seus olhos brilham quando fala de uma possibilidade de família, de outro par de olhos acompanhando descobertas, belezas, sustos e indignação. De alguém que crescerá dentro dela durante bem mais do que quarenta semanas; possivelmente nunca pare. Minha amiga espera um filho, ainda em segredo, e viajará sozinha para um lugar onde não tem raízes que a amparem nos dias de tempestade, onde falam uma língua que o seu coração ainda não reconhece - não xinga, não sonha, não faz declarações com ela -, com uma cultura sobre a qual só conhece amenidades e seu maior medo é de não ser boa, não ser competente para o papel que a chama. Não falou em não querer ter seu filho ou não viajar; não falou sobre responsabilidade solitária. Seu medo é o mais valente e o mais humano; tem o medo de não amar a quem já ama. Ela é a minha coragem-inspiração.

  Pediu meus conselhos.
-  Chame-o de Esperança, ao menos quando estiverem sozinhos, se não quiser registrá-lo com um nome menos tradicional, e não me chame para madrinha, chame alguém que vá fazer uma poupança para ela ou ele. Eu conto histórias, faço dormir e até as poesias eu faço, se não conhecer outra pessoa. Levo ao cinema, ao circo, dou banho e cuido dos machucados nos seus joelhos. Não coloque brincos ou coloque se quiser, amamente ou não, prolongue a licença ou não; procure uma creche ou não.  Publique fotos dela ou não, em caso de doença recorra a ciência de ponta ou aos costumes tradicionais. Tenha-a de parto humanizado, em casa, no hospital ou com cirurgia marcada, com numerologia e mapa astrológico favoráveis. Faça um chá de bebê ou de fraldas e eu vou ou não faça nada e eu também irei. Mas por favor, chame-o de Esperança.

  O que ela não sabe é que também espero um filho, muito antes dela ou não, talvez ela também já esperasse anos antes de me contar, e o meu também vai se chamar Esperança. Me ligou há uma semana e disse que estava vazia, hoje está cheia de vida, não sei o que dizer. Estive vazia ontem e,  hoje, tenho a completude da Esperança; nossos filhos. Que instável é navegar neste planeta; sabemos das ondas, mas nunca nos acostumamos muito aos solavancos de dentro do barco.
  O destino surpreende, com a chegada de uma nova vida, com um encontro que durará para sempre ou com a partida de alguém de quem aprendemos a não querer nos afastar. A vida surpreende no vazio, que, de repente, fica muito ocupado e na plenitude, que em segundos, se esvai como a água, depois de abrirem uma comporta. Nada dura tanto que nos deixe completamente ocos ou absolutamente fartos. A Esperança dela vai nascer no próximo semestre, a minha talvez nasça, talvez não. O filho de cada uma tem a gestação da qual necessita. Minha amiga, antes vazia e fixa, está cheia e vai viajar.



4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Vazias, 16 de um nebuloso outubro do ano estranho de 2017

Querida Amanda,

Sim, poderia falar da amizade entre duas mulheres, uma das coisas mais interessantes que a inteligência humana é capaz de produzir, mas não reproduz - só ocorre entre vocês.

Mas a esperança, puxa vida, tocou fundo na angústia. Que coisa bonita. E, olha, separei frases que só uma pessoa iluminada pelas letras é capaz de postar:

1 - "Ela ressignificou a rota da minha confiança"
2 - "Algumas vezes cumpro um exílio voluntário das palavras faladas."
3 - "rega a minha sensibilidade ... quando eu decido atravessar a ponte."
4 - "Reconheço suas luzes se apagando" ...
5 - "geografias descoincidentes."
6 - Os três últimos parágrafos

Bem, não posso me estender, mas preciso falar de uma coisa que não entendo muito - esta sua relação entre a metafísica e as metáforas - ela é sensual.
Aqui uma explicação que necessitei buscar para explicitar isto de uma forma pedagógica, apesar de que não se explica o óbvio:

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302004000200005

Abraço

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 16 de outubro de 2017

Querido Paulo,
que bom que há vida, coisas a serem vistas, vividas e sentidas, para além dos ares de desesperança.

Sim, concordo que há metafísica e metáforas (e metafísica nas metáforas), mas não sei como isso acontece. Não sei. O artigo que compartilhou me instigou muito (embora só tenha podido passar os olhos em algumas linhas...mas lerei, urgentemente! E tem Heidegger, não o perderei por nada).

Grata pela sua leitura tão atenta e acolhedora e pelo presente especialíssimo. Falamos dele, quando eu o tiver lido.
Abraços,
Amanda

Paulo Abreu disse...

Minas desertas, 17 deste outubro 2017 vezes tenso

Querida Amanda, (talvez seja interessante não publicar esta carta - não, não é uma carta de amor - rs)

Não sou filósofo, e isto é parte da verdade. Minha graduação na UFJF foi em Farmácia-Bioquímica em priscas eras. O que veio depois foi adição.

Mas despertou-me a forma com a qual escreve. Andei lendo aqui e ali, rapidamente, sem ainda me aprofundar, mas está tudo tão à vista, que salta os olhos.

Um preceptor e orientador metafísico que tive na formação leiga em Filosofia sempre afirmava - Paulo, se ao explicar uma criança de sete anos uma tese ou um pensamento filosófico e ela entende-la e compreende-la a ponto de se identificar com ela, esta tese está clara, é legítima e verdadeira.

O texto que repliquei ontem foi pedagógico, mas este aqui é explícito. Não sei qual é a sua formação, se nas Letras e em outra área das Humanas, mas acredito (dentro das minhas limitações) que há no seu dom um tesouro a ser explorada, talvez até para dar um norte, explorar todo o seu potencial. Aprender mais sobre esta linha de pensamento que se aninha nos seus textos.

Delírio? Talvez, mas quem é normal? Já que Parece louca, então? Se for assim, se se sentir tocada por este processo, abrace-o, estude, vc mora numa cidade universitária, é jovem e tem talento.

Pessoas medíocres ganham fortunas com livros medíocres de auto-ajuda. Você já trás consigo um pensamento altruísta e fomentador de esperança. Não estou te bajulando, nem puxando saco, nem nada. Estou vendo uma oportunidade que talvez seja sua rota.

Ontem a tarde meu sócio me apresentou uma proposta interessante de parceria com um empresário. Negócio bom, aparentemente tranquilo, honesto, etc. Mas todo negócio gera riscos e eu sou o responsável pela análise dos riscos.

Em reunião agora de manhã, numa etapa ainda preliminar eu disse - olha, sobre o que vc disse ontem, eu tenho a seguinte percepção - o empresário viu nisto uma oportunidade (de ganhar dinheiro honestamente), você viu nisto a necessidade (de gerarmos capital). Os dois acharam que estava tudo resolvido, mas falta combinar com o mercado. Falta a discussão técnica - não são vcs dois que deverão apresentar isto ao mercado, no caso um mercado seleto de alto risco e elevado know-how. Para ist deveremos contactar com pessoas que falem a linguagem e a metalinguagem do mercado e que estejam dispostas a defender o produto a este mercado.

Ele ficou assim, pensando igual vc está agora pensando. Faça sua análise de risco.

http://revistas.unisinos.br/index.php/filosofia/article/viewFile/fsu.2014.153.04/4503


Paulo Abreu disse...

Ainda no tema, mas concluindo com uma proposta de ferramenta temática:

Enquanto almoçava, pensei, caramba - e se ela pedir um caminho:

Pensei em Bach e seus florais, não nos florais, mas na concepção filosófica que o fez chegar a eles:

Dr. Edward Bach entendeu que a origem das doenças seria proveniente de sete defeitos: orgulho, crueldade, ódio, egoísmo, ignorância, instabilidade mental, cobiça e gula.
Apontou sete caminhos do equilíbrio emocional, que seriam: paz, esperança, alegria, fé, certeza, sabedoria e amor.
E o seu conceito de saúde seria: harmonia, integração, individualidade e integridade.
O importante seria que a alma e a personalidade estivessem em perfeita sintonia através do equilíbrio emocional. As essências florais de Bach tratariam a pessoa e não a doença; a causa e não o seu efeito.

Pense assim:
Amanda Machado entende que a origem dos sofrimentos humanos é proveniente de sete angústias: orgulho, crueldade, ódio, egoísmo, ignorância, instabilidade mental, cobiça e gula.

Nos seus contos aponta sete caminhos do equilíbrio emocional, que são: paz, esperança, alegria, fé, certeza, sabedoria e amor.

E o seu conceito de QUALIDADE DE VIDA seria: harmonia, integração, individualidade e integridade.

O importante é que a alma e a personalidade estejam em perfeita sintonia através do equilíbrio emocional. As crônicas da Amanda trazem à pessoa o bem estar, propondo suavizar a causa das suas angústias e não o seu efeito.