quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

O tempo é só um grande e assustador gigante fadado à queda

   O tempo não é uma compreensão universal e única. Os tempos são vários em um mesmo ponteiro de relógio suíço - sem exatidão - ocupam dimensões aparentes e também ocultas, registráveis e ignoradas; o tempo é misterioso e enganador, é a busca insistente de materialização e a sua fuga voraz.  Os fusos são convenções a que o mundo humano, mais ou menos, obedece; não todos, não a todo o tempo, felizmente. Um minuto de apreensão dura muito mais do que uma hora de sonho realizado; um segundo de pressentimento ruim custa mais a acabar do que um dia inteiro de tranquilidade. O tempo é aprendizado longo e constante, quanto mais sabemos sobre ele, menos o temos sob o nosso controle. O tempo é sempre uma flecha atirada, tarde demais para recolhê-la depois de sair das mãos do atirador, incerta demais para saber o lugar exato onde vai chegar. Chegará. Mas quando e a quem atravessará?

  O barulho terrível da buzina entra pelo apartamento quente, iluminado e em cores, com cheiro de canela, manteiga, loção pós-barba, gel, vinho, batom, perfume doce, creme com ovos e maisena; o barulho interrompe os odores festivos do apartamento e logo se junta à sonora urgência dos passos pelo corredor do prédio. É feriado e ele corre; às segundas, terças, quartas, quintas, sextas, sábados e, em alguns domingos, ele corre sozinho. Seus pés obedecem prodigiosamente às buzinas do portão de entrada. Ele não tem cinco anos e vive a urgência dos chamados que não sobem as escadas ao seu encontro. Ele, sempre ele, o buscador, o menino mais rápido do meu prédio; a quem eu só tenho tempo de cumprimentar nas suas voltas. Porque as suas idas são mais rápidas do que os giros da chave que eu dou na minha porta.

  No punho esquerdo do acelerado menino, há alguns meses, tem estado um relógio desenhado, a cada dia inventa um modelo diferente, cores, detalhes. Primeiro, era com caneta azul de ponta grossa, uma que a avó deu a ele quando da porta do apartamento ele se negava a corresponder a uma das buzinas, prometeu a caneta e ele desceu, tem conseguido muito com esta estratégia, agora. Desenhava dois ponteiros e alguns números espelhados, esquecia-se de alguns e, ainda, tinha os repetidos. Agora, tem chegado da escola com layouts mais realistas, diversificados e no padrão das horas ocidentais. Um relógio suíço marcado, temporariamente, na pele. E isto tem sido nosso assunto mais repetido. Todos os dias eu pergunto as horas e a cada dia uma resposta.
- Hora de javali fazer xixi.
- Hora de andar de trás pra frente.
- Hora de ver o sol deitar na cama da lua.
- Hora de empinar ovelha no sonho.
- Hora de tomar banho para gastar a pele morta.

  Até que nos últimos meses começou a compreender as ordenações deste outro mundo e responde:
- Quinze para trinta.
- Meia noite e setenta.
- Cinquenta e cinco para as seis.
Já nem me espera perguntar, se me esqueço ele pergunta:
- Não quer saber as horas não?
  E balança o punho desenhado com números, ponteiros, pontos, pulseiras e fivelas. Um relógio completo a quem não é dono do seu próprio tempo, ao menos nas saídas.
  Uma das buzinas, a que grita de segunda à sexta-feira, é a do transporte que o leva para a escola. Para em frente ao prédio às onze e quarenta e cinco e ele nunca está pronto. A avó, é preciso reconhecer, sempre tenta agarrar os minutos que correm pelo tapete colorido do quarto do neto, mas é banho, uniforme passado, almoço, lanche para colocar na merendeira, material escolar para organizar na mochila, meias, tênis, pentear cabelo, escovar os dentes e o som da buzina já entra pelo basculante do banheiro. E o minúsculo Davi corre para não aborrecer o gigante da buzina.

  O segundo Golias a ameaçar a mansidão do 502 é mais convincente, dramático e poderoso. A buzina dos finais de semana acelera ainda mais as corridas no corredor do prédio. Não é um motorista que o levará para longe do lar, um conhecido necessário, um profissional com hora para partida e chegada, mas alguém que o busca para o afeto-família. A buzina aos sábados e domingos, que muitas vezes se atrasa e outras se esquece de vir, é o pai do construtor de relógios desenhados e a cada dia mais precisos.
  É natal e eu não gostaria que a buzina o buscasse e que interrompesse o calor da noite do dia vinte e quatro para apressar um vida tão no começo, tão entusiasmada em sincronizar o som da buzina aos próprios passos. A corrida não requer nenhuma troca, chantagem, promessa de presente, nada, antes de sair de casa. Os passos são vigorosos e sedentos de um amor que é urgente e passivo na calçada.

  Termino com as flores, ajeito a almofada, as luzes piscando, o cheiro de canela. O tempo é diferente para cada um, é diverso para cada som, o tempo é uma coleção de presentes ou ausências postas num saco que não tem um laço vermelho de natal. Coloca a mão no pacote, tentativa no escuro, e tira um presente numa noite, noutra vem ausência. Vem buzina, barulho dos talheres na pia da avó, passos marcados e rápidos no corredor de um prédio a quem ninguém pode socorrer ou acolher no colo e pedir calma.
  Os olhos azuis e brilhantes dele, a buzina em frente ao prédio e  relógio no punho desenhado; tudo dói na noite de natal.

  A buzina se cala, o carro arranca e o menino cresce para cima, para os lados, para a profundeza das suas raízes amorfas. Mas o eco da buzina se encontrando com os passos dele no corredor, nunca desaparece de mim. Odeio buzinas; odeio os chamados de quem nunca desce do carro. Dia vinte e cinco, encontro-o no corredor, sem cansaço, sem corrida. Agora ele tem um relógio, que não é pintado, no punho esquerdo das horas. Tenho medo de perguntar sobre o tempo, tenho medo da exatidão que ele terá aprendido no último feriado.
- Não vai perguntar as horas?
- Sim...é...que horas são?
- Hora de agradecer ao papai do céu.
   O menino é maior do que eu; foi Davi quem venceu Golias, não foi? O cheiro da canela espanta o barulho da buzina que nunca se descolou de mim. A flecha de Davi atravessa o corredor, só não sabemos onde ela parará.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 20 de dezembro de 2017

Amanda Machado
MD narradora do tempo em si e per si

Bem, texto de uma narrativa destas de se ler sem respirar. Ocorreu-me um poema do Mário Quintana, por que foi ele que veio à superfície da memória eu não sei, mas foi ressurgindo, ressurgindo e chegou aqui.

Amanhã viajo com a família, então não sei se estarei para desejar a nós um Feliz Tempo Bom sem nebulosidade. Neste momento as filhas, já crescidas, revivem a infância e correm para lá e para cá pela casa arrumando isto e aquilo, e um dia tudo isto passa, então tem que ser vivido.

O Tempo – Poema de Mário Quintana

A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando de vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal…
Quando se vê, já terminou o ano…
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado…
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas…
Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo…
E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.

Um abraço

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas gerais, 30 de dezembro do quase "passado" 2017

Querido Paulo,
sou imensamente grata pelas suas leituras, cafés e partilhas (de poemas, textos, autores, perspectivas, teorias autorais ou citadas) sempre tão afetuosas e incrivelmente oportunas. Poucos passos nos separam de 2018 e essa beleza de Quintana (muito bem lembrada!).

Um ótimo final de ano para você e a sua família. Que sejam inesquecíveis e bem vividos os momentos com os seus amores. Abraços!